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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo jul./dic. 2019

 

EROS

 

Reverie ⇆ figurabilidade: onde bate o coração?

 

Reverie ⇆ figurability: where does the heart beat?

 

Reverie ⇆ figurabilidad: donde late el corazón

 

Reverie ⇆ figurabilité: où bat le coeur?

 

 

Regina Maria Rahmi

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / reginarahmi@uol.com.br

 

 


RESUMO

O artigo propõe examinar, com base em uma vinheta clínica, as condições para o desenvolvimento da figurabilidade em relação dialética com a reverie. E dialoga com estudos de vários autores que se debruçaram sobre o tema, lançando luz a estados não simbolizados, de estagnação rumo à vitalidade psíquica.

Palavras-chave: reverie, figurabilidade, simbolização


ABSTRACT

The article proposes to examine from a clinical vignette, the necessary conditions and resources for a development of the figurability in a dialectical relation with the reverie. The author dialogues with the study of several authors who have addressed the theme, casting light to non-symbolized states, from stagnation towards psychic vitality

Keywords: reverie, figurability, symbolization


RESUMEN

El artículo propone examinar a partir de uma viñeta clínica las condiciones y recursos necesarios para el desarrollo de la figurabilidad en una relación dialéctica con el ensueño. El autor dialoga con el estudio de varios autores que han abordado el tema, lanzando luz a estados no simbolizados, desde estancamiento hasta la vitalidad psíquica.

Palabras clave: reverie, figurabilidade, simbolización


RÉSUMÉ

L'article propose d'examiner à partir d'une vignette clinique les conditions et les ressources nécessaires pour le développement de la figurabilité dans une relation dialectique avec la rêverie. L'auteur dialogue avec l'etude de plusieurs auteurs qui ont abordé le theme, jetant de lumière aux états non-symbolisé de la stagnation à la vitalité psychique.

Mots-clés: reverie, figurabilité, symbolisation


 

 

Introdução

Este artigo parte de uma via que nos leva a refletir a respeito de quais recursos tem a analista para realizar a proposta de caminhar no mundo do que não tem concretude - o espaço do inefável. Esse é o território propício à criação da vida no mundo mental árido da paciente e na mente expectante da analista. Com base em uma vinheta clínica em que a paciente se mostra empobrecida e desvitalizada, procuro discorrer sobre o caminho em direção à circulação viva de Eros no campo analítico.

Em "A interpretação dos sonhos", Freud afirma:

Suponhamos que eu tenha diante de mim um quebra-cabeça feito de figuras, um rébus. Ele retrata uma casa com um barco no telhado, uma letra solta do alfabeto, a figura de um homem correndo, com a cabeça misteriosamente desaparecida, e assim por diante. Ora, eu poderia ser erroneamente levado a fazer objeções e a declarar que o quadro como um todo, bem como suas partes integrantes, não faz sentido. Um barco não tem nada que estar no telhado de uma casa, e um homem sem cabeça não pode correr. Ademais, o homem é maior do que a casa, e, se o quadro inteiro pretende representar uma paisagem, as letras do alfabeto estão deslocadas nele, pois esses objetos não ocorrem na natureza. Obviamente, porém, só podemos fazer um juízo adequado do quebra-cabeça se pusermos de lado essa crítica da composição inteira e de suas partes, e se, em vez disso, tentarmos substituir cada elemento isolado por uma sílaba ou palavra que possa ser representada por aquele elemento de um modo ou de outro. As palavras assim compostas já não deixarão de fazer sentido, podendo formar uma frase poética de extrema beleza e significado. O sonho é um quebra-cabeça pictográfico desse tipo, e nossos antecessores no campo da interpretação dos sonhos cometeram o erro de tratar o rébus como uma composição pictórica, e, como tal, ela lhes pareceu absurda e sem valor. (1900/1987, p. 270)

Nessa citação de Freud, encontramos a conceituação de que a figurabilidade do sonho se expressa por um conjunto de imagens e também falas de cunho metafórico. Como, entretanto, se dirigir, na experiência clínica, ao que ainda não ganhou figurabilidade, permanecendo aquém da possibilidade de simbolização? O trabalho com pacientes que trazem esses elementos constitui um território instigante, que suscita muitas indagações.

