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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

NOTAS INTERNACIONAIS

 

Unheimlich em Nova Iorque: Schreber, Sabine Spielrein e Zvi Lothane

 

Uncanny in New York: Schreber, Sabine Speirlein and Zvi Lothane

 

Lo siniestro en Nueva York: Schreber, Sabine Spielrein y Zvi Lothane

 

L'inquiétante étrangeté à New York: Schreber, Sabine Speirlein et Zvi Lothane

 

 

Roosevelt M. S. Cassorla

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCAMPINAS). Campinas. roocassorla@gmail.com

 

 


RESUMO

A partir do encontro com um analista norte-americano, Henry Zvi Lothane, o autor relata experiências vividas em Nova Iorque, onde esteve a convite da Sociedade de Psicanálise da Universidade Columbia. O texto aborda aspectos da psicanálise norte-americana ao mesmo tempo que discute as ideias de Lothane. Esse analista, após exaustivos estudos documentais, propõe que Schreber foi vítima do poder da psiquiatria e que Jung mentiu a Freud sobre sua relação com Sabine Sperlein. O texto inclui uma carta traduzida do russo por Lothane, em que Sabine mostra sua capacidade de se observar e pensar no que observa.

Palavras-chave: psicanálise norte-americana, caso Schreber, Jung, Sabine Speirlein, formação analítica


ABSTRACT

From the meeting with an American analyst, Henry Zvi Lothane, the author relates experience lived in New York, where he was invited by the Society of Psychoanalysis of Columbia University. The text addresses aspects of American psychoanalysis while discussing Lothane's ideas. This author, after exhaustive documentary studies, proposes that Schreber was a victim of the power of psychiatry and that Jung lied to Freud about his relationship with Sabine Sperlein. The text includes a letter translated from Russian by Lothane, in which Sabine shows her ability to observe herself and think about what she observes.

Keywords: North American psychoanalysis, Schreber case, Jung, Sabine Speirlein, analytical training


RESUMEN

a partir del encuentro con un analista norteamericano, Henry Zvi Lothane, el autor relata experiencias vividas en Nueva York, donde estuvo a invitación de la Sociedad de Psicoanálisis de la Universidad de Columbia. El texto aborda aspectos del psicoanálisis norteamericano al mismo tiempo que discute las ideas de Lothane. Este analista, tras exhaustivos estudios documentales, propone que Schreber fue víctima del poder de la psiquiatría y que Jung mintió a Freud sobre su relación con Sabine Sperlein. El texto incluye una carta traducida del ruso por Lothane, en la que Sabine muestra su capacidad de observarse a sí misma y pensar en lo que observa.

Palabras clave: psicoanálisis norteamericano, caso Schreber, Jung, Sabine Speirlein, formación analítica


RÉSUMÉ

De la rencontre avec un analyste américain, Henry Zvi Lothane, l'auteur relate des expériences vécues à New York, où il avait été invité par la Société de Psychanalyse de l'Université de Columbia. Le texte aborde des aspects de la psychanalyse américaine tout en discutant des idées de Lothane. Cet auteur, après des études documentaires exhaustives, propose que Schreber soit victime du pouvoir de la psychiatrie et que Jung ait menti à Freud sur sa relation avec Sabine Sperlein. Le texte comprend une lettre traduite du russe par Lothane, dans laquelle Sabine montre sa capacité à s'observer et à réfléchir à ce qu'elle observe.

Mots-clés: psychanalyse nord-américaine, cas Schreber, Jung, Sabine Speirlein, formation à l'analyse


 

 

 

Uma pessoa muito especial. Estou conversando com Henry Zvi Lothane no restaurante do Hotel Elysée, em Nova Iorque. Ele fala, sem esconder sua indignação:

- Jung mentiu. Jung mentiu a Freud e Freud fez vista grossa!

Eu estava em Nova Iorque a convite da Universidade Columbia. Mais precisamente, do "Center for Psychoanalytic Training and Research", Sociedade filiada à IPA, que faz parte da universidade. Seria o apresentador da "International Scholar Lecture". Havia escolhido o tema "Fanatismo". Uma forma estimulante para tentar colocar no papel ideias que me assombravam fazia tempo. Se me saísse mal, ficaria triste; mas, se me saísse muito bem, correria outros riscos. Talvez até de escrever um artigo para o Jornal de Psicanálise, sem saber se minha contribuição despertaria alguma curiosidade por parte dos eventuais leitores.

