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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

RESENHA

 

A vida?... É logo ali

 

 

Lívia Maria Saadi Ezinatto Dassie

Psicóloga especialista clínica, membro efetivo da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família, membro titular e diretora-executiva do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto, docente da Pós-Graduação em Psicoterapia de Casal e Família de Orientação Psicanalítica na Universidade Paulista-Unip, campus Ribeirão Preto, SP. Ribeirão Preto. lmse2402@yahoo.com.br

 

 

 

Autor: David Léo Levisky
Editora: Blucher, São Paulo, 2018, 274p
Resenhado por: Lívia Maria Saadi Ezinatto Dassie, Ribeirão Preto

Nesse livro, o acaso, os imponderáveis da vida, a superação, a ressignificação e a importância de vínculos criativos estão presentes a todo instante, em um romance que traz a vida com toda a sua complexidade, com tamanha sensibilidade que nos faz entrar em contato com o que há de mais profundo no humano.

Trata-se de um livro sobre a dinâmica de uma família com filhos portadores de deficiências. Se soubermos apenas essa informação sobre o enredo, já é possível começarmos uma ampla reflexão sobre a gravidez e sua grandeza em conceber uma vida, junto com suas alegrias, dores, desejos, expectativas e cuidados diante desta nova vida que vai nascer. Ou melhor, das novas vidas que nascerão junto com essa nova vida. Com isso, vêm também os medos e as fantasias diante desta situação que, mesmo com a gestante tendo os cuidados para que nada de mal afete o filho, traz sempre a parcela de incontroláveis que podem acontecer.

Quem nunca ouviu ou desejou um "Que venha com saúde!", acompanhado da ansiedade diante das ultrassonografias, esperando que o médico diga que está tudo de acordo com o que é esperado e, mesmo depois, no importante momento do parto? Será que podemos pensar que o medo de dar à luz um filho com deficiências está presente em todas as mulheres capazes de conceber e gestar um filho?

Mas, e aquelas que, mesmo detentoras de informações e conhecimentos de que algo que façam possa causar mal ao bebê, ainda assim o fazem? Será negação diante da tamanha angústia que isso desperta? Ou arrogância, ao pensar que nada do que elas fizerem poderia acarretar algum mal ao filho?

Um dos temas em que somos convidados a pensar neste romance é que, vez ou outra, a notícia não é a esperada, e um filho com alguma deficiência nasce. Para os pais, o nascimento de um filho com deficiência provoca uma ferida narcísica, marca um antes e depois, uma mudança no ambiente familiar, no equilíbrio psíquico de cada membro do grupo e afeta até mesmo as condições financeiras, já que muitas vezes a mãe pode precisar parar de trabalhar para se dedicar às maiores necessidades desse filho, além do aumento dos gastos para suprir as necessidades de tratamentos e remédios.

A vida social também sofre uma mudança brusca. De acordo com Korff-Sausse (2007), o nascimento de um filho (sobretudo o primeiro, mas isso se repete a cada novo nascimento) marca a passagem em que um adulto se torna pai, e essa passagem mobiliza as identificações com seus próprios pais. Um filho deficiente não assegura a continuidade da vida. Ao se tornarem pais, estes fazem o luto de sua própria infância e se acomodam na dívida com as gerações anteriores.

Segundo Bydlowski (1997, citado por Korff-Sausse, 2007), em matéria de filiação humana, uma dívida de vida inconsciente amarra os sujeitos aos seus pais, aos seus ascendentes. Para os futuros pai e mãe, essa dívida de existência é o pivô da aptidão para transmitir a vida. O deficiente os impede de saldar essa dívida.

A história inicia-se com o casal Gabriela e João, com seus filhos Lina, Lucas e Fábio. Lucas tem o diagnóstico de atraso global de desenvolvimento grau leve, e Fábio tem o mesmo diagnóstico, mas com grau moderado. Gabriela se divide entre todas as obrigações do dia a dia, além dos cuidados exigidos por três crianças, sendo duas que necessitam de cuidados extras e têm extrema dependência, junto com as constantes idas a médicos, terapias e prontos-socorros.

Lina aguardava ansiosa a chegada de Lucas para poder brincar e lhe fazer companhia. A descoberta de que esse irmão que nascera não seria o que ela tanto esperou gerou-lhe frustração.

Os pais também sentiram essa frustração de Lina. Após exames genéticos que tranquilizaram Gabriela e João q às chances de que o terceiro filho tivesse alguma deficiência, como Lucas, decidiram-se pela terceira gravidez, e Lina poderia ter esse irmão esperado. Veio Fábio, com necessidades maiores do que as de Lucas.

As relações entre irmãos propiciam a vivência de sentimentos intensos e profundos, como amizade, rivalidade, companheirismo, inveja, ciúme, entre outros. Em uma fratria com a presença de algum irmão deficiente, essas possibilidades ficam diferentes, nas quais os filhos saudáveis ficam na posição de cuidar, de ajudar.

Aumentam, também, as possibilidades de sentimentos como culpa ao seguir com sua vida e seus projetos, em razão de sentir-se responsável por cuidar. Como temos na fala de Lina, ao dizer: "Apesar de ter tomado a decisão de permanecer na França, a sombra de não voltar para ajudar minha mãe e meus irmãos me acompanhava, aflita por assumir, de forma egoísta, os meus projetos" (p. 210).

