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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

O papel da Associação dos Membros Filiados (AMF) na democracia institucional1

 

The role of the Association of Candidates for institutional democracy

 

El papel de la Asociación de Candidatos en la democracia institucional

 

Le rôle de L'Association des Candidats dans la démocratie institutionnelle

 

 

Gizela Turkiewicz

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da SBPSP. Presidente da Associação dos Membros Filiados eleita em 27/03/2019, para o biênio 2019-2021. São Paulo. gizela.turkiewicz@gmail.com

 

 


RESUMO

A autora se propõe a pensar sobre a importância da Associação dos Membros Filiados (AMF) para o Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes", da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), e das organizações de analistas em formação para a democracia das instituições psicanalíticas. O texto se desenvolve por dois pontos principais: (1) a importância do grupo de colegas como parte da formação psicanalítica, ao lado do tripé análise-supervisão-estudos teóricos, e da participação na vida institucional; (2) e os ritos democráticos que validam a escolha dos representantes dos membros filiados por seus pares.

Palavras-chave: psicanálise, democracia, formação psicanalítica


ABSTRACT

The author intends to think about the importance of the Association of Candidates (AMF) of the Institute of Psychoanalysis Durval Marcondes of the Brazilian Society of Psychoanalysis of São Paulo (SBPSP), and of Candidates Organizations in general for democracy in Psychoanalytical institutions. The text is developed through two main points: (1) the importance of the group of colleagues as a part of psychoanalytical training, alongside the tripod - analysis, supervision, theoretical studies - and the institutional participation; (2) and the democratic rite that validate the election of the candidates' representatives by their peers.

Keywords: psychoanalysis, democracy, psychoanalytical training


RESUMEN

La autora se propone pensar sobre la importancia de la Asociación de Candidatos (AMF) del Instituto de Psicoanálisis Durval Marcondes de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de São Paulo (SBPSP), y de las organizaciones de candidatos en general para la democracia de las instituciones psicoanalíticas. El texto se desarrolla en dos puntos principales: (1) la importancia del grupo de colegas como parte de la formación psicoanalítica, al lado del trípode - análisis, supervisión, estudios teóricos - y la participación en la vida institucional; (2) y los ritos democráticos que validan la elección de los representantes de los candidatos por sus pares.

Palabras clave: psicoanálisis, democracia, formación psicoanalítica


RÉSUMÉ

L'auteur propose de réfléchir à l'importance de l'Association des candidats (AMF) de l'Institut de Psychanalyse Durval Marcondes de la Société Brésilienne de Psychanalyse de São Paulo (SBPSP), ainsi que des organisations des candidats en général pour la démocratie des institutions psychanalytiques. Le texte repose sur deux points principaux: (1) l'importance du groupe de collègues dans la formation psychanalytique, aux côtés du tripode - analyse, supervision, études théoriques - et de la participation à la vie institutionnelle; (2) et les rites démocratiques qui valident le choix des représentants des candidats pour leurs pairs.

Mots-clés: psychanalyse, démocratie, formation psychanalytique


 

 

Hoje, com um grupo de colegas membros filiados,2 assumimos a Diretoria da Associação dos Membros Filiados (AMF). Agradeço a Eduardo de São Thiago Martins, que me antecedeu nesta presidência, e aos demais colegas que estiveram conosco nos últimos dois anos, a experiência de trabalho conjunto que me possibilitou ter a ousadia de me candidatar para a diretoria atual. No Brasil, vivemos tempos em que acontecimentos políticos e sociais abalam nossas instituições democráticas, o que torna fundamental a reflexão sobre a democracia e os processos que garantem sua existência.

Em meados de 2018, ao considerar a possibilidade de me candidatar à nova diretoria da AMF, deparei-me com a seguinte citação, atribuída a Ernest Hemingway: "Quem estará ao meu lado no front? E isso importa? Mais do que própria guerra".

Quem estaria comigo no front? Esse questionamento permeou muitas conversas desde então, a partir das quais se constituiu o grupo que hoje assume a Diretoria da AMF. Somos um grupo diverso, formado por colegas que estão em diferentes momentos de vida e da formação no Instituto de Psicanálise. Não nos originamos da mesma pátria. Não compartilhamos de nenhuma religião. Vindos de lugares diferentes, o que nos torna companheiros é a necessidade de conversa que urge, diálogos que pretendemos aprofundar e expandir ao longo dos próximos dois anos.