Lothane me contava sobre sua vida, estimulado por minhas perguntas. Escutava-o fascinado, hipnotizado por seu olhar profundo e inteligente, por seu raciocínio rápido, por suas ideias desafiadoras e por sua energia contagiante. Contava-me sobre episódios marcantes, sobre sua relação com a psicanálise. De repente surgiam frases como:

- Schreber foi incompreendido!

- Há que rever a formação dos candidatos!

Frases essas que antecipavam argumentos sólidos que as justificavam.

Tempos depois me dei conta de que havia estado frente a um Duplo, o que me despertara um leve sentimento de Unheimlich (Freud, 1919/2011). Leve porque predominantemente egossintônico, indicando que esse duplo me era mais familiar que desconhecido.

Ele revelava algo do que eu era, mas principalmente do que eu gostaria de ser. Lothane se indignava com aquilo que considerava dissimulado, mentiroso, injusto, passos que poderiam levar ao assassinato da alma, como Schreber havia denunciado. Logo percebi que Lothane se confundia com uma figura paterna.

O "Columbia University Center for Psychoanalytic Training and Research" tem características insólitas. Está dentro de uma universidade e, além da formação psicanalítica, oferece muitos e variados cursos para psicoterapeutas e profissionais de saúde mental. Também se dedica a investigações: desde as que relacionam a psicanálise com as neurociências, com as teorias do apego, até suas relações com o social, passando pela investigação clínica e metapsicológica.

Outro fato insólito: o "Columbia University Center for Psychoanalytic Training and Research" faz parte do Departamento de Psiquiatria da Universidade Columbia. Foi fundado ali, em 1945, por psiquiatras de seu corpo docente. Seu primeiro presidente foi Sando Rado. Minha curiosidade me levou a investigar esses pertencimentos, correndo o risco de ser intrusivo. As vantagens eram evidentes, e intuía que desvantagens eram fruto da complexidade das relações que fazem parte de todas as irmandades.

Logo no meu primeiro dia em Nova Iorque, recebo um e-mail de Lothane: "Soube que você está em Nova Iorque. Gostaria muito de encontrá-lo. Seria possível?".

Instantaneamente me lembrei do nome. Vira um artigo seu, quando revia autores que teriam ideias parecidas com o que eu havia proposto como "Teatro dos Sonhos" (Cassorla, 2003, 2017). Um belíssimo trabalho (Lothane, 2009), em que ele estudava, como personagens dramáticos, os fatos que se manifestam no campo analítico. Estávamos em caminhos próximos sem que nos conhecêssemos. Sentia-me curioso e lisonjeado por seu interesse em ver-me.

Lothane nasceu numa família judaica em Lublin, na Polônia, em 1934. Pouco tempo antes da invasão alemã, em 1941, seu pai se ofereceu como voluntário para emigrar para a Rússia, salvando assim a sua família de ser aniquilada.

Em 1950 a família se muda para Israel. Lothane se forma em medicina em 1960, especializando-se em psiquiatria. Em 1963 emigra para Nova Iorque, onde faz sua formação como psicanalista. Torna-se também professor de psiquiatria na Icahn School of Medicine of Mount Sinai.

Na primeira noite em Nova Iorque os colegas de Columbia me receberam com um coquetel. Conheci muitos analistas que estavam curiosos sobre a psicanálise brasileira. Eu, por outro lado, queria saber da psicanálise norte-americana. Ficaram surpresos ao saber que eu havia abandonado a psiquiatria. Não compreendiam, e eu não compreendia o que eles não compreendiam. O mistério se desfez ao ler os cartões de visita que me entregaram: os médicos se apresentavam com psiquiatras e psicanalistas, e os psicólogos, como psicólogos e psicanalistas.

Logo descobri que os colegas se consideravam psicanalistas relacionais, intersubjetivos, interpessoais etc. Os americanos têm uma longa tradição, que remonta a Harry Stack Sullivan, possivelmente o primeiro psiquiatra e psicanalista que, com sucesso, demonstrou a importância da relação com o outro, tanto nos processos psicoterápicos como no desenvolvimento da doença mental.

Lembrei-me do início de minha formação lacaniana (que abandonei rapidamente), em que a psicanálise norte-americana, confundida com a psicologia do ego, era demonizada. Lacan, como muitos líderes, precisava de um inimigo para fortalecer suas ideias. Eu corria o risco de ignorar os norte-americanos, sem sequer conhecê-los.

As principais teorias norte-americanas foram fertilizadas pelas ideias sobre as relações objetais vindas da Inglaterra. Os pensamentos kleiniano, winnicottiano e bioniano também se desenvolveram em conjunto com ideias de autores norte-americanos1.