Na discussão clínica, utilizarei fragmentos da análise de uma paciente permeados pelo sentimento de vazio e por estados de desvitalização. Esta exposição tem como foco mostrar que, por meio da reverie do analista, os estados primitivos não verbais podem gradualmente atingir figurabilidade onírica.

Lídia era uma mulher altiva, repleta de certezas. Apresentava-se de olhos baixos, sem me olhar nos olhos. Entediada, queixava-se da vida estagnada. Relatava os acontecimentos do cotidiano de modo monótono e interminável. Parecia perdida num mundo cinzento, sem histórias ou personagens, imersa numa área sombria, desprovida de imagens vivas. Um sentimento geral de vazio e uma incapacidade de pensar ou expressar emoções sustentavam um distanciamento afetivo.

Eu percebia que todas as minhas tentativas de lhe dizer algo íntimo não encontravam espaço. Decidi então esperar. Um dia, graças a um súbito mal-estar sentido por Lídia, abriu-se uma fresta. O corpo falava, vivendo esse estado como uma espécie de fraqueza. Aos poucos, revela: "Eu não faço exames de saúde há muitos anos". Diz ainda que teve uma emergência: as dores aumentaram, e, mediante uma intervenção cirúrgica, seu útero foi retirado. Eu me sentia convocada a ser sua testemunha. "Não tenho vontade de nada e, se não fosse por meus filhos, acho que já não estaria viva. Eles ainda precisam de mim." Nas sessões, passou a desfilar uma série de situações em que se sentia sem saída, presa a um destino traçado, uma sina de mulheres tristes.

 

Reverie ⇆ figurabilidade

Certo dia, numa dessas sessões monocórdicas, comecei a ficar sem posição em minha cadeira. Senti uma forte falta de ar, e aí me veio uma imagem: uma mulher submersa na água, de olhos abertos, cabelos longos, imóvel. Longe, escutei a paciente me indagar: "O coração é do lado direito ou esquerdo?", pergunta curiosa, pois ela era uma profunda conhecedora da anatomia humana. Sua voz longínqua, tal qual um eco musical, foi me ajudando a sair do estado onírico relacional, assim como alguém que, naufragando, volta aos poucos à superfície. Pus a mão em meu coração e senti suas batidas.

Naquele momento, delineava-se o paradoxo morte-vida, que impregnava desde sempre o desenvolvimento psíquico da paciente. A pergunta "O coração é do lado direito ou esquerdo?" expressaria sinais de movimento? Uma busca por localizar vida onde tudo parecia estar paralisado? Por outro lado, eu me indagava: não seria uma comunicação de níveis primitivos de não integração da paciente? Ou a expressão de evasão para um estado emocional de desligamento, uma espécie de torpor psíquico tantas vezes observado pela analista, a experiência do que é ser uma morta-viva?

O que me fez pensar que se tratava de um movimento de vida foi ela ter podido formular a pergunta, deixando de lado seu conhecimento teórico e comunicando que tinha coração, mas que não sabia onde batia. Nessas figurabilidades mútuas, analista-paciente, supus se entrelaçarem a vivência de morte e um acordar para algo vital. Concomitantemente, parecia ser uma abertura para a linguagem do afeto - a musicalidade. Isso me levou a prestar mais atenção a minhas próprias impressões físico-sensoriais e às imagens que emergiam em minha mente, como comunicações silenciosas, mas ativas, que poderiam informar sobre a reverie em curso e as transformações em busca de sentido.

Green descreve: "O analista sente uma pressão interna, como se a situação analítica estivesse sob ameaça. Ele é forçado a entrar num mundo ... que requer sua imaginação" e levado a transformar em palavras os estados internos nele evocados. Torna-se necessário utilizar as capacidades psíquicas do analista, de expressão e construção de sentidos, "essa ligação do embrionário e sua contenção dentro de uma forma" (Green, 1975, p. 10).

