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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo jul./dez. 2019

 

NOTAS INTERNACIONAIS

 

Escravização, preconceitos e psicanálise

 

Slavery, prejudice and psychoanalysis

 

Esclavitud, prejuicios y psicoanálisis

 

Esclavage, préjugés et psychanalyse

 

 

Gustavo Gil Alarcão

Psiquiatra, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutor em Ciências pela FMUSP. São Paulo / gustavogilalarcao@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este texto discute aspectos da escravização, inclusive da escravização psicanalítica a ideais. O artigo foi escrito a partir das consequências de discussões psicanalíticas de um caso clínico em diferentes encontros: São Paulo, Fortaleza e Cabo Verde. Ao caso, somaram-se outros exemplos da escravização cotidiana e de sua permanência histórica em nossa sociedade, como também, de sua presença introjetada em nós mesmos. Apoiando-se na noção de Mal-estar na civilização, propõe-se que a omissão acerca das consequências da escravização, especificamente sobre os escravizados, dilui e ofusca problemas muito concretos.

Palavras chave: escravidão, política e psicanálise, perversão, mal-estar, racismo


ABSTRACT

This text discusses aspects of enslavement, including psychoanalytic enslavement to ideals. The article was written from the consequences of the psychoanalytical discussions of a clinical case in different meetings: São Paulo, Fortaleza and Cape Verde. To this case, other examples of daily enslavement and its historical permanence in our society, as well as its introjected presence in ourselves, were added. Drawing on the notion of Civilization and Its Discontents, it is proposed that the omission about the consequences of enslavement, specifically on the enslaved, dilutes and obfuscates very concrete problems.

Keywords: slavery, politics and psychoanalysis, perversion, uneasiness, racism


RESUMEN

Este texto analiza aspectos de la esclavitud, incluso la esclavitud psicoanalítica a los ideales. El artículo fue escrito a partir de las consecuencias de las discusiones psicoanalíticas de un caso clínico en diferentes reuniones: São Paulo, Fortaleza y Cabo Verde. Al caso clínico, se agregaron otros ejemplos de esclavitud diaria y de su permanencia histórica en nuestra sociedad, así como su presencia introyectada en nosotros mismos. Basándose en la noción de Malestar en la civilización, se propone que la omisión sobre las consecuencias de la esclavitud, específicamente en los esclavizados, diluya y ofusque problemas muy concretos.

Palabras llave: esclavitud, política y psicoanálisis, perversión, malestar, racismo


RÉSUMÉ

Ce texte traite des aspects de l'esclavage, y compris aussi l'esclavage psychanalytique aux idéaux. L'article a été rédigé à partir des conséquences des discussions psychanalytiques d'un cas clinique lors de différentes réunions: São Paulo, Fortaleza et Cap-Vert. À ce cas, d'autres exemples de l'esclavage quotidien et de sa permanence historique dans notre société, ainsi que sa présence introjectée en nous-mêmes, ont été ajoutés. En s'appuyant sur la notion de Malaise dans la civilisation, il est proposé que l'omission sur les conséquences de l'esclavage, en particulier sur les esclaves, dilue et obscurcisse des problèmes très concrets.

Mots-clés: esclavage, politique et psychanalyse, perversion, malaise, le racisme


 

 

Considerações iniciais

Este artigo foi preparado para o IV Congresso de Psicanálise de Língua Portuguesa realizado em Mindelo, Cabo Verde, em 2018. O texto parte de um caso clínico cuja temática da escravização era central e acompanha os desdobramentos deste atendimento e das reflexões que surgiram posteriormente. Ainda que a onipresença das nefastas consequências da escravização sejam explicitamente visíveis em nosso país, nós psicanalistas pouco temos abordado sobre este tema.

Diante disso, tenho construído um trabalho que busca pensar a atitude psicanalítica, enquanto prática e reflexão, e sua relação com a escravização, no contexto atual. O caso clínico foi inicialmente apresentado no Congresso Brasileiro de Psicanálise de 2017 em Fortaleza. Desta apresentação agregam-se novos elementos que ampliaram a discussão em 2018 no IV Congresso de Psicanálise de Língua Portuguesa em Mindelo, Cabo Verde. A conjuntura do Brasil 2018-2019 realça a importância de não nos silