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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo July/Dec. 2019

 

EROS

 

O estranho, o duplo, e a possibilidade de uma relação amorosa genuína

 

The uncanny, the double, and the possibility of a genuine loving relationship

 

El extraño, el doble y la posibilidad de una relación de amor genuina

 

L'étrange(r), le double, et la possibilité d'une relation amoureuse authentique

 

 

Claudio Castelo Filho

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psicólogo pela Universidade de São Paulo, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutor em Psicologia Social e professor livre docente em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo / claudio.castelo@uol.com.br

 

 


RESUMO

O autor vale-se inicialmente de experiências pessoais de sua vida e de análise para desenvolver o tema do estranho/duplo, tal como referido no texto "The uncanny", de Freud. Discorre sobre a dificuldade de tolerarmos o encontro com o estranho-inquietante que somos nós mesmos, com quem vamos deparando na experiência analítica, e a perplexidade trazida por ele - ou melhor, eles, pois não somos apenas um outro, mas muitos outros no grupo que nos constitui. Tal como destaca Bion em seu livro A memoir of the future, somos um grupo de estranhos, como tiranossauro, ameba, somitos, aristocratas, homem primitivo assassino e brutal, astrofísico, prostituta, diabo, sacerdote, vilão de ficção, fanáticos religiosos etc. O trabalho do analista seria única e exclusivamente apresentar e intermediar o encontro de um indivíduo com ele mesmo, ou seja, com estranhos que vão surgindo a cada sessão ou a cada momento da análise. A possibilidade de acolher e assimilar esses estranhos, desde os mais brutais e violentos aos mais amorosos e sofisticados permitiria ao indivíduo equipar-se para manejar de forma realista seus aspectos virulentos e instrumentar-se com eles, pois, na falta deles, torna-se incapaz de lidar com as situações internas e externas de modo favorável, arriscando até mesmo sua própria sobrevivência. Uma relação genuinamente amorosa de uma pessoa com ela mesma só seria possível com o reconhecimento e aceitação de tudo o que seria ela mesma, por mais que possa lhe parecer assustador. Sua condição para estabelecer vínculos igualmente genuínos e amorosos com terceiros estaria intimamente ligada a essa possibilidade de casar-se consigo própria, seja lá o que isso venha a ser.

Palavras-chave: estranho, duplo, primordial, desejo de ser importante, amor genuíno


ABSTRACT

The author begins considering his personal experiences in his private life and in analysis to develop the work concerned with the uncanny/double, as it was first mentioned by Freud in his work "The uncanny". He writes about the difficulties we have to tolerate the encounter with the perplexing uncanny-disturbing double that are ourselves as we face him in analysis. He enhances that we are not only one stranger to ourselves, but many, constituting a group or more frequently an agglomerated of characters as pointed out by Bion in his book "A Memoir of the Future" constituted by aspects that are very primordial and primitive (Amoeba, T. Rex, somites etc.) and very sophisticated ones (astronomer, great poets, psychoanalyst...) that present themselves in the course of the analysis. The analyst's task would be to present one to oneself and to intermediate this encounter with the various characters that constitute us in order to allow the assimilation of these aspects. Their recognition and acceptance would make possible the development of a real capacity to deal and manage them either intrapsychically or in everyday life in a favorable way. The absence of recognition of our violent and greedy aspects is risky because a naïf outlook is a danger to our survival. If recognized and accepted they can be turned into important tools if the person is also capable of true love and capacity to repair. Someone's real genuine and loving relationship to oneself is possible only with the acceptance of everything that constitutes him/her, even though this might be a frightening experience. This is also the main condition to have a real and loving relationship with other people.

Keywords: uncanny, double, primordial, ambition of being important, genuine love


RESUMEN

El autor inicialmente se basa en experiencias personales de su vida y análisis para desarrollar el tema del extraño/doble, como se menciona en el texto "The uncanny" de Freud. Discute la dificultad de tolerar el encuentro con el extraño inquietante que nosotros mismos estamos encontrando en la experiencia analítica y la perplejidad que él, o más bien ellos, porque no somos solo otro sino muchos otros en el grupo que nos constituye, como señala Bion en su libro Una memoria del futuro, desde los aspectos más primordiales (como Amoeba, Tyrannosaurus Rex, somitas etc.) hasta los más sofisticados (astrofísico, grandes poetas, psicoanalistas ...). El trabajo del analista consistiría única y exclusivamente en presentar y mediar el encuentro de un individuo consigo mismo, es decir, con los extraños que emergen en cada sesión o en cada momento del análisis. La posibilidad de acoger y asimilar a estos extraños, desde los más brutales y violentos hasta los más amorosos y sofisticados, permitiría al individuo equiparse para manejar de manera realista sus aspectos virulentos e instruirse con ellos, ya que en su ausencia se vuelve incapaz de lidiar favorablemente con situaciones internas y externas, incluso arriesgando su propia supervivencia. Una relación genuinamente amorosa con uno mismo solo sería posible con el reconocimiento y la aceptación de todo lo que sería uno mismo, por más aterrador que parezca. Su condición para establecer vínculos igualmente genuinos y amorosos con los demás estaría estrechamente relacionada con esta posibilidad de casarse con ella, sea lo que sea.