Conhecemos os textos de Thomas Ogden, que transita criativamente pelo pensamento psicanalítico, sem prender-se a escolas. Outros autores norte-americanos contemporâneos que estamos conhecendo melhor em nosso meio: Fred Busch, Howard Levine, Jay Greenberg, Theodore Jacobs, Lawrence Brown, Montana Katz, James Fosshage, Robert Caper, Martin Silverman, Donnel Stern, Joseph Lichtenberg, Otto Kernberg, entre outros. São autores que, de forma latente ou manifesta, consideram o processo analítico ocorrendo em um campo intersubjetivo. Não assumem filiações teóricas rígidas. Para nós, de São Paulo, suas ideias não parecem estranhas e abrem possibilidades de diálogo criativo.

A conversa com Lothane nos levou à formação analítica. Suas posições críticas ao modelo Eitington, que predomina nos eua, são claras. Em um texto (Lothane, 2007), critica a figura do analista didata. Pergunta-se: se os institutos avaliam a capacidade dos candidatos por meio de supervisões, seminários clínicos e estudos teóricos, supõe-se que indiretamente se esteja avaliando quanto o candidato se beneficia da análise pessoal. Ora, se isso ocorre, não seria coerente que o candidato escolhesse qualquer analista?

Discute, também de forma desafiante, a perda de liberdade de formação do analista, que deve sujeitar-se a normas burocráticas (número de sessões, tempo de análise), sem que se leve em conta as características da dupla. Não quis interrompê-lo, mas teria gostado de informá-lo sobre a rica discussão democrática que temos tido sobre o assunto, na SBPSP, com posições a favor do atual modelo e outras preferindo que seja modificado.

Em meu encontro com os candidatos de Columbia, discutimos um processo analítico envolvendo uma organização fortemente obsessiva que se apresentava como um muro indevassável. Tive dificuldades com a gíria nova-iorquina, mas os candidatos me ajudaram a passar por cima desse muro. Não conheciam os working parties e se interessaram pelo método "Microscopia da Sessão Analítica", utilizado em parte da discussão.

Nas reuniões científicas, tanto com os membros quanto com os candidatos, não me surpreendi quando alguns se colocaram, sem medo, mostrando seus supostos "erros". Não foi difícil perceber que eles revelavam aspectos inconscientes de forma mais clara que os supostos "acertos". Tínhamos que deixar de lado a condenação moralística para que a rede simbólica do pensamento não fosse atacada.

Lothane escreveu, em 1992, "In defense of Schreber: soul murder and psychiatry" ("Em defesa de Schreber: o assassinato da alma e a psiquiatria"). Com base em um detalhado estudo de cartas e documentos, propõe que Schreber (Freud, 1911/2011) foi vítima do sistema psiquiátrico da época que, mancomunado com interesses variados, estigmatizou o paciente para além de sua doença, mantendo-o preso sem necessidade.

Estuda várias situações, incluindo a personalidade do médico Flechsig, principal personagem do delírio de Schreber. Lothane (1992) nos propõe que o delírio decorria de acontecimentos reais, isto é, nem tudo era delirante. Nada muito diferente do que vivenciamos nos hospitais psiquiátricos quando o sistema médico serve grupos ou pessoas poderosas, fazendo o paciente perder seus direitos de cidadão. O livro escrito por Schreber sobre sua doença era, na verdade, uma tentativa desesperada de mostrar que não era um doente mental - pelo menos, não um doente mental como havia sido diagnosticado.

O New York State Psychiatric Hospital fica no extremo norte de Manhattan, no Riverside. É um edifício gigantesco, e chamam a atenção o silêncio e a limpeza. Os pacientes são divididos em alas, por diagnóstico. No extremo de uma ala se encontravam as salas de aula do Instituto. Lembravam as que temos em São Paulo. Após as atividades da manhã, serviu-se um almoço na própria sala de aula, exatamente com temos feito no crédito "Microscopia", em São Paulo. O clima, afável, era muito parecido.

As reuniões científicas com os membros foram efetuadas em apartamentos de psicanalistas. Em torno de uma mesa (com comes e bebes), 10 a 15 analistas discutíamos os trabalhos selecionados e antes estudados. Surpreendi-me com seu interesse pelas ideias de campo analítico dos Baranger. Referiam-se, com familiaridade, às ideias kleinianas, winnicottianas e bionianas. Não muito diferente do que vivemos em nosso meio. Eles me esclareceram sobre alguns aspectos técnicos da psicanálise relacional, fatos que se coadunavam com nossa forma de trabalhar no Brasil.

