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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

Do mito ao show de realidade: procusto e o Big Brother1

 

From myth to reality show: Procusto and the Big Brother

 

Del mito al show de realidade: Procusto y el Big Brother

 

Du mythe à la téléréalité: Procusto et le Big Brother

 

 

Thales Andrés Carra

Membro filiado ao Departamento Formação em Psicanálise - Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo. thalescarra@gmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho propõe um diálogo entre o mito de Procusto e o programa Big Brother Brasil por meio do discurso psicanalítico. Observa-se que, assim como no mito, no programa estão presentes a agressividade e a lógica de exclusão das diferenças por meio do uso de rituais de sofrimento e de práticas de eliminação para a obtenção de prazer sádico e afirmação de si. As longas provas de resistência, as humilhações e os sofrimentos aos quais os participantes do programa são submetidos, bem como os "paredões", são práticas párias às realizadas por Procusto em seu leito torturante e aniquilador. O reality show mostrou-se como um meio para dar vazão às pulsões agressivas que devem ser renunciadas para a cultura, como a crueldade e a vontade de matar. Contudo, não de uma forma sublimada, mas como imperativo de gozo do ódio sobre corpos reais que aparentam ser ficcionais - meros jogadores de um espetáculo televisivo.

Palavras-chave: sadismo, narcisismo, agressividade


ABSTRACT

This paper compares Procusto myth with Big Brother Brazil TV show using psychoanalytic discourse. It was observed that, like Procusto, the reality show is about practices and rituals of suffering for elimination of differences, self fortification, and sadism porpouses. The contestants are usually submitted to exhaustive prolonged tasks, humiliation, and suffering actions similars to the practices performed by Procusto on his torturing and annihilating bed. This TV program has shown itself as a mean to discharge aggressive drives that must be renounced for culture, such as cruelty and the desire to kill. However, not as a sublimated form, but as an imperative of satisfaction over real bodies that seems to be fictional - mere contestants of a television show.

Keywords: sadism, narcissism, aggression


RESUMEN

Este artículo compara el mito de Procusto con el programa de televisión Big Brother Brasil utilizando el discurso psicoanalítico. Se observó que así como en el mito, es un programa sobre agresividad y eliminación de las diferencias por medio del uso de rituales de sufrimiento y prácticas para obtención de placer sádico y afirmación de sí. Las pruebas de prolongada duración y desgaste físico, las humillaciones y los sufrimientos son prácticas similares a las realizadas por Procusto en su lecho torturante. El reality show se ha mostrado como un medio para dar flujo a las pulsiones agresivas, restringidas por la cultura, como la crueldad y la voluntad de matar. Sin embargo, no de una forma sublimada, sino como imperativo de satisfacción del odio sobre cuerpos reales que aparentan ser ficcionales - meros jugadores de un espectáculo televisivo.

Palabras clave: sadismo, narcisismo, agresividad


RÉSUMÉ

Cette étude propose un dialogue entre le mythe de Procusto et l'émission télévisée Big Brother Brasil, à travers le discours psychanalytique, particulièrement le discours freudien. On peut observer qu'à la manière du mythe, sont présentes dans l'émission l'agressivité et la logique d'exclusion des différences par l'utilisation de rituels de souffrance et de pratiques d'élimination pour l'obtention de plaisir sadique et d'affirmation de soi. Les longues épreuves de résistance, les humiliations et les souffrances auxquelles les participants de l'émission sont soumis, ainsi que les "paredões" (les éliminations) sont des pratiques similaires à celles effectuées par Procusto dans son lit torturant et annihilateur. La télé-réalité s'est révélée un moyen de donner libre cours aux pulsions agressives auxquelles on doit renoncer pour la culture, comme la cruauté et la volonté de tuer. Cependant, non pas de manière sublimée, mais comme impératif de jouissance de la haine sur des corps réels qui semblent être fictionnels - de simples joueurs d'un spectacle télévisé.