Palabras clave: extraño, doble, primario, deseo de ser importante, amor genuino


RÉSUMÉ

L'auteur s'appuie d'abord sur des expériences tirées de sa vie et de son analyse personnelles pour développer le thème de l'étrange(r)/double, évoqué dans le texte de Freud intitulé "The uncanny". Il aborde la difficulté de tolérer la rencontre avec l'inconnu-troublant qui est le soi-même qui nous est presenté dans l'expérience analytique et la perplexité qu'il - ou plutôt eux, car nous ne sommes pas simplement un autre mais beaucoup d'autres qui forment le groupe qui nous constitue, tel que le souligne Bion dans son livre A memoir of the future - nous déclanche. Ce groupe est formé des aspects les plus primordiaux (tels que Amoeba, Tyrannosaurus Rex, somites etc.) jusqu'aux plus sophistiqués (astrophysicien, grands poètes, psychanalyste etc.). Le travail de l'analyste serait uniquement et exclusivement de présenter et de servir d'intermédiaire pour la rencontre d'un individu avec lui-même, c'est-à-dire, avec les inconnus qui émergent à chaque session ou à chaque moment de l'analyse. La capacité de recevoir chez soi et d'assimiler ces étrange(r)s, des plus brutaux et violents aux plus aimants et sophistiqués, permettrait à l'individu de s'équiper pour gérer de manière réaliste ses aspects virulents et de s'instrumenter avec eux, car en leur rejetant et en les ignorant, il devient incapable de gérer les situations internes et externes de manière favorable, voire risquer sa propre survie. Une relation véritablement amoureuse avec soi-même ne serait possible qu'avec la reconnaissance et l'acceptation de tout ce qui serait le soi-même, aussi effrayant que cela puisse paraître. Sa condition pour établir des liens authentiques et amoureux avec les autres serait étroitement liée à cette possibilité de se marier avec soi-même, n'important ce que cela puisse se révéler.

Mots clés: l'étrange(r), le double, primordial, ambition d'être important, amour authentique


 

 

I

Eu estava em Brasília, jantando em um restaurante com um estimado colega após uma conferência que havia dado na Sociedade de Psicanálise de lá, quando olho para um lado do restaurante e vejo um "senhor" que me parece familiar e me pergunto: quem é esse senhor? O senhor, para minha perplexidade e algum desconforto, por revelar-me a passagem dos anos, era eu mesmo refletido no espelho que estava na parede bem ao meu lado. Tal como a experiência de Freud relatada em nota de rodapé de seu trabalho "The uncanny" (Freud, 1919/1978, p. 248).

Minha reação nos primeiros anos em análise ao deparar com um estranho a quem era apresentado todas as sessões foi, a princípio, de muita hostilidade e irritação para com meu analista, o inesquecível José Longman. Ao introduzir-me àquele que não reconhecia como eu mesmo, via-me tomado por muita irritação e ódio. Saía das sessões muitas vezes transtornado e pensando nas poucas e boas que diria ao analista na sessão seguinte, para depois deprimir-me quando a ficha caía e percebia-me irremediavelmente sendo aquele revelado, constatando a perspicácia de sua arguta observação. Levei muitos meses para me acostumar com essa experiência. A despeito do ódio vivido, não faltava a uma única sessão e, até mesmo, ansiava por elas, por mais revoltado que me visse amiúde.

Depois essa vivência de ódio associou-se à de fascínio e curiosidade sobre esse estranho que me era apresentado diariamente, que também me revelava um mundo desconhecido. Associo essa vivência à dos contemporâneos de Copérnico, Galileu e Colombo, que revelaram a seus contemporâneos um mundo que não era o centro do universo, não era fixo, arrastado por uma estrela - verificada depois como bem pequenina, diante de colossos incomensuráveis de outros sóis - que girava em torno de si mesma, redondo - a despeito de isso estar sendo posto em dúvida novamente -, que me permitiu também fazer grandes navegações e descobertas, uma vez que, também para mim, um mundo novo ia sendo desvelado. Fui percebendo a colaboração de Longman como algo de real consideração para comigo, pois nunca me tratou como um pobre coitado que não pudesse suportar a franqueza de suas observações - ou seja, percebia-me tendo recursos e punha-me para trabalhar duro nos atendimentos, o que certamente auxiliou no desenvolvimento que considero que me proporcionou.1

 