Para além da composição desta diretoria, ora candidata e agora eleita, questiono-me sobre o papel de nossos companheiros de front na formação psicanalítica.

Em nosso modelo de formação, temos nos dedicado a pensar sobre as funções da análise do analista, das supervisões, dos estudos teóricos e mesmo sobre a importância da participação dos membros filiados na vida institucional. Pouco falamos sobre o papel da irmandade, dos amigos que aqui encontramos, na formação analítica e na constituição do core do Instituto de Psicanálise (Suannes & Bracco, 2014). Pouco falamos, muito vivemos.

Muitos de nós se lembrarão de que, desde antes da entrada no Instituto, houve algum colega com quem conversamos, de quem procuramos saber sobre a Instituição. Diálogos que nos serviram de estímulo ou fonte de resistência. Eu tive os meus, eu fui o de alguns. E, assim, desde a pré-história de cada um de nós, vamos desenhando nossa formação, como a vida, permeada pela arte de encontros e desencontros, deixando marcas que, com aquelas deixadas por nossos analistas e supervisores, fazem parte dos analistas que somos. Com nossos companheiros dialogamos, em trocas horizontais, sobre os invariantes que nos unem: a psicanálise como ofício e a escolha deste Instituto para o momento atual de nossa formação. Nessas conversas, compartilhamos nossas inquietações sobre a clínica, sobre os custos emocional e financeiro dessa formação, e a partir delas surgem os projetos que são levados adiante como propostas do grupo à Instituição. Também são os colegas que leem primeiro nossos escritos, antes que sejam publicados, e que nos propõem revisões, quantas forem necessárias.

Em "Totem e tabu", Freud (1912-1913/2012) se refere ao papel da fratria para a instauração e a manutenção da democracia. No homem primitivo - e aqui, o homem primitivo não é o que viveu num sistema tribal, mas aquele que habita cada um de nós -, o pai da horda é ao mesmo tempo adorado e odiado, é o que protege e o que se incide sobre o clã com seu autoritarismo cruel. Para derrubá-lo, a irmandade abre mão da disputa e da competição por seu lugar, e se estabelece um pacto em prol da ordem no clã. Ao ser devorado, as características totêmicas desse pai são incorporadas pelo grupo, e mantém-se viva sua memória, com o custo de abrir-se mão do totalitarismo. Sobrevém um período democrático, até que um novo totem seja eleito, para ser posteriormente derrubado pela nova geração, o que se repete de tempos em tempos.

Na humanidade, há uma tendência à instauração do autoritarismo, que precisa ser constantemente questionada e derrubada. Estas são as funções da fratria: questionar e derrubar nossos totens. Nesse sentido, a democracia - tanto no mundo interno quanto nas civilizações e instituições - não é dada, mas precisa ser conquistada a cada dia.

A história do movimento psicanalítico e o desenvolvimento desse pensamento pressupõem um ambiente democrático. Tanto do ponto de vista micro, que se refere à intimidade da sala de análise, quanto do macro, considerando o posicionamento da psicanálise na civilização, só é possível exercê-la numa democracia.

Paradoxalmente, a psicanálise sobreviveu a momentos socioculturais de políticas violentas e totalitárias, resistindo a esses períodos em movimentos migratórios não apenas dos psicanalistas, mas - mais do que isso - de difusão das ideias, do método e das organizações psicanalíticas pelo mundo (Mezan, 2014). Porém, não nos esqueçamos de que o próprio movimento psicanalítico é uma organização humana e, por isso, não está imune a tendências autoritárias.

Nas organizações psicanalíticas, o grupo de analistas em formação é demos - o povo. É um povo que traz em si a complexidade de pertencer e, ao mesmo tempo, não pertencer à sua civilização. Ocupa o lugar do forasteiro, aquele que vem de fora, conquista sua posição e sua voz, mas ainda não garantiu todos os direitos de cidadão.