Mots-clés: sadisme, narcissisme, agressivité


 

 

Introdução

Amargurando queda constante nos índices de audiência em outros países, no Brasil, o Big Brother, programa no formato reality show, completou em 2018 a sua maioridade conquistando os melhores números de espectadores em seis anos (Oliveira, 2018). Mas o sucesso não se limita aos índices televisivos. Segundo levantamento realizado pelo El País, no Brasil, o termo "BBB" foi a principal busca do ano no Google em 2013, 2014, 2015 e 2017 (Oliveira, 2018).

Para dar uma dimensão do sucesso nas redes, em um mesmo dia o volume de buscas da frase "quem ganhou a prova do BBB18" teve semelhante ordem de grandeza de buscas sobre o pedido de prisão do ex-presidente Lula (Oliveira, 2018).

A frase em questão se referia a outro recorde numérico obtido pelo programa: a prova de resistência mais longa de toda a sua história. Foram 43 horas sem comer, beber, dormir ou ir ao banheiro, com um detalhe significativo: por precaução médica, a prova foi encerrada antes da desistência de todos os participantes, isto é, sem que houvesse apenas um único resistente vencedor.

Tais provas determinam as posições no jogo, os prêmios e podem estabelecer também as condições a que os participantes serão sujeitos ao longo da semana, como a quantidade de alimentos ofertada ou o castigo a ser imposto.

O vencedor da prova do "anjo", por exemplo, tem um lado "monstro" que deve escolher dois participantes para serem submetidos a um castigo durante alguns dias, como ficar acorrentado com outro participante, ter de manter-se fantasiado e/ou realizar ações estapafúrdias, como pentear um macaco ao tocar de uma sirene.

Para completar, a audiência não participa apenas passivamente ou com comentários na internet. Em uma prova de resistência na qual os participantes ficaram confinados em um salão sem poder sentar ou deitar no chão, nem fazer necessidades fisiológicas ou gritar, quem definia a iluminação e o clima no interior da sala era o público, por meio de votações na internet. As insalubres opções eram frio, calor, chuva, muita chuva, garoa, vento, claro e escuro.

Segundo José Bonifácio de Oliveira, o Boninho, diretor do programa, "O 'BBB' não é cultura. É um jogo cruel" (Michael, 2010). Com efeito, o reality show é polêmico por suas "brincadeiras" sádicas, que Silvia Viana (2013) denomina rituais de sofrimento.

Mais uma vez o gênio maligno do programa nos dá um ingrediente da receita de sucesso:

Ele [o programa] dá o poder de o cara que está em casa ir matando pessoas, cortando cabeças. Não é um jogo de quem ganha. Para o cara de casa, é um jogo de quem você elimina. Só no último programa é que é feita a pergunta: "Quem merece ganhar?". (Michael, 2010)

Enquanto os participantes passam pelos rituais de sofrimento, transfere-se aos telespectadores o direito de torturar, julgar e eliminar, como fazia Procusto.

Na mitologia grega, Procusto, assaltante e torturador, ofertava hospedagem aos viajantes em trânsito pela via-sacra entre Atenas e Elêusis. Caso o hóspede fosse maior que a cama disponibilizada, era mutilado até que se encaixasse; caso fosse menor, era esticado para a acomodação exata ao leito de morte.

Diz-se ainda de Procusto que, ao ter sua atitude questionada pela deusa Atena, argumentou que utilizava seu leito para fazer justiça ao acabar com as diferenças entre os homens. Por fim, Procusto teria sido capturado por Teseu, que impôs ao torturador o mesmo método, cortando-lhe a cabeça e os pés.

Para Kehl e Bucci (2004, p. 16), o mito no sentido tradicional é o sistema criador de significações que mascara o desamparo humano no reino da linguagem - um discurso ficcional sobre o que não somos capazes de transmitir nos padrões da realidade. Pode-se interpretar o mito de Procusto como um símbolo da crueldade de se impor um ajuste de todos a uma medida arbitrária. Ademais, tal mito indica que há satisfação na crueldade e uma falsa impressão de se fazer justiça ao se impor a própria medida.

