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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo jul./dez. 2019

 

EDITORIAL

 

Eros

 

 

Ana Clara Duarte Gavião

Editora / jornaldepsicanalise@sbpsp.org.br

 

 

Após nos dedicarmos no número anterior ao tema Thanatos, cujas questões implicadas têm sido bastante discutidas atualmente em função da exacerbação de manifestações de violência e intolerância, nos mais variados contextos clínicos, sociais e políticos, nacionais e internacionais, fica evidente a natureza imperiosa dos instintos humanos, essencialmente animalescos, observáveis no decorrer do tempo e da história em sua característica de "compulsão à repetição", aprisionando a mente em vícios, ainda que em alternância a movimentos criativos que trazem aprendizado e desenvolvimento.

Como sugerido na carta-convite (reproduzida a seguir), uma abordagem epistemologicamente coerente para se pensar a clínica e as teorias psicanalíticas, particularmente quando dinâmicas de descargas sobressaem, não deveria prescindir do modelo original de sonho e de mente de Freud (1900/1990a), em que fica claro que é justamente a impossibilidade de sonhar a principal disfunção psíquica que caracteriza a psicose e outros quadros com fenômenos destrutivos associados.

O aspecto primitivo e instintual inerente aos relacionamentos humanos e que se apresenta por meio de actings contrasta gritantemente com os sofisticados níveis de conhecimento tecnológico alcançados pela ciência, incluindo a "ciência-arte" chamada psicanálise. Eros e Thanatos em permanente pulsar configuram paradoxos, cisões, desconexões, reconstruções, reconexões, criações, avanços, retrocessos, aprendizados, continuamente...

O método psicanalítico pressupõe um tipo de observação clínica extremamente sutil, uma atenção refinada e flutuante aos fenômenos não sensoriais, com disponibilidade para experiências emocionais não necessariamente agradáveis, proporcionando uma espécie de hackeamento do campo intersubjetivo da dupla analítica, para sua maior visibilidade. O equipamento para investigar é a própria mente do analista, o que obviamente requer treinamento intensivo, como em qualquer pesquisa, mas com a peculiaridade de o investigador se incluir como objeto no campo observado. Nesse sentido, a análise pessoal do psicanalista é reconhecida como um compromisso central para seu aprimoramento metodológico - compromisso individual e, também, das instituições de formação em psicanálise.

Passados cem anos da publicação de "Além do princípio de prazer" (Freud, 1920/1990b), talvez possamos nos perguntar se o conceito de pulsão de morte, com toda a sua impetuosidade e consequentes controvérsias, não estaria relativamente subestimado em sua aplicabilidade clínica, um pilar metapsicológico que poderia ser ainda melhor instrumentalizado tecnicamente. O princípio de prazer é concebido como fator determinante de evasões quando há desconforto e fragilidade emocionais, um processo inconsciente primário que avança intersubjetivamente em inescrupulosa destrutividade e que pode passar despercebido até que o estrago se concretize, geralmente tarde demais. O princípio de realidade, por sua vez, promove a tolerância, a continência, a capacidade de autopercepção, o processamento e a simbolização de emoções difíceis de suportar, captando-as do ponto de vista dos sentidos da linguagem estética e verbal e da temporalidade.

Enfrentando a contradição entre a sofisticação dos conhecimentos conquistados pela ciência e a brutalidade com a qual a estupidez humana se expressa, pesquisas recentes na área de neurofisiologia indicam um extraordinário reencontro da psicanálise com seu vértice somatopsíquico. Próximo a nós, o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro publicou o livro O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho (2019) que focaliza a evolução da linha de pesquisa neuropsicológica inaugurada por Freud e que permaneceu ignorada pela neurociência durante décadas.

No livro vemos como o sul-africano Mark Solms1 é uma importante referência, a quem tivemos a oportunidade de entrevistar em 2018.2 Ele se baseou em pesquisas laboratoriais sobre o sistema dopaminérgico de recompensa e punição na gênese do sonho, cuja validação já consolidada entre estudiosos da área representa uma verdadeira refutação ao famoso ataque de Pooper a Freud, revelando que as proposições psicanalíticas são testáveis.

É curioso o relato da experiência pessoal de Ribeiro com os próprios sonhos, incrementada de maneira natural e espontânea durante o início de seus estudos de doutorado na Universidade Rockefeller em Nova York. Nesse período teve que lidar com uma sonolência surpreendente, arrebatadora, ao ponto de até suspeitar de alguma autossabotagem, uma vez que sua presença nas atividades acadêmicas ficou comprometida. No entanto, as elaborações decorrentes desse mergulho onírico inevitável lhe permitiram compreender melhor a função de aprendizagem do sonhar, despertando forte motivação para resgatar

 

1 Psicanalista e neurologista, chair do Comitê de Pesquisa da International Psychoanalytical Association (IPA).
2 "Entrevista com Mark Solms", realizada em 26/4/2018 na sede da SBPSP, pela equipe do Jornal de Psicanálise, 51(94),51-60.

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