É nessa complexidade que surge a necessidade de nos organizarmos em associações, como a AMF. Somos uma instituição dentro da instituição, Instituto de Psicanálise - Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em que o povo forasteiro pode se organizar e desenvolver um pensamento do grupo, estabelecendo nosso espaço na instituição em que estamos inseridos.

Como forasteiros, temos o papel do inquietante, daquele que perturba a ordem vigente mediante seus questionamentos. Ao chegarmos a um novo país, é legítimo e necessário perguntarmos qual é seu código de conduta e em que ele se baseia. Por que fazemos determinadas coisas de determinado jeito? São essas razões psicanalíticas ou não? Os questionamentos trazidos pelo estrangeiro permitem que a ordem institucional vigente seja continuamente revista e observada por seus próprios membros, o que é fundamental para a preservação da democracia. Na AMF, assim como na SBPSP e em muitas outras instituições democráticas, temos um rito eleitoral que passa por uma pré-candidatura, período de diálogos e articulações para a composição de uma chapa, seguido de oficialização da candidatura e de divulgação e discussão das propostas, culminando com a votação e a eleição de nossos representantes.

Não é incomum que tenhamos eleições com uma única chapa candidata. Em geral, esse grupo procura incluir os colegas que estão dispostos e interessados em participar por esse caminho da vida na instituição. Essa particularidade pode levar à falsa ideia de que não seriam necessárias eleições para a escolha de nossos representantes.

Antes que eu oficializasse, até mesmo para mim, a intenção de compor uma diretoria para a AMF, alguns colegas começaram a se referir a mim como "a próxima presidente da AMF" e, depois de oficializada a candidatura, como "presidente da AMF". Isso se deu em um período no qual tínhamos o mandato da diretoria anterior em vigência, o que me inquietava. Havia um representante dos membros filiados, e ele era outro, Eduardo,3 e não eu.

Até o momento da contagem dos votos, na última quarta-feira, eu só poderia ser candidata, ou considerar que poderia ser presidente da AMF, se fosse eleita. Caso contrário, correríamos o risco de que eu me tornasse presidente autoproclamada, destituindo o lugar do representante anterior e ainda invalidando a importância do processo democrático.

Independentemente de não termos tido outros candidatos concorrendo a essa posição, o processo eleitoral é vital para a manutenção da democracia: é a validação do representante por seus pares que legitima seu lugar. Se eu o ocupasse antes que ele me fosse legitimado, seria um retorno ao funcionamento totêmico, em que a única lei válida era a arbitrariedade do próprio totem.

 

Referências

Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras completas (Vol. 11). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912-1913)        [ Links ]

Mezan, R. (2014). Parte I: Da história da psicanálise. In R. Mezan, O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Suannes, C. A. M., & Bracco, M. K. (2014). Da horda à comunidade psicanalítica: a função da fratria na transmissão da psicanálise. Jornal de Psicanálise, 47(87), 243-248.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 6/5/2019
Aceito em: 5/6/2019

 

 

1 Texto apresentado no Fórum "Psicanálise e Ciências Políticas - Democracia: Complexidades", em 30 de março de 2019, organizado pela Associação dos Membros Filiados (AMF), na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). O texto original foi adaptado para publicação no Jornal de Psicanálise.
2 Membros da Diretoria da AMF, biênio 2019-2021: Abigail Betbedé, Ana Laura R. A. Castro, Ana Paula O. Marques, Cibele P. Rays, Daniel D. P. de Azevedo, Fabienne Y. C. Ohki, Flávia V. Steuer, Flávio J. Gosling, Juliana P. A. R. dos Santos, Luiz M. G. Reino, Marcio A. Roque, Maria Luiza A. M. Ghirardi, Mariana A. Botelho, Marielle K. Barbosa, Olivia P. Falavina, Paula R. F. Silva, Rafael P. Tinelli, Stephania A. R. B. Geraldini. Conselho fiscal: Elisa M. P. C. Rodrigues, Fabio P. Sato, Maria Cristina Hohl, Mônica J. F. Saliby, Sylvia T. Puppo Neto, Ymara L. C. Vitolo.
3 Eduardo de São Thiago Martins, presidente da AMF, no período de 2017 a 2019.

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