No contexto social espetacular, o mito hoje pode ser visto como mitos olhados; e na TV, a legitimação e a autorização de práticas de linguagem que possibilitam a síntese do mito (Kehl & Bucci, 2004, p. 19). Assim, de forma análoga ao mito de Procusto, o Big Brother Brasil, que promete a seus candidatos um prazer futuro via dinheiro e fama, assemelha-se a uma hospedaria em que é proporcionada ao telespectador a satisfação da espiada sádica e da participação ativa, por meio de votações, na eliminação dos que não se adaptam ao gosto do público.

Nessa conjuntura e com base na teoria psicanalítica, em especial no discurso freudiano, o objetivo em primeiro plano neste trabalho é buscar os elementos do Big Brother Brasil que o tornam sucesso e relacioná-los ao mito de Procusto. Na sequência, o objetivo é abordar a relação entre os rituais de sofrimento do BBB e o sujeito na cultura da atualidade.

Vale ressaltar que o trabalho não se trata de um diagnóstico social, mas de apenas apontar para possibilidades interpretativas sobre o que conduz o público televisivo ao encanto com o BBB.

 

A crueldade e afirmação de si em Procusto e no Big Brother

O Big Brother Brasil é um entretenimento espetacular que tem como um de seus objetivos a satisfação de desejos sádicos. A prática da tortura física e psicológica é um elemento-chave de sucesso do programa. O longo confinamento, a falta de privacidade, a criação de conflitos, a vigilância constante e a ameaça de eliminação fazem parte da estrutura do modelo proposto ao reality show. Somam-se a isso os desafios, por vezes humilhantes e desgastantes, aos quais os participantes são submetidos rotineiramente.

Dentre os tipos de prova elaborados pela direção do programa, as de resistência impõem aos participantes as situações mais torturantes. Na edição de 2009, a direção do Big Brother Brasil promoveu uma prova-castigo particularmente cruel. Tratava-se de confinar os integrantes em um quarto monocromático, totalmente branco e sempre iluminado, e só permitir sair para ir ao banheiro. Quem não resistisse ao castigo poderia disparar uma sirene e ser automaticamente eliminado do programa.

Os rituais de sofrimento estão presentes em todas as edições porque é o que o público demanda. Por meio do programa se transfere às massas o direito de manifestar a pulsão de morte sobre os corpos ofertados. Prestigiar as torturantes provas de resistência ou as humilhações é identificar-se "procustianamente" com o malfeitor e obter uma satisfação substitutiva para os impulsos inconscientes de agressividade.

Mas o espetáculo tem mais a oferecer que a passividade de se assistir ao sadismo. A participação ativa da audiência é outra pedra angular do bbb. Conforme observa Viana (2013), o programa conquista o engajamento nos rituais de sofrimento pela votação, eventualmente escolhendo a forma de crueldade a ser aplicada e semanalmente elegendo o "eliminado" no "paredão", que em algumas ocasiões chega a computar centenas de milhões de votos.

No BBB, é o julgamento do público votante que determina quem vai ou não ser aniquilado. Os critérios de escolha são subjetivos e evidentemente variam conforme o roteiro de vida encenado pelo participante.

Segundo Campanella (2008), em geral, o modo de os participantes tomarem suas decisões, escolhendo pela emoção ou pela razão, bem como o conteúdo da conversa e a articulação na dinâmica do jogo, são os principais fatores que o público considera para amar ou odiar um deles.

Contudo, até mesmo "as pequenas diferenças" são suficientes para fundamentar o ódio. Freud lembra que estarão sempre presentes os sentimentos de aversão e hostilidade diante das ameaças do diferente (Freud, 1921/2011, p. 56). Incluem-se nisso as manifestações de intolerância à crença religiosa, à raça, à orientação sexual, ao estrangeiro ou à opinião política.

Com efeito, os próprios participantes do bbb são capazes de manifestar entre si intolerância e desejos de eliminação - e estimulados a fazê-lo. Por isso, algumas vezes o programa protagoniza situações socialmente constrangedoras entre os participantes, como quando uma competidora chegou a dizer sobre a possibilidade de um refugiado da Síria ganhar: "Porra! Não tem um brasileiro melhor do que alguém de fora para ganhar o programa?" (Michael, 2018).

É o que se observa do mito de Procusto no Big Brother: a necessidade de eliminação da diferença. Procusto elimina as partes de seus hóspedes que sobram ou estica o que falta para completar a cama na intenção de eliminar o que possa ser inadequado ao tamanho de seu leito, ou, dito de outra forma, matar o que não cabe na sua medida, sob o pretexto de se fazer justiça.

Conforme Viana, o simples fato de apenas um entre quinze receber o prêmio já deixa claro que o bbb é mais que uma competição na qual um vence, mas um jogo no qual todos os outros perdem (2013, p. 21). Assim como Procusto, o programa não está falando de justiça, mas de um jogo de eliminação, isto é, de morte metafórica via "paredão" - termo que remete às execuções por fuzilamento em Cuba (Viana, 2013, p. 45).

Por outro lado, não é sempre que uma diferença no outro fundamenta o desejo de eliminação. Há de se considerar a necessidade de afirmação de si ante as ameaças do mundo interior. Como o Eu não tem fronteira interior, isto é, não há limite claro entre o Eu e o Id, o Eu busca proteger-se dos estímulos internos desagradáveis da mesma maneira que se protege dos provenientes do mundo exterior (Freud, 1920/2010b, p. 191).

Assim, desejos de origem interna que possam ferir ou ameaçar o Eu e o ideal do Eu em sua relação com o mundo exterior são projetados em objetos, considerando como "fora" as características próprias indesejáveis e estranhas ao sujeito. Nesse contexto, o Big Brother Brasil apresenta-se como um meio para a eliminação daqueles que realizam atos tentadores, porém proibidos ao Eu, como ser ganancioso, imoral ou simplesmente não atender aos anseios sociais. Vide as justificativas para eliminação também serem pautadas em ideais, como quando algum participante é votado por "jogar sujo" ou criar intrigas.

A melhor estratégia para o participante é mostrar ao máximo ser tudo aquilo que o senso comum acha positivo e desejável, como ser carismático, bonito, inteligente, culto, ético e solidário.

Conforme Viana, esses shows buscam a "excelência", que é um ideal de exceção dos participantes (2013, p. 96). Algo muito semelhante ao que Freud designou de Ideal do Eu (Freud, 1914/2010a, p. 40). Trata-se de uma tendência regressiva ao narcisismo vivido na infância e, consequentemente, à possibilidade de hostilizar o que possa ameaçar o amor a si - neste caso, desejos do Id incompatíveis com o Eu e seu ideal projetado.

Outro triunfo do princípio do prazer na participação da audiência é a possibilidade de o público transfigurar experiências angustiantes sofridas de forma passiva em uma forma ativa. No caso do Big Brother Brasil, trata-se de transformar a ameaça ou sensação de ter sido eliminado em ato de eliminação, ou ainda participar ativamente dos castigos aos participantes em resposta às desprazerosas experiências sofridas ao longo da vida.

Freud exemplifica essa tendência à repetição e à transfiguração no ensaio "Além do princípio do prazer" (1920/2010b). Ao observar uma criança de um ano e meio que, após a mãe deixá-la durante algumas horas, brincava com um carretel o jogo "ir embora", simulando ativamente a experiência de abandono, Freud notou que "as crianças repetem, brincando, o que lhes produziu uma forte impressão na vida, que nisso reagem e diminuem a intensidade da impressão e tornam-se, por assim dizer, donos da situação" (Freud, 1920/2010b, p. 175).

Certamente há razões para a demanda da eliminação do bbb como transfiguração ativa pela angústia de sermos eliminados, descartados. Conforme Tales Ab'Saber (2004), as ansiedades radicais, a fome, a paranoia que os participantes do BBB vivem, com as quais brincamos, têm correspondência efetiva na própria ordem da vida social.

O Big Brother Brasil possibilita por algumas semanas que nos tornemos os algozes das ameaças que diariamente sofremos passivamente, como a escassez de recursos e o risco de demissão ou de rupturas em relações amorosas. Em suma, nessa forma cruel e odiosa da eliminação há um triunfo do princípio do prazer sobre a situação traumática de ter sido e poder ser eliminado.

Constata-se, em primeiro plano, que Procusto e o Big Brother Brasil são um retrato do que há de sórdido no humano e que a cultura não dá conta de extinguir a agressividade, mas encontra no mito olhado, no espetáculo, um dos meios para a satisfação dos desejos inconscientes de crueldade e de fortalecimento narcísico.

Embora possam ser levantados os elementos de sucesso do programa e relacionados à natureza humana, novas questões se impõem: deve-se considerar que as manifestações agressivas projetadas no bbb implicam danos ao outro, ou trata-se apenas de ficção televisiva? Se implica danos, como permitimos e participamos passiva e ativamente dessas crueldades sem que a consciência nos perturbe?

 

Big Brother e o mal-estar na televisão

Talvez o principal apelo junto aos telespectadores seja a promoção de conflitos e provocações aos participantes. Segundo Campanella (2008), são as situações controvertidas no programa que os fãs almejam ver. "Participantes sem personalidade [são] o pior pesadelo para um fã de bbb". A interpretação do autor é que sem "personalidade" não há conflito.

Conforme Viana, as tão características cenas de bundas ociosas à beira da piscina são deixadas de lado pela edição ao mais sutil sinal de tramoia, manipulação ou paranoia (2013, p. 29). Aqui, observa-se que ansiar o "circo pegando fogo" reflete não só o prazer silencioso na desgraça do outro, mas também o desejo de guerra, a hostilidade de um contra todos e de todos contra um, e a revolta com a imposição da cultura de amar o próximo.

Mas de imediato é um exagero comparar os conflitos do programa com a realização concreta de uma guerra e seus efeitos físicos reais. Sabemos, por exemplo, que não morre quem vai para o "paredão". Ademais, os participantes sabem que estão sendo filmados, sabem que cada diálogo conta no jogo. No fim, fingimos espiar, olhar pela fechadura, o que na verdade é puro exibicionismo escancarado. Tudo isso aponta para a dimensão ficcional do show de realidade.

Nessa perspectiva, em sua coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo, Calligaris (2012) considerou que a participação no Big Brother Brasil não passa do cumprimento de um roteiro pelos participantes. Ao comentar um caso de uma participante que teria sido abusada na casa do bbb enquanto estava inconsciente pelo consumo de álcool, Calligaris acha bizarro a polícia ter indiciado o acusado (Daniel), pois seria como se estivessem se metendo num palco de teatro ou num set de cinema para prender um ator que teria realizado o crime previsto no roteiro. Para o colunista,

a "realidade" produzida pelos reality shows é duvidosa, e considerar crime o "comportamento inadequado" de Daniel não é muito diferente de a polícia invadir o set de Dormindo com o inimigo para salvar Julia Roberts e prender Patrick Bergin, o marido espancador. (Calligaris, 2012)

Ao longo do texto fica mais claro que Calligaris não está defendendo o acusado ou o ato realizado pelo participante, mas enfatizando que o que se passa no bbb é espetáculo, e as ações são induzidas pelos próprios participantes como parte de um roteiro pessoal.

Contudo, esse artigo logo me fez recordar a polêmica sobre a gravação da famosa cena da manteiga no filme O último tango em Paris (1972), na qual o ator Marlon Brando, sob orientação do diretor Bernardo Bertolucci, encena violentamente uma penetração anal sem o consentimento prévio da atriz Maria Schneider, para que a cena parecesse mais real.

O exemplo é bem próximo do que propõe Calligaris; contudo, não deixa dúvidas de que se trata de um abuso real, mesmo dentro de um set de cinema. A falta de consentimento no caso do bbb ou na produção do filme torna o ato espetacular não mais apenas uma ficção, mas uma violência real.

Embora seja factível que o reality show é mais mito do que realidade, não significa que os corpos dos participantes são fictícios. Segundo Minerbo (2007), o Big Brother é um espetáculo e, ao mesmo tempo, é "de verdade". Ao comparar o corpo dos participantes do BBB com o dos atores quando assistimos a um espetáculo nos moldes clássicos, como teatro, circo e novela, Minerbo (2007) revela que neste último o corpo é representação, pois há entre nós e o corpo dos atores mediações simbólicas, enquanto que no Big Brother, o corpo é pura realidade. "O corpo do ator transcende seu estatuto de mera exibição de carne humana e passa a ter valor simbólico, tornando-se ator no sentido forte da palavra"; por outro lado, "no BBB, o corpo é obsceno, não porque esteja quase nu, mas porque é um corpo-carne, sem valor simbólico, pura realidade, excessivamente 'de verdade' quando comparado com o corpo do teatro, do circo ou da novela" (Minerbo, 2007).

Minerbo (2007) classifica o Big Brother Brasil como uma gladiadora pós-moderna, na qual o público aprecia a obscenidade e a violência que marcam a ausência de mediações simbólicas na relação com o outro. Não é apenas ficção quando o corpo do participante fica mais de 40 horas sem comer, dormir e ir ao banheiro. O corpo não encena as privações - as condições desumanas são reais.

Ainda que no reality show exista ficção, com roteiro e consentimento sobre todas as violências às quais os participantes se sujeitarão, Viana nos lembra que, em tese, não se pode abrir mão da dignidade mesmo que se queira. "Nenhum contrato assinado pelos participantes de reality shows poderia ser válido em qualquer lugar no qual a democracia e os direitos humanos vigoram" (Viana, 2013, p. 89).

Para que o corpo real dos participantes possa ser ignorado, considerado um mero corpo fictício, deve-se romper com a noção de outro semelhante. O próprio Boninho, por exemplo, considera os participantes do Big Brother como seus "ratinhos de laboratório", meros corpos de teste e indignos de consideração - "Quando vejo um Big Brother, atravesso a rua. Não é maldade. Mas é que não me apego" (Michael, 2010).

Contudo, salvo exceções mais perversas, aparentemente não é tarefa fácil para o sujeito da cultura conceber que se opere a ruptura da noção de outro semelhante e regozijemos com a crueldade sem que implique um conflito ou sentimento de culpa. Para isso, ressalto dois fatores que podem compor uma solução de compromisso ante o conflito: a mediação televisiva e o imperativo de gozo.

Graças à mediação da televisão e ao seu consequente obscurecimento da realidade, os atos de crueldade são reduzidos à ficção, permitindo a desumanização dos participantes - tornam-se não mais pessoas, mas meros personagens ou participantes de um jogo televisivo.

Assim como na formação de um sintoma há compromisso, o desejo sádico encontra espaço para manifestação porque parece ser apenas uma brincadeira fantasiosa, distante da realidade e do uso de corpos reais. Ora, se a crueldade via ficção não ameaça a perda de amor, não há sentimento de culpa. O próprio programa estimula a participação, incentiva que se vote e se torture.

Esse estímulo é o que Kehl e Bucci (2004, p. 60) denominam imperativo de gozo, que, no caso, trata-se de gozo do ódio. Para os autores, na atualidade, o inconsciente foi desimpedido de suas antigas restrições porque o Supereu passou a se apresentar do lado dos imperativos da sociedade de consumo (Kehl & Bucci, 2004, p. 60). Ele recebe a demanda e impõe ao Eu o imperativo da satisfação pulsional, seja ela de morte ou de vida, reduzindo as exigências de interdição do excesso. Assim, o Supereu não é somente permissivo por encontrar bons motivos para a eliminação da diferença, mas também exige do Eu a satisfação de seus desejos sádicos.

Kehl e Bucci (2004) propõem ainda que a televisão e seu fluxo contínuo de imagens que nos oferece o puro gozo dispensam o espectador da necessidade de pensar. Isso porque o gozo é incompatível com o pensamento, pois corresponde exatamente ao momento de pausa na premência da atividade psíquica - a descarga de energia psíquica equivale ao relaxamento da tensão que vinha movendo o trabalho psíquico (no caso, o pensamento) (Kehl & Bucci, 2004, p. 57).

Para os autores (2004), com base no conceito platônico, o pensamento é diálogo interno que inclui necessariamente o outro. O sujeito que pensa precisa, no mínimo, dar lugar a uma voz que conteste ou duvide daquilo que lhe parece evidente (Kehl & Bucci, 2004, p. 147). Se o contato com o outro não passa pela reflexão, pela simbolização do outro, há de ser sempre um contato ameaçador e violento (Kehl & Bucci, 2004, p. 99).

Ora, se o espetáculo cessa o pensamento e sua lógica não depende do pretexto de nenhum ideal ético por parecer ficção, mas apenas a cartarse, ele opera diretamente sobre o circuito da satisfação pulsional, convocando os sujeitos a gozar sem restrições (Kehl & Bucci, 2004, p. 157).

Assim, as manifestações da pulsão de morte encontram refúgio na televisão. O reality show mostra-se como meio convidativo para dar vazão às pulsões agressivas que devem ser renunciadas a favor da cultura, como o sadismo e a vontade de matar. Porém, não de uma forma completamente ficcional, mas sobre corpos reais.

 

Considerações finais

Evidentemente que, assim como Procusto, o mote e a lógica de sucesso do programa estão vinculados aos desejos inconfessáveis de agressividade e humilhação. São a espiada sádica no transcorrer dos conflitos entre os participantes e as humilhações a que são sujeitados que a audiência anseia. Trata-se de um entretenimento que faz uso da crueldade e convida o público a participar, e do qual não poucos participam.

Por meio do Big Brother Brasil, assim como no mito de Procusto, aliam-se ao desejo sádico, a necessidade de eliminação da diferença e o fortalecimento narcísico do sujeito.

O programa possibilita a manifestação da hostilidade ao que possa ameaçar o amor a si, sejam ameaças internas, por meio do mecanismo de projeção de características próprias incompatíveis com o Eu, sejam ameaças externas, isto é, "as pequenas diferenças" no outro, capazes de mobilizar o desejo de aniquilação.

Ademais, eliminar via "paredão" do Big Brother Brasil possibilita transfigurar as ameaças de desamparo que possuem correspondência efetiva na própria ordem da vida social, como o abandono e o desemprego.

A cultura regida pelo espetáculo é a que convoca os sujeitos ao gozo. Como resultado, a atuação do Supereu ante a agressividade pode ser menos repressora ou, ainda, pelo contrário, tornar-se imperativa de gozo. O público do bbb é ordenado a satisfazer ali seus impulsos agressivos sem que operem mecanismos de interdição, ofuscados também pela mediação televisiva e pela ausência do pensamento.

Por fim, cabe ressaltar que embora a pulsão de morte esteja sempre presente e o programa seja um meio para manifestação dos desejos sádicos e de eliminação da diferença que não implica em atos absolutamente concretos, deve-se lembrar que os corpos utilizados são reais.

Para que não sejam costumeiras as práticas de violência e ruptura da noção de outro semelhante, como se fossem as únicas maneiras eficientes para lidar com a diferença, devem-se considerar outras formas de a pulsão de morte ser parcialmente satisfeita, que estimulem o pensamento e permitam o reconhecimento do estrangeiro que nos habita, de modo a evitar a prevalência da destrutividade contra o outro.

 

Referências

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Recebido em: 4/2/2019
Aceito em: 1/6/2019

 

 

1 Artigo baseado na monografia para conclusão do curso "Fundamentos da psicanálise e sua prática clínica", do Departamento Formação em Psicanálise - Instituto Sedes Sapientiae.

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