Em Seminários italianos, Bion tece esta reflexão:

Não é possível cheirá-la, nem a tocar, nem a olhar. É muito difícil de fato afirmar qual é o componente sensível que nos permitiria uma apreensão pelo aparato sensorial quando o assunto é psicanálise. Na medida em que nossa pretensão seja uma perspectiva científica, será natural supor alguma evidência que nos sirva de suporte. ... Posso portanto fiar-me em evidências trazidas pelos meus sentidos, pelo meu aparelho sensorial, e na informação que os meus sentidos me trazem. Não acredito que possamos nos permitir ignorar aquilo que nos dizem nossos sentidos, pois, em qualquer caso que se considere, há escassez de fatos. (1985/2017, p. 11)

Como respaldo a essa reflexão, o autor propõe pôr em evidência este fragmento de um trabalho de Freud: "Há mais continuidade entre a vida intrauterina e a infância precoce do que a impressionante cesura do ato de nascimento nos permite acreditar" (citado por Bion, 1985/2017, p. 12).

No prosseguimento da sessão mencionada, me veio mais claramente que a figura de uma mulher submersa, imóvel, me remetia a um filme que vi muitos anos atrás, O piano (Campion, 1993). A cena que me apareceu foi o momento em que a protagonista, Ada, a mulher muda, e o homem-índio fogem de barco. Para não serem pegos, precisam jogar o piano no mar. O pé de Ada, entretanto, fica enroscado na corda do piano, e ela é arrastada junto. Durante uma fração de segundo, mostra-se em câmara lenta Ada cair no fundo mar, imóvel e com os olhos abertos. De repente, parece acordar e luta para se desvencilhar da corda. Ela retorna ao barco e, graças ao relacionamento com o homem-índio, consegue desabrochar seu primitivo - uma voz humana começa a soar.

De forma magnífica, através de sua imagética, o filme O piano apresenta várias qualidades de vínculo afetivo. Muitas imagens que parecem ficar sem palavras estão aprisionadas por identificações projetivas, que acabam se tornando mútuas. Ada - muda, bloqueada na expressão de uma comunicação, seja consigo, seja com o outro - pode soltar a voz no encontro com o homem-índio, em que há acolhimento. Vejo nesse filme semelhanças profundas com a experiência que tive com minha paciente.

Por essa época, ela disse pela primeira vez: "Só agora está caindo a ficha de que tive uma doença grave. Tudo tão repentino, as dores, a retirada do útero. Nunca imaginei que poderia acontecer comigo". As angústias catastróficas sentidas por Lídia remetiam a um território arqueológico de sua história: relações objetais arcaicas prenhes de violência emocional, não abarcadas pela possibilidade de amparo e elaboração. Sempre de olhos baixos, Lídia evitava o olhar da analista. Seria a expressão de uma intimidade sob suspeita? O medo de aniquilamento?

Suas vivências me conduziam a um território árido, desvitalizado, a experiência da coisa em si impensável. Paciência e disponibilidade foram continuamente postas à prova na abordagem de movimentos que tendiam ao fechamento em si.

A reverie é o lugar onde se sobrepõem a parcialmente obstruída capacidade de sonhar do paciente e o espaço onírico do analista. ... Reflete a elaboração, por vezes silenciosa, de emoções projetadas pelo paciente e a própria emoção do analista induzida pelas projeções do paciente, o que pressiona em direção às fantasias do inconsciente bipessoal. (Civitarese, 2013/2016, p. 299)

A associação que fiz com uma mulher submersa também evoca a imagem de Medusa, uma sacerdotisa do templo de Atena que era cobiçada e desejada por sua beleza. Um dia, Poseidon a possui. Atena fica enfurecida com a traição de Medusa, pois todas as sacerdotisas deveriam manter-se virgens. Atena não tem um olhar de compaixão para com o sofrimento de Medusa. Em vez disso, esta é amaldiçoada e expulsa do templo.

Ressentida, Medusa vai se endurecendo, secando. Todos os que a olham se transformam em pedra. Conhecer Medusa é defrontar-se com uma área mortífera, desvitalizada. A ameaça de aniquilamento é iminente. Um dia, Perseu vai ao encontro de Medusa. Caminha de costas segurando o escudo de Atena, no qual se reflete a imagem de Medusa. Dessa maneira, Perseu evita olhar diretamente nos olhos dela, para não ser morto.

Ao contrário de Perseu, o analista, quando vivencia com seus pacientes um mundo não simbolizado, entra em contato com áreas de não existência. Isso implica suportar não saber e manter certa fé até que algum sentido se dê. As defesas mortíferas por vezes encobrem áreas de vazio e não existência, como no caso de Lídia.