II

No Palazzo Vecchio, no coração de Florença, há uma sala de mapas que mostra as mudanças da percepção do mundo dos europeus entre aproximadamente 1450 e 1530. Os primeiros mapas são representações bidimensionais que permitem a visualização do mundo até então conhecido, que compreendia basicamente o contorno do Mediterrâneo, destacando a costa meridional e parte da costa setentrional da Europa, o Oriente Médio, e o norte da África. Basicamente era este todo o mundo conhecido. Os mapas eram manufaturados em sentido contrário ao que vemos hoje, visto que somente com a supremacia da Inglaterra sobre os mares é que esta foi posta na parte superior das cartas, "encabeçando" o mundo. O que é notável de se verificar é a mudança ocorrida em um espaço muito curto de tempo, pois, com as transformações ocorridas durante o Renascimento, e a percepção da esfericidade do planeta e as Grandes Navegações, em pouco menos de 80 anos, foram confeccionados imensos globos terrestres com a configuração de mapas tendo os continentes representados de forma muito aproximada à que pôde posteriormente ser constatada por fotos tiradas do espaço (para mim, é um assombro como conseguiram visualizar isso navegando em cascas de nozes frágeis, como as caravelas e galeões, e com instrumental precário - é para se dar muito valor à capacidade que têm os indivíduos visionários).

 

III

Nosso trabalho consiste na vivência cotidiana de apresentar todo dia um estranho aos nossos pacientes - ou melhor, estranhos -, porque, como mostrou Bion em Uma memória do futuro (1990), somos um grupo de estranhos, como tiranossauro, ameba, somitos, aristocratas, homem primitivo assassino e brutal, astrofísico, prostituta, diabo, sacerdote, vilão de ficção, fanáticos religiosos etc. Tal como ocorre nesse livro, quando iniciamos uma análise deparamos com personagens aristocratas sentados na varanda de sua fazenda à espera da chegada de um exército inimigo que ganhou a guerra contra a Inglaterra. Logo em seguida, há uma reviravolta no estado de coisas, e os empregados tornam-se poderosos e submetem os patrões a seus caprichos violentos e cruéis, juntamente com uma sexualidade primitiva que os submete a todos, com estupros e paixões loucas, como a da patroa Alice por sua ex-empregada Rosemary, em relações de caráter sadomasoquista, e assim por diante. Como no início das análises, a fachada "arrumada" desaba, e todas a dimensões primordiais, e também não pensadas e não pensantes, vão surgindo.2 Um estado ditatorial e cruel toma o poder, e há a luta de aspectos mais evoluídos para derrotar os mais primevos, que depois evolui para uma tentativa de conversa com eles, visto não serem passíveis de derrota. Surge a figura do psicanalista (quase sempre atacado e escarnecido) como intermediador entre esses diferentes personagens. Entre os que vão surgindo há também aspectos do próprio psicanalista que vão se apresentando, como Eu, Eu Mesmo, Bion, Psicanalista, Bion de diferentes idades. A leitura do livro mobiliza desconforto, turbulência, perplexidade, incompreensão, aversão, fascínio, curiosidade e também grande interesse, de forma análoga ao que pode ocorrer no evoluir de uma análise. O final do livro vai propondo que os personagens com maior condição de conversa possam se tornar representantes dos demais e que um colóquio contínuo siga em frente, com a intermediação do psicanalista.3 e 4

Sendo assim, vejo a análise como uma tarefa de apresentar uma pessoa a ela mesma - a esse grupo que a constitui, a cada dia um diferente, ou vários e surpreendentes aspectos podem se apresentar, tanto os mais brutais e primitivos quanto os mais sofisticados e criativos. O encontro de uma pessoa consigo mesma pode levá-la a um casamento dela com ela mesma, desenvolvendo um relacionamento, se possível amoroso, ou pelo menos respeitoso, com a única pessoa de quem não pode se separar ou se livrar.

 

IV

Trabalhando com a disciplina de afastar memória e desejo (Bion, 1992, pp. 380-385; 1970/1977a), deparamos não só com o estranho ou estranhos desconhecidos dos pacientes, mas também com um contínuo estranho que permanece brotando dentro de nós mesmos e do mundo que continua a se revelar - sempre numa experiência de turbulência perturbadora e ao mesmo tempo fascinante. Isso demanda que possamos suportar a intensidade das experiências emocionais associadas a esse modo de abordar a mente humana. Por conseguinte, ressalto a importância sem par da análise pessoal do analista, pois, mais do que qualquer compreensão ou conhecimento de teorias, aquilo de que ele mais necessita é a condição de suportar e assimilar a intensa turbulência emocional5 de um contato genuíno com o outro desconhecido do paciente que entra em sua sala e daquele que emerge de dentro de si, a cada nova sessão e durante o evoluir de cada uma delas.

Percebo que a despeito dos meus 27 anos de análise com três analistas diferentes, que a maior parte de mim mesmo continua inacessível ou vai se revelando de forma muitas vezes surpreendente - fazendo uma analogia com a vivência ao espelho, e com dimensões que consigo perceber e verificar, e às vezes manejar, às vezes ficar perplexo de como parece ter uma vida própria, por mais que tenha trabalhado e continue trabalhando curiosamente para me apropriar dessas dimensões. Um olhar curioso e isento de viés moral e de juízo de valor pode nos permitir nos aproximar disso que nos surpreende e desnorteia, e eventualmente se pode chegar a um diálogo e manejo dessas dimensões. O viés moral e curativo, a meu ver, torna-se um sério empecilho para que cheguemos a alguma intimidade real com nós mesmos e, por conseguinte, com outros seres humanos, quando isso é possível.6

A impossibilidade de esgotarmos o conhecimento e muito menos o "domínio" de nossos selves também se dá porque todo dia e a todo instante nos tornamos um novo desconhecido, não só por conta do envelhecimento ou passagem dos anos, mas também porque a cada experiência que temos, como a que o leitor pode estar tendo agora mesmo ao ler este artigo, mesmo que o ache sem sentido e aborrecido, vai nos tornando um outro, ao mesmo tempo que algo permanente também continua, nessa dualidade paradoxal. Remeto à minha experiência com o espelho descrita no início deste trabalho.7

 

V

O estranho não precisa ser necessariamente algo surreal. A realidade e a infinitude do universo ou dos multiversos, como têm proposto os físicos atuais, já são mais do que suficientes. O que nos defronta no nosso cotidiano já engloba o incomensurável.

A situação se revela aterradora se considerarmos que nossos órgãos sensoperceptivos alcançam somente um diminuto fragmento do que pode existir no ambiente em que nos encontramos. A realidade não está restrita ao que podemos perceber, por mais que os nossos sentidos possam ser ampliados por microscópios, telescópios, aceleradores de partículas etc. Se pudéssemos ter acesso a outras percepções para além ou aquém do que nossa natureza nos capacita e, mesmo levando em conta o que essa capacidade nos mostra, sempre ao que teríamos acesso seriam as transformações (Bion, 1965/1977a), interpretações dos fenômenos que observamos, e nunca a realidade última associada a eles (e quem acredita que o que percebe corresponde ao que de fato existe é o psicótico que confunde a percepção ou ideia, que não distingue da coisa em si, com a realidade última), provavelmente ficaríamos apavorados com o que pode ser revelado; um universo bem ao nosso redor e que nos envolve, completamente desconhecido - não obstante estarmos imersos nele. Certamente sairíamos correndo do ambiente em que estamos se pudéssemos ver as infinitas outras dimensões que nossos sentidos não são capazes de alcançar e que nem por isso deixam de nos afetar. Entretanto, nós humanos, que pretensiosamente nos autoatribuímos o título de sapiens, costumamos viver como se a natureza se restringisse àquilo que podemos "enxergar", ouvir etc.

Mesmo o que vemos por meio de telescópios etc. é o que foi, o que se supõe ter existido, visto que até a luz do Sol leva 8 minutos para chegar até nós.

Caminhamos arrastados pelo planeta para um rumo completamente ignorado. Talvez diretamente para o tsunami de alguma explosão de supernova.

Considera-se a vida como sendo algo relacionado a sequências de carbonos e hidrogênio que necessita de água e oxigênio. Procuram-se planetas onde poderia haver vida com esses referenciais! Quanta pretensão limitar a noção de vida a algo autorreferente!

Podemos nos reconciliar com a nossa diminuta realidade e total falta de importância para o universo? Podemos aceitar que para o resto da humanidade não temos qualquer relevância? Podemos viver nossas vidas para sermos nós mesmos, ou vamos gastá-la para sermos importantes para os outros? Precisamos ainda ser relevantes para os nossos pais, caso se revelem na experiência do bebê sem condições de tolerá-lo nos seus aspectos genuínos e construirmos falsos selves para podermos ser tolerados por eles e seus substitutos em relações transferenciais com nossos convivas e grupos de que fazemos parte depois de nos tornarmos adultos?

Quando se é um bebê ou uma criancinha pode ser uma questão de sobrevivência produzir uma criatura tolerável pelos pais, caso eles não tenham condições para suportar a intensidade de experiências de genuína intimidade, e procurar desaprender e esquecer tudo aquilo de que a natureza nos dotou de fato, para nos tornarmos "bons" filhos ou "bons" cidadãos, não no sentido ético, mas no de não produzir turbulência nos grupos em que se está inserido. Posteriormente, caso essa situação persista, esse estado de coisas, necessário à sobrevivência nos primeiros tempos da vida, leva à ruptura de um indivíduo com ele mesmo, tornando-o incapaz de viver um amor próprio por aquilo que realmente é e, por conseguinte, impossibilitando-o de ter relações amorosas genuínas com outras pessoas. Constroem-se vidas inteiras em cima de imitações, e não de algo real.

 

VI

Ozymandias

I met a traveller from an antique land
Who said:
– Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. Near them on the sand,
Half sunk, a shatter'd visage lies, whose frown
And wrinkled lip and sneer of cold command
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamp'd on these lifeless things,
The hand that mock'd them and the heart that fed.
And on the pedestal these words appear:
“My name is Ozymandias, king of kings:
Look on my works, ye mighty, and despair!”
Nothing beside remains: round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare,
The lone and level sands stretch far away.

Eu encontrei um viajante de uma terra antiga
Que disse:
– Duas gigantescas pernas de pedra sem torso
Erguem-se no deserto. Perto delas na areia,
Meio afundado, jaz um rosto partido, cuja expressão
E lábios franzidos e escárnio de frieza no comando
Dizem que seu escultor bem aquelas paixões leu
Que ainda sobrevivem, estampadas nessas partes sem vida,
A mão que os zombava e o coração que os alimentava.
E no pedestal estas palavras aparecem:
“Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:
Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!”
Nada resta: junto à decadência
Das ruínas colossais, ilimitadas e nuas
As areias solitárias e inacabáveis estendem-se à distância.
(Proposta de tradução encontrada na Internet, Wikipedia)
(Percy Shelley)

 

 

Tenho em mente um paciente extremamente inteligente e capaz que, não obstante, se percebia como alguém que era uma espécie de pária.

No decorrer da análise acabei por verificar seu intento de que essa o transformasse em uma criatura extraordinária, que por sua vez seria aceitável por ele e admirável pelo resto do mundo.

Ouvindo-o numa sessão depois de alguns anos de trabalho, tive uma imagem enquanto conversávamos, que lhe ofereci. Antes de expressá-la, comuniquei-lhe que era possível que, ao fazê-lo, ele não quisesse mais dar prosseguimento à análise (era uma intuição minha). Disse que ele estava na sala do consultório comigo como se estivéssemos no meio de um imenso anfiteatro, ou mesmo de um gigantesco estádio, e que havia uma imensa multidão extremamente interessada naquilo que estaríamos fazendo, como se de nossos atos dependessem os destinos do mundo, se não do universo. Talvez houvesse também transmissão televisiva para os bilhões de outros habitantes da Terra que estariam atentos a todos os nossos movimentos. Indaguei-lhe se ele suportaria perceber que não haveria ninguém, além de nós mesmos naquela sala, que estivesse se importando com o que estávamos fazendo; que seria extremamente relevante para a vida dele e também importante para a minha, mas que o resto do mundo e do universo não estava dando a menor importância para nós e que a grande maioria da humanidade nem sequer sabia de nossa existência e jamais saberia. Não termos, contudo, importância para o resto da humanidade não seria mesmo relevante, mas se pudermos nos dar importância, às nossas vidas desimportantes, que isso poderia fazer muita diferença em sua qualidade de vida, e de ele não gastá-la na busca de ser importante para os outros sem poder atender ou mesmo saber quais seriam suas necessidades reais, na única vida que considero que realmente sabemos que dispomos.

O paciente ficou alguns minutos em silêncio.

Mobilizado e entristecido o paciente reconheceu que era possível que não quisesse continuar a análise, se era para não ser tornado a criatura extraordinária que considerava necessitar ser. Vieram mais duas semanas, e ele efetivamente interrompeu a análise.

Três anos depois, voltou a procurar-me e pareceu-me que o que eu havia lhe dito teve repercussões consideráveis em sua vida, redirecionando-a para caminhos com os quais se viu bem mais realizado, e capacitando-o a ter uma relação amorosa estável que nunca havia tido antes. Retomou o trabalho de análise que se desenvolveu a seguir por longos anos.

 

VII

A paciente constantemente se atrasou durante anos de sua análise. Algumas tentativas de interpretação de seus atrasos foram feitas durante esse tempo, sem qualquer eficácia. Disciplinei-me para não tentar buscar solução para essa questão e fui acompanhando esse fenômeno. Depois de muito tempo observando os movimentos da paciente em análise, um padrão ficou evidente: ela recriminar-se por seus atrasos e admoestar-se moralmente por esse comportamento. Isso ficou patente numa sessão específica em que mais uma vez chegou cerca de 10 minutos atrasada e passou a desqualificar-se por assim funcionar. Disse-lhe que se recriminar e se depreciar moralmente não parecia levar a lugar algum. Se fosse algo útil, ela já teria parado de atrasar-se. Propus que pudéssemos considerar seu atraso não como algo que resistia à análise ou tampouco a obstruía. Poderíamos considerar o "atraso" não como algo que esquivava uma situação, mas era algo que se apresentava dessa maneira para nosso escrutínio. Em vez de querermos que aquilo não se manifestasse, poderíamos prestar atenção para ver o que era, do que se tratava, o que se apresentava daquela forma ("atraso"). Ela não sabia dizer, e eu disse que tampouco tinha ideia, mas que seria útil considerar esse "atraso" como uma manifestação de algo que solicitava nossa atenção. Surpreendentemente, nas sessões que se seguiram, a paciente deixou de se atrasar, a despeito de não termos encontrado ou dado qualquer sentido para o que se passava.

Depois de uns quatro meses ela voltou a se atrasar uns 15 minutos e mais uma vez iniciou a sessão se recriminando, ralhando consigo mesma. Fiz a observação de que a via se fustigando e que me parecia que ela tirava prazer em se atormentar. Ela anuiu e disse que parecia ser verdade que ela gostava de se atormentar. Fui observando sem nada dizer, até que algo ficou patente para mim, e uma imagem "materializou-se" em minha mente com vigor. Propus-lhe então a seguinte interpretação: Estávamos diante de uma relação sexual de natureza primitiva, extremamente prazerosa e igualmente dolorida e violenta. Uma relação sadomasoquista muito intensa entre ela e ela mesma, entre ela, ela mesma e eu, que ficava de testemunha-voyeur, supostamente aflito ao observar essa relação, e também colocado como participante, entre o pai e a mãe dela, que ela colocava numa constante relação de grande prazer e dor, com violência moral e física, diante da qual ela também estava como testemunha aflita e também excitada, e os pais que também a viam aflita para sair dessa situação, mas ao mesmo tempo quão mais aflita a viam, mais incrementavam a atividade em função do prazer que era tirado de vê-la atormentada e excitada, colocando-a como participante.

A paciente relatou que o pai era mesmo um homem um tanto truculento. Eu disse que não tinha muita importância como o pai de fato teria sido, mas o que seria relevante era essa cena que ela teria dentro de si, que ela mantinha numa atividade de interminável prazer e sofrimento, sempre perpetuado, do qual seria difícil ela separar-se devido ao prazer e à excitação que aquilo lhe propiciava.

Ela ficou alguns instantes em silêncio e em seguida disse que parecia surpreendente para ela que essa imagem estivesse fazendo tanto sentido. Ela reconhecia que minha descrição parecia ser muito pertinente. A sessão encerrou-se pouco depois, e ela saiu da sala me agradecendo.

A ideia não tem por finalidade apresentar uma dimensão da paciente da qual ela deveria se envergonhar ou padecer por isso. O propósito é apresentar de uma forma pensável, tornada psiquicamente representável, uma "fantasia" que nunca se tornou propriamente uma fantasia, nunca havia se tornado nem consciente e tampouco inconsciente (Bion, 1980, pp. 20, 21 e 22), pois era vivida concretamente em ação todos esses anos de sua vida e de análise comigo, na espera de um dia adquirir significado e de poder ser assimilada mentalmente, o que capacitaria a paciente ao reconhecimento do significado de suas ações e uma possível reconciliação dela com essas vivências até então não elaboradas por nunca terem atingido uma condição de ser propriamente pensadas e, assim, poder lidar com elas.

 

VIII

Por fim, relato a experiência de uma sessão com uma analisanda muito intuitiva, com alguns anos de análise.

Ao entrar em meu consultório deparou comigo numa saleta que está logo após a porta de entrada, à direita do pequeno hall de distribuição do conjunto em que atendo. A sala de espera para o meu consultório está um pouco mais adiante, também à direita, saindo de um pequeno corredor que começa bem em frente à porta de entrada, e o meu consultório se encontra diretamente no final deste corredor.

Ao deitar-se ela me indaga o que fico fazendo naquela saleta (várias vezes, em ocasiões anteriores, assustou-se por não esperar encontrar-me lá). Eu perguntei o que ela imaginava sobre isso, e a resposta, entre irônica e um tanto apreensiva, foi que eu teria uma espécie de painel de controle com visores para saber o que se passa no prédio e para vê-la subindo no elevador, ou algo assim. Sugeri que ela fosse até a saleta para verificar o que disse. Ela disse que, como em alguns filmes, logo que saio da saleta tudo aquilo some, como por mágica. O tom era de brincadeira, mas havia também temor no que ela dizia.

Em seguida passou a narrar sua preocupação com um funcionário que considera uma pessoa boníssima e especial. Ele ia visitar familiares seus, que nunca conhecera, em outro estado. Ela temia que ele, sendo tão bom e quase ingênuo na sua bondade, pudesse ser vítima de pessoas que não fossem de boa índole lá aonde estava indo.

Em seguida, referiu-se a uma amiga que considera viver fora da realidade. A amiga vive de pensão do ex-marido e não trabalha. Acredita em todo tipo de pensamento mágico e esotérico. Ela receia o que pode acontecer com essa mulher, caso o ex-marido venha a falecer. Não sabe como poderá sustentar-se.

Fiquei escutando a analisanda, mas nenhum fato selecionado (Bion, 1962/1977a, pp. 72 e 73) se apresentava, portanto, continuei aguardando.

Prosseguiu fazendo digressões sobre essas pessoas, e indaguei se ela tinha uma ideia do que gostaria de me comunicar com tudo o que estava a dizer. Ela negou que tivesse, e, como eu também permanecia sem ter qualquer luz sobre o assunto, permaneci acompanhando.

Então ela se interrompeu para dizer que havia sonhado durante a noite algo muito aflitivo. O sonho referia situações atuais que tinham como cenários lugares de sua infância. Via-se roubando tudo de valor da empresa familiar da qual é uma das principais proprietárias. Enfiava tudo dentro de sacolas e escondia em um lugar humilde que frequentava quando criança. Espantava-se que tanta coisa de valor pudesse caber em poucas sacolas. Era descoberta por um membro próximo da família, contudo, conseguia convencê-lo de que fazia o "roubo" para preservar o patrimônio do negócio. Mantinha-se, entretanto, apavorada, porque sabia que o decano fundador da empresa (já falecido) ia inexoravelmente descobrir o roubo, e ela seria pega por ele. Não ia ter jeito de escapar, não seria capaz de enganá-lo.