Lothane está escrevendo um livro sobre a relação entre Jung e Sabine Spielrein. Com seu grande conhecimento de línguas (fala polonês, russo, alemão, francês, inglês e espanhol), foi em busca do diário e das cartas de Sabine escritos em russo, até então inéditos, lançando novas luzes sobre o assunto.

Coincidentemente, pouco tempo antes, eu havia lido um artigo sobre Spielrein e ficara surpreso com a profundidade e a criatividade de suas ideias, algumas antecipando o pensamento kleiniano. Senti-me triste por perceber que ela era mais conhecida por seu affair com Jung que por sua produção científica.

Sabina Spielrein era russa e judia e foi a segunda mulher a integrar o círculo de Freud em Viena. Em 1904, aos 19 anos de idade, viajou para a Suíça com a intenção de estudar na Universidade de Zurique. Pouco depois da sua chegada, sofreu um "esgotamento nervoso". Internada no hospital psiquiátrico Burghölzli, tornou-se paciente de Eugen Bleuler e do seu assistente Carl Jung, nessa época, com 29 anos de idade.

Spielrein era uma paciente especial que chamou a atenção do corpo médico, participando nas experiências sobre associação de palavras, de Jung e Franz Riklin. Ainda internada, matriculou-se na escola de medicina de Zurique, terminando o curso em 1911. Sua dissertação foi o primeiro trabalho psicanalítico com um paciente esquizofrênico.

Após vários anos de atividade como psicanalista na Europa, Spielrein regressou à União Soviética em 1923, trabalhando até o momento em que a psicanálise foi banida pelo regime de Stalin. Spielrein e suas duas filhas foram assassinadas pelos nazistas, após a invasão da Rússia. Uma coletânea de seus trabalhos foi publicada na Alemanha. O mais famoso desses escritos abordava a destruição, trabalho que inspirou as ideias freudianas sobre a pulsão de morte.2

Em 1906, Jung contou a Freud que tratava uma estudante, que não identificou; um caso difícil que se foi tornando ainda mais difícil, até alcançar um clímax dramático em 1909. Esse episódio não se fez notar até 1980, ano em que o analista Aldo Carotenuto, seguidor das ideias de Jung, publicou o livro A Secret Symmetry: Sabina Spielrein between Jung and Freud, baseado no diário alemão de Spielrein e em cartas trocadas entre Jung e Freud.

Seu livro mostrou que Spielrein e Jung, paciente e terapeuta, haviam se envolvido em um relacionamento amoroso. Jung corria o risco de ser condenado por má conduta profissional e viveu por algum tempo preocupado com a possibilidade de que Sabine provocasse um escândalo. O livro levantou suspeitas de que Jung e Freud tentaram abafar o fato.3

Lothane encontrou o diário de Spielrein e cartas que ela havia enviado a sua mãe, escritos em russo. Dessa forma, descobriu fatos desconhecidos até então. Lothane sugere que Jung mentiu ao dizer a Freud que Sabine continuava a ser sua paciente em 1906. Mostra que Sabine considerava a amizade com Jung como eroticamente colorida, algo como "poesia". "Até agora mantivemo-nos no nível da poesia que não é perigoso, e manter-nos-emos nesse nível...", escreve Sabine em uma carta. Lothane conclui que, se se envolveram ou não com sexo "perigoso" é um fato apenas por eles conhecido. As provas existentes não confirmam um relacionamento sexual entre ambos.

Spielrein desejava casar-se com Jung e gerar o filho de ambos. Para Jung, ela manteve-se como musa, e não como amante. Com sexo ou sem, a sua união era feita de apoio mútuo, amizade e "claro amor". No idioma inglês, nota Lothane, existe uma diferença entre amar e gostar, mas em outros idiomas não se separa o amor do desejo sexual.

Copio trecho de uma das cartas descobertas por Lothane (1999), em que Sabine escreveu a sua mãe. Vemos uma jovem estudante de medicina, apaixonada por seu professor, inteligente e capaz de observar-se e pensar sobre o que observa, de uma forma fascinante. Muito mais do que as pacientes histéricas apaixonadas que conhecemos. O leitor psicanalista terá bastante material para formular hipóteses. "Junga" é o apelido carinhoso que Sabine dava a seu psiquiatra, terapeuta e professor.