No livro A morte nos olhos: figuração do outro naGrécia antiga, Vernant (1985/2003) diz que três deuses gregos eram figurados por uma máscara: Gorgó (Medusa), Dionísio e Artêmis. O que a máscara evoca? A experiência com o outro na forma que lhe atribuíram. Sob a máscara, esconde-se um rosto mais humano, que poderia revelar uma surpreendente beleza. O autor observa ainda que Platão opõe a categoria do mesmo à do outro - héteron, o outro, opõe-se ao uno enquanto ser. A máscara de Gorgó traduz a extrema alteridade, o temor apavorante do que é o outro, o indizível, o impensável, o confronto com a morte para os que cruzam com seu olhar. Questiono-me sobre disfarces difíceis de ser reconhecidos pelo analista e pelo analisando. Que tipo de máscaras poderia estar encobrindo a falta de vida em Lídia, dentro e fora da análise?Bion comenta: "A reverie é um estado mental aberto a receber ... acolher as identificações projetivas do bebê. ... A reverie é um fator de função alfa" (1962/1991, p. 60). No trabalho com Lídia, a possibilidade de acolher os ruídos, sentimentos de terror, por meio da reverie permitiu o aparecimento de imagens oníricas, como a da personagem do filme O piano e a do mito de Medusa. Acredito que a decisão de esperar, minha escuta silenciosa, pode ter sido o que possibilitou a Lídia formular a indagação "O coração é do lado direito ou esquerdo?", dando notícias de que, naquele cenário de vazio e aridez, pulsava uma vida.

Outro autor que traz algo relevante para este trabalho é Winnicott, com o conceito de espaço transicional, um estado mental intersubjetivo na análise, uma terceira área de experiência entre realidade e fantasia, sendo este o espaço potencial.

A tarefa de aceitação da realidade jamais é completa, nenhum ser humano está livre da tensão de relacionar a realidade interna com a realidade externa, e o alívio dessa tensão é oferecido por uma área intermediária de experiencia que não é posta em dúvida. ... Essa área intermediária está em continuidade direta com a área da criança pequena que se "perde" ao brincar. (Winnicott, 1975, pp. 28-29)

Assim, o espaço entre o adormecer e o despertar ilustra a relação entre dois mundos: o interior faz parte do inconsciente, do sonho, de uma realidade subjetiva; o exterior faz parte de uma realidade compartilhada. Ao me indagar "O coração é do lado direito ou esquerdo?", Lídia me levou a pôr a mão em meu coração e sentir suas batidas, enquanto sua voz, tal qual um eco musical, foi me ajudando a sair do estado onírico relacional. Desse modo, o trabalho na área transicional é o que permite a expansão da malha simbólica do paciente, enquanto o profundo trabalho de continência e transformação é feito na mente do analista, produzindo efeitos no paciente.

Em "A mãe morta", Green (1988) traz uma importante contribuição para a compreensão analítica de estados não vivos, pela internalização primária da mãe deprimida. Para este trabalho, o traço mais rico de sua contribuição tem a ver com o desinvestimento da mãe imersa em luto. Quando acontece uma mudança abrupta da imago materna, passando de presença e vitalidade para desinvestimento afetivo, essa mudança é vivida pela criança como uma catástrofe, isto é, além da perda do amor, existe uma perda da construção do sentido emocional.

A fala de Lídia era repetitiva e monótona no decorrer do trabalho de análise. A desvitalização parecia tomar conta dela. Aos poucos, esse estado pôde ir sendo vivenciado e transformado pela paciente e por mim, ganhando vida emocional, seja na criação de imagens, seja na expressão de pensamentos.

 

Imagem e emoção

Com a continuidade da escrita deste trabalho, percebo que é importante revelar por que escolhi o nome Lídia (do grego Lydía). Os habitantes da Lídia, região da Ásia Menor, achavam que eram descendentes de Lud, que significa "o que sente dores de parto". As emoções não representadas de Lídia, com base nas quais se originou sua dor mental, foram gradualmente se apresentando, ganhando nome e forma durante o processo analítico. Em momentos de abertura, houve uma experiência em evolução e um fluxo constante, na medida em que a intersubjetividade do processo analítico foi transformada pelas compreensões geradas no par.

Somewhere over the rainbow Em algum lugar além do arco-íris
Way up high Bem lá no alto
There's a land that I heard of Há uma terra de que ouvi falar.
Once in a lullaby Um dia numa canção de ninar.
Somewhere over the rainbow Em algum lugar além do arco-íris.
Skies are blueAnd the dreams Os céus são azuis.
that you dare to dream E os sonhos que se ousa sonhar.
Really do come true. Realmente se realizam.
(Harburg & Arlen, 1939) (Tradução livre)

Numa das sessões, Lídia relatou estar ouvindo uma música. Ela balbuciou um pequeno trecho que reconheci: era a música d'O mágico de Oz. Apareceu-lhe a imagem do Homem de Lata, enferrujado, endurecido (figurabilidade). Fomos conversando, rememorando a cena em que Dorothy e o Espantalho encontram o Homem de Lata. Lídia, em tom indagativo a ela e a mim, disse: "Acho que ele não tinha coração".

Provavelmente, o encontro de Dorothy com o Homem de Lata tinha despertado algo dentro dela, azeitando as partes duras e enferrujadas, como aquelas do Homem de Lata abandonado, levando-a a entrar em contato com seu sofrimento mais profundo. A descoberta, através do sofrimento, revelava que ela tinha coração. A emoção transbordava na sessão; havia um nascimento em curso; existia carência, mas também vitalidade, que aparecia como uma redescoberta no vínculo.

Lídia narrou um sonho: "Uma mulher esquálida estava amamentando um bebê. Ela desejava oferecer algo, e ao mesmo tempo ele estava ávido por mamar". Depois comentou: "Como essa mulher tão magrinha podia amamentar um bebê?" Refleti que no sonho aparecia a magreza, mas simultaneamente a força e o vigor da relação entre os dois, mãe e bebê. Abriram-se então novas associações.

Lídia observou que suas imagens oníricas remetiam à fotografia de uma mulher e um bebê numa revista, que em minha adolescência me marcou profundamente. Durante anos, essa imagem sempre voltava a minha mente, em muitos períodos de minha vida, como na gestação, como quando meus filhos eram pequenos.

Nessa lembrança, impressionava a pobreza, a carência. Lídia pensava no sofrimento dessa mulher subnutrida. Ela indagava: "Como uma mulher tão esquálida vai alimentar o bebê?" No entanto, completava: "Mas hoje está diferente. Eu nunca havia percebido o olhar vivo entre eles".

Observa-se aí a transformação de suas imagens, agora coloridas de vitalidade. Aos poucos, me conduziu à casa de sua infância. Contou uma lembrança: ela pequena, a mãe correndo pela sala, brincando de pega-pega. De repente, aconteceu um desastre: o avô faleceu; a mãe ficou arrasada e nunca mais se recuperou. Indago-me o quanto esse fato não estaria na base de seu sentimento de solidão.

 

Considerações finais

No início deste trabalho, pela citação de Freud, adentramo-nos no fato de que o sonhar é fundamental para a vida e o desenvolvimento humano. Os sonhos noturnos e os pensamentos oníricos em vigília são necessários para a realização de desejos e para a expressão emocional, pois o trabalho do sonho implica a tessitura de um mundo de representações, sendo a figurabilidade e sua transformação em palavras a passagem do processo primário para o processo secundário, possibilitando uma ampliação da malha representacional.

A especificidade da psicanálise fundamenta-se nessa descoberta, levando então a outra, que é a utilização da reverie do analista como instrumento para captar o mundo mental dos pacientes, desde seus processos mais primitivos de mente. O inconsciente inclui experiências pré-verbais, não simbolizadas, que aparecem como um espectro de possibilidades do vir a ser.

No decorrer do trabalho, apresentei algumas vinhetas clínicas que penso terem permitido acompanhar o sentimento de vazio e a falta de vida de alguém imerso num mundo sombrio. "O coração é do lado direito ou esquerdo?" Esse foi o sinal de que havia vida nascente. As áreas mudas ganharam voz, surgindo o grito sufocado daquilo que estava aquém da simbolização.

 

Referências

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Recebido em: 24/10/2019
Aceito em: 12/11/2019

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