Fica um pouco em silêncio, e ocorre-me espontaneamente que ela já me informara que a maior parte dos familiares sócios da empresa é de pessoas muito presunçosas, velhacas, desonestas, extremamente ambiciosas, mas que são, ao mesmo tempo, pueris e se acham poderosas por direito divino. Se ela quisesse, já poderia ter passado essas pessoas para trás há muito tempo. O sonho foi o fato selecionado que me esclareceu o que se desenrolava na sessão.

Disse-lhe que o sonho representava aspectos dela mesma que eram vorazes, mesquinhos, invejosos, corruptos, que queriam pegar tudo dos outros para si. Ela, entretanto, tinha outros aspectos que contrabalançavam esses primeiros, que teriam consideração ética (diferente da moral) e amorosa, que a impediam de levar adiante os seus desejos deletérios. O decano da família representava essa consciência ética que possuía. Ela também sabia que precisava estar muito atenta para que o comportamento voraz e quase sempre presunçoso, perdulário e fora de senso de realidade dos parentes não levasse a empresa à bancarrota. Sempre tinha de agir para impedir negócios insensatos que propunham, segundo já havia me informado durante anos de trabalho.

Associei a ideia da minha saleta de espionagem na entrada do consultório a essa consciência que ficava monitorando-a. Essa sim ainda tinha uma característica moralista. Durante anos ela temeu que eu e ela descobríssemos algo dela que revelaria o quanto ela seria alguém horrível e desprezível. Isso se liga aos constantes sustos que experimentou nas vezes que me encontrou fora do lugar onde julgava que eu deveria estar, tal como um santo em altar de igreja que está sempre no mesmo local. Ao me comunicar, entretanto, aquele sonho perturbador e incômodo, ela estaria se sentindo mais confortável para expor para mim e para si essas dimensões perigosas sem que necessariamente sofresse um massacre. Já havia um certo humor ao considerar essa consciência vigilante e moralista.

Ponderei que nunca poderia se "curar" dos aspectos vorazes, invejosos e corruptos. Eles fazem parte da sua natureza, da nossa natureza humana. Considero, todavia, prossegui, que seria desastroso se não os tivesse ou os perdesse, pois é a possibilidade de ser íntima deles, de conhecer e assimilar seus aspectos safados, inescrupulosos, que a capacita a não funcionar de forma ingênua e pueril na vida, tal como seu funcionário bonzinho e sua amiga que acredita em mágica que vive em algum mundo idealizado e ingênuo, o que pode levá-los a serem presas de gente cruel, pois não conseguem reconhecer a desonestidade dos outros, nem lidar com eles, por não terem contato com seus próprios aspectos malandros e delinquentes. É preciso intimidade com eles para poder se valer destes e dessa maneira ser capaz de se safar na vida, de ser "safo", ter jogo de cintura, tanto para lidar com os próprios desejos vorazes, quanto para habilitá-la para lidar com os dos outros, tornando-a mais apta para a vida real. Havendo uma contraparte capaz de amar8 e de ter consideração real por si mesma (o que inclui o reconhecimento dos aspectos truculentos), ela também se torna apta para relações de amor genuínas com terceiros, sem, no entanto, ser tola e sem meios para se resguardar ou proteger a si mesma e aos que ama.

A paciente sorri e descreve uma sensação de maior conforto interno, parecendo estar mais reconciliada consigo mesma, numa relação, a meu ver, de um amor mais genuíno por si mesma. Não um amor por algo ideal (na verdade, ódio e rejeição pela pessoa que realmente é quando isso ocorre), mas um amor pela pessoa existente, com todos os seus "defeitos", que, por outro lado, também se revelam como absolutamente indispensáveis para que ela possa se cuidar, e cuidar de outros, de forma realista e afetiva.

 

Referências

Bion, W. R. (1977a). Seven servants, four works by Wilfred R. Bion: (1962) Learning from experience, (1963) Elements of psychoanalysis, (1965) Transformations, (1970) Attention and interpretation. New York: Jason Aronson.         [ Links ]

Bion, W. R. (1977b). Two papers: the grid and caesura. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (1980). Bion in New York and São Paulo. Perthshire: Clunie Press.         [ Links ]

Bion, W. R. (1990). A memoir of the future. London: Karnac.         [ Links ]

Bion, W. R. (1992). Cogitations. London: Karnac.         [ Links ]

Freud. S. (1978). The uncanny. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (Vol. 10, pp. 219-252). London: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1919)

Sófocles (1967). Oedipus the king and Oedipus at Colonus. In The complete plays of Sophocles. New York: Bantam Books. (Trabalho original do século V a.C.         [ Links ])

 

 

Recebido em: 28/6/2019
Aceito em: 11/11/2019

 