Lina não tem diagnóstico. É a filha perfeita, saudável, inteligente, com sonhos ousados e ousadia suficiente para tentar realizá-los. Para muitas mães e famílias com outro(s) filho(s) que têm a exigência de maiores cuidados, isso é muito tranquilizador, já que podem pensar em voltar seus cuidados e preocupações para quem "realmente" precisa.

Vemos Gabriela descrevendo Lina desta maneira: "Você era uma criança boazinha. Adaptava-se facilmente às situações, dava pouco trabalho, quase não chorava, a ponto de não me preocupar, deixando-a por sua própria conta" (p. 115). Podemos ir em direção contrária e perguntar: qual(is) é(são) a(s) deficiência(s) de Lina? Será que não podemos pensar que todos os filhos são "portadores de deficiências"? Será que não somos todos que as temos?

Ao perceber, na vida de Lina, repetições de sentimentos, idealismos, arrogâncias vividas por Gabriela na sua juventude, ela se encoraja, enfrentando receios, vergonhas, arrependimentos e traz à tona sua história, desde o início do namoro com João, presenteando Lina com a sua pré-história e mesmo com a sequência, quando ela já havia nascido: "Hoje está mais fácil contar, apesar de certo constrangimento. Não sei o que você irá pensar..." (p. 45).

Temos esse movimento nas famílias - as histórias se cruzam. Como podemos distinguir as histórias que são particulares, privadas, daquelas que são comuns, pertencentes a todos e que devam ser compartilhadas? Devemos pensar que todos temos o direito à palavra. Mas não apenas para falar, contestar e questionar. Direito à palavra também no sentido de ouvir, de ter acesso a esse passado para se sentir pertencente a essa sequência de vidas e histórias de que cada um passa a fazer parte em um dado momento.

Sabemos que, nas famílias, os segredos não são tão secretos, e os não ditos podem até não ser ditos verbalmente, mas, por meio das transmissões psíquicas, as gerações recebem as heranças emocionais de seus antepassados. Podemos interpretar que Gabriela tenha tido a sensibilidade de perceber a necessidade especial de Lina ao decidir convidá-la para conversar e compartilhar com ela suas histórias e, assim, deu-lhe ferramentas, conteúdos, condições para que ela, mediante suas próprias elaborações, conseguisse transformá-los, a fim de conduzir suas escolhas de maneira mais consciente.

Gabriela justifica seu convite para que Lina participasse de toda a história dizendo: "Precisamos conversar, Lina... Já fui adolescente. Lembro-me que na sua idade eu era capaz de fazer coisas sem pensar. Só fui me dar conta das consequências" (p. 40).

Nesse vínculo criativo cada vez mais fortalecido entre mãe e filha, Lina também teve grande colaboração ao ajudar Gabriela com o surgimento de uma ideia sobre um negócio, com a possibilidade de inserir os meninos nesse trabalho, para desenvolver suas capacidades, dentro dos limites de cada um.

Após grave desorganização mental (depressão psicótica grave), exausta de tamanha dedicação em meio a sentimentos diários difíceis, como inconformismo, fracasso e vergonha por ser mãe de dois filhos com deficiência, além da impotência em perceber não poder mudar as realidades de seus filhos, Gabriela renasce ao ressignificar suas expectativas e sua visão de mundo, agora ela, em suas terapias e sessões de psicanálise.

Vemos essa ressignificação ao ler a passagem na qual Gabriela relata: "Descobrir como me desprender das frustrações que feriam a alma perdida em sonhos, para conviver com a realidade objetiva. Não havia culpados, a não ser a inclemência da crítica interna arrasadora e preconceitos pessoais" (p. 94).

Passa, então, a compreender que os meninos têm os seus limites e que algo poderia ser desenvolvido de acordo com o que suas habilidades e limitações permitissem. Consegue reconhecê-los e aceitá-los como são, com seus recursos e limites, além de compreender que não existem culpados de tal situação familiar ter se apresentado dessa maneira.

Será que isso é só para os meninos, para as pessoas com algum diagnóstico? Quanto de trabalho temos no dia a dia para reorganizar aquilo que esperamos de nós e dos outros, com os pacientes nos consultórios de psicanálise, com a realidade daquilo que recebemos ou que damos conta de realizar? Gabriela nos mostra por meio de sua fala: "Acolher os filhos era dar a eles possibilidades para usarem os recursos de que dispunham" (p. 95).

Em meio a tantos outros temas presentes no livro, demasiado humano, com questões tão complexas inerentes à nossa existência, em que, por outro lado, o autor nos presenteia com enorme sensibilidade e com um final tão encantador, qualquer pensamento aqui trazido fica também demasiado reducionista.

 

Referência

Korff-Sausse, S. (2007). L'impact du handicap sur le processus de parentalité. Reliance, 4(26), 22-29. Recuperado em 30 de junho de 2019, de https://www.cairn.info/revue-reliance-2007-4-page-22.htm        [ Links ]

 

 

Recebido em: 7/12/2018
Aceito em: 5/4/2019

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