Recentemente, Junga terminou seu trabalho que criou uma grande comoção, "Über die Rolle des Vaters im Schicksaal [sic] des Einzelnen", no qual ele mostra que a escolha do futuro objeto de amor é determinada nos primeiros anos de relacionamento da criança com seus pais. Que eu o amo é tão firmemente determinado quanto ele me ama. Ele é para mim um pai e eu sou uma mãe para ele, ou, mais precisamente, a mulher que atuou como o primeiro substituto da mãe (sua mãe sofreu de histeria quando tinha dois anos); e ele se tornou tão imensamente ligado a essa mulher que quando ela estava ausente ele a via em alucinações etc. Por que ele se apaixonou por sua esposa eu não sei, embora isso também seja determinado e ele quisesse me dizer isso, mas o tempo passou e agora eu tenho medo de perguntar. Evidentemente, digamos, sua esposa "não é completamente" satisfatória e agora ele se apaixonou por mim, uma histérica; e eu me apaixonei por um psicopata, e é necessário explicar por quê? Eu nunca vi meu pai como normal. Seu esforço insano de "conhecer a si mesmo" é bem expresso em Junga, para quem sua atividade científica é mais importante do que qualquer outra coisa neste mundo e, em particular, a atividade científica está na direção certa. Um caráter dinâmico desigual, juntamente com uma sensibilidade altamente desenvolvida, uma necessidade de sofrer e ser compassivo ad magnum [ao máximo]. Você pode fazer com ele e obter dele tudo o que quiser com amor e ternura. Duas vezes seguidas, ele se tornou tão emotivo na minha presença que lágrimas rolaram pelo seu rosto! Se você pudesse se esconder na sala ao lado e ouvir o quanto ele está preocupado comigo e com meu destino, você mesma seria tocada pelas lágrimas. Então ele começa a se recriminar incessantemente por sua bondade amorosa, assim eu sou algo sagrado para ele, que ele está pronto para pedir perdão, etc. Eu não posso citar as frases porque é um pouco sentimental, mas você pode muito bem imaginar tudo. Lembre-se de como o querido pai costumava se desculpar exatamente da mesma maneira! É desagradável para mim citar todas as censuras que ele dirigiu a si mesmo, porque somos ambos igualmente culpados ou não culpados. Quantas pacientes do sexo feminino vieram consultá-lo e, sem falhar, cada uma delas invariavelmente se apaixonaria por ele, mas ele só poderia atuar como médico porque ele não amava em troca! Mas você sabe o quão desesperadamente ele lutou com seus sentimentos! O que alguém poderia ter feito? Ele sofreu muitas noites pensando em mim. Também consideramos a possibilidade de se separar. Mas esta solução foi rejeitada por não ser viável porque estamos ambos vivendo em Zurique. Sentindo-me responsável pelo meu destino, mesmo quando ele lamentava enquanto pronunciava essas palavras, ele estava pronto para renunciar a tudo para não ficar no caminho da minha felicidade, embora fosse necessário primeiro descobrir qual era a minha felicidade [palavras ilegíveis]; mas ele tinha motivos para temer o futuro imediato (caso nos separássemos).

Esta conversa ocorreu há quase duas semanas e ambos nos sentimos tão atormentados que nos tornamos literalmente sem palavras. Terminou com isso, com um coração para coração... Ficamos parados [abraçados] na mais terna poesia... "Que amanhã traga escuridão e frio! Hoje vou oferecer meu coração aos raios [do sol]!... [Os adjetivos são masculinos, como se eles se referissem ao humor de Jung, assim como ao dela, nos diz Lothane]. Isso é o que eu quero! Então eu recebo um cartão-postal e uma carta em um dia dizendo que eu não deveria estar triste, e sexta-feira passada, que é um dia antes de ontem, ele me visitou novamente. Poesia de novo e os mesmos protestos, alguma vez em minha vida o perdoarei pelo que ele inventou comigo; ele não dormiu a noite toda, ficou exausto; ele não pode mais lutar. Mas da mesma forma, eu também deveria estar di- zendo: ele nunca me perdoará pelo que eu fiz a ele! A diferença é que eu sei que para ele a atividade científica está acima de tudo na vida e que ele será capaz de suportar tudo em prol da ciência. E mais uma vez, quase duas horas se passaram em êxtase sem fala. Eu também disse que não seria capaz de ir junto com todo esse negócio, como foi discutido anteriormente. Eu sempre serei capaz de resistir. A questão é apenas como o meu intelecto considerará todo esse negócio e o grande problema é que o intelecto não sabe como considerá-lo. De qualquer forma, eu não deveria estar escrevendo para você sobre ele e sua família, mas sobre mim, e isso levanta a questão, seja se render com todo o meu ser a este vórtice selvagem violento da vida e ser feliz enquanto o sol está brilhando, ou, quando os dias sombrios de separação virão, para transferir os sentimentos para uma criança e para a ciência, ou seja, a atividade científica que eu tanto amo? Em primeiro lugar, quem sabe como todo esse negócio vai acabar? "Inescrutáveis são os destinos [caminhos] do Senhor." De qualquer forma, a juventude de hoje olha para essas questões de forma diferente e é muito possível que eu me apaixone novamente e tenha sucessos, ou seja, matrimônio legal.