 

1 Essa análise só foi interrompida devido ao falecimento de Longman após um ano de luta dele contra um tumor de pulmão. Estive com ele até o último dia em que teve condições de trabalho. Após essa análise de doze anos, tive mais dois outros analistas em longas análises. A última, com Cecil Rezze.
2 Quando eu fazia supervisão com Yutaka Kubo, ele me relatava sua experiência com certos indivíduos que vinham para entrevistas como requisito de iniciar um trabalho analítico. Com seu forte sotaque japonês, Kubo mencionava pessoas que chegavam muito arrumadas, elegantes, falavam diversos idiomas, eram eruditas etc. "Deitou no divã: psicótico!", dizia com um leve golpe de caratê sobre o braço de sua poltrona. Ou seja, o verniz logo desaparecia, e as dimensões mais primordiais e nunca pensadas emergiam quase imediatamente. Em "The grid" Bion (1977b, pp. 27 e p. 28) escreveu: "O dilema para o psicanalista é este: não creio, nem ninguém que tenha tido contato próximo com homens em condições de batalha, prisioneiros de guerra ou civis em estados similares de stress, que os sentimentos dos homens e das mulheres, tanto enquanto indivíduos quanto como membros de um grupo, tenham mudado; eles estão dormentes. Frequentemente estão encobertos por um verniz de civilização, o qual, não obstante, não esconde, apesar de que se possam disfarçar, as forças que subjazem" (tradução livre do autor).
3 Na página 576, P. A. (psicanalista) diz: Sim, mas é igualmente grave se as pessoas preferirem retroceder para o assassinato ou para a guerra como substitutos para a discussão a enfrentarem as dores e frustrações da conversa. De forma similar, o indivíduo pode sentir que drogas ou autoassassinato sejam preferíveis à tediosa disciplina da análise; os primeiros são sedutoramente mais rápidos. Tradução livre minha.
4 Na última sentença do Epílogo (p. 578) ele deseja a todos uma Feliz Loucura e uma Fissão Relativista.
5 Quem não tiver noção dessa turbulência no trabalho analítico certamente não está em contato com a realidade do trabalho que exerce, ou não sabe de que realmente ele se trata, não obstante as aparências confortáveis ou elegantes que possa ter o ambiente do consultório ou os modos dos dois participantes da experiência analítica: analista e analisando.
6 Evidencio a diferença de atitude de Édipo diante do que percebe em Édipo Rei e em Édipo em Colono, de Sófocles. Na última tragédia Édipo descobre a importância da compaixão para consigo mesmo e do desastre que foi não ter podido se observar com ela nos eventos que o jogaram no desterro, na miséria, na cegueira e na destruição de sua família e reino.
7 Um amigo próximo descreveu uma situação tragicômica que se deu com sua sogra: depois de anos relutando e já com uma idade avançada, anuiu em fazer operação de catarata. Depois de feitas as intervenções ela chamou-o e à filha, porque estava completamente indignada com o médico que a operou. Perplexo, o casal indagou o que se passava com ela. A sogra respondeu mostrando seu reflexo em um espelho: "Olha o estrago que ele fez no meu rosto!!!!!"
8 Faço um contraponto com outras pessoas cuja necessidade de destruir a capacidade do analista de pensar e de ser criativo sobrepõe-se à sua necessidade real de ajuda, tal como o escorpião da fábula de Esopo. Essa condição individual fica logo patente nos primeiros contatos analíticos na atuação incessante do analisando para "derrubar" o analista mesmo que a custo de suas próprias esperanças. Como exemplo emblemático disso cito uma moça que me procurou há muitos anos. Fui buscá-la na sala de espera de uma clínica em que tinha consultório com outros colegas analistas. Ela estava vestida com esmero e usava joias pesadas e caras. Convidei-a para acompanhar-me até minha sala por um corredor que levava até ela. Seguindo meus passos, ela veio pelo caminho desancando a decoração do ambiente, a construção da clínica, deplorando tudo antes mesmo de entrar no meu consultório. Entrando na minha sala, ela sentou-se à minha frente e começou a denegrir tudo o que via. A decoração era cafona, o lugar deplorável etc. etc. Por fim, perguntou-me se eu sabia por que ela estava lá. Diante de tudo o que já me apresentara desde a sala de espera, disse-lhe, com delicadeza, que imaginava que ela devia se sentir muito só. Ela levantou-se e começou a vomitar impropérios na minha direção. Gritava que eu era um idiota, que não sabia de nada, que eu nunca a tinha visto e que, portanto, era um perfeito imbecil de achar que podia saber algo dela, que era cheia de amigos. Chegou bem próximo à poltrona onde eu permaneci sentado calmamente sem nada dizer, e enfurecida olhou para mim, olhou para a porta e disse: "A porta é serventia da casa, não é?" E colocou-se porta a fora sem eu ter dito uma palavra. O ódio à realidade e uma inveja violentíssimos, segundo conjecturo, a impediam de receber qualquer forma de auxílio.

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