Mas você não se esquece de que isso ainda está muito distante no futuro e, portanto, não se preocupe. Até agora permanecemos no nível da poesia que não é perigosa, e permaneceremos nesse nível, talvez até o momento em que me tornarei uma médica, a menos que as circunstâncias mudem.

Estou apenas escrevendo para você agora porque não posso me sentir feliz sem a bênção de uma mãe, isto é, sem a aprovação de minhas ações e que você deve se deleitar enquanto eu estiver bem. E depois? No melhor dos casos, não podemos dizer o que acontecerá depois e onde a felicidade nos aguarda. Considere o exemplo mais recente. Uma das pacientes de Jung, em sua tentativa de superar seu amor por ele, foi para as montanhas e se apaixonou e se envolveu sexualmente com um jovem. Ela está agora grávida e o homem que a seduziu acabou sendo uma pessoa de mente pequena e a abandonou imediatamente. Agora ela não podia mais suportá-lo e, em desespero, queria acabar com sua vida, e teria feito isso, se Junga não a tivesse salvado mais uma vez...

(Lothane, 1999, p. 1184)4

Não foi surpresa descobrir que Lothane, em trabalhos posteriores, dedicou-se a estudar o amor.

Nova Iorque me surpreendeu. A maior surpresa, no entanto, foi o encontro com Lothane, quase meu Duplo. Quando nos despedimos ele me disse: "Temos muito em comum. Tua forma de ver o mundo é parecida com a minha. Você, como eu, se preocupa muito mais em como fazer o paciente entrar em contato consigo do que com as teorias". Não havia pensado nisso... Uma boa forma de validar sua intuição... Em tempo: os colegas norte-americanos aprovaram minha Conferência sobre Fanaticism, o que me impeliu a escrever este artigo para o Jornal de Psicanálise.

 

Referências

Caropresso, F (2017). The death instinct and the mental dimension beyond the pleasure principle in the works of Spielrein and Freud. International Journal of Psychoanalysis, 98, 1741-1762.         [ Links ]

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Cassorla, R. M. S (2017). O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment. São Paulo: Blucher-Karnac.         [ Links ]

Freud, S. (2011). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (O caso Schreber). In S Freud, Obras Completas (volume 10, pp. 13-107). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1911)        [ Links ]

Freud, S. (2011). O inquietante. In S Freud, Obras Completas (volume 14, pp. 339-376). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Katz, M. S., Cassorla, R. M. S., & Civitarese, G. (2017). Advances in contemporary psychoanalytic field theory. New York: Routledge.         [ Links ]

Lothane, Z (1992). In defense of Schreber: soul murder and psychiatry. Hillsdale: The Analytic Press.         [ Links ]

Lothane, Z. (1999). Tender love and transference: unpublished letters of C. G. Jung and Sabine Speirlein. International Journal of Psychoanalysis, 80, 1189-1204.         [ Links ]

Lothane, Z. (2007). Ethical flaws in training analysis. Psychoanalytic Psychology, 24(4):688-696.         [ Links ]

Lothane, Z. (2009). Dramaturgy in life, disorder and psychoanalytic therapy: a further contribution to interpersonal psychoanalysis. International Forum of Psychoanalysis,8, 135-148.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 29/5/2019
Aceito em: 31/5/2019

 

 

1 O leitor interessado nas várias vertentes da psicanálise norte-americana pode consultar Katz, Cassorla e Civitarese (2017).
2 Sugiro a leitura de Caropresso (2017) para mais detalhes.
3 As descrições da vida de Lothane e Spierlein foram, também, baseadas em <https://en.wikipedia.org/wiki/Henry_Zvi_Lothane>.
4 Tradução de Lothane do manuscrito russo e tradução minha do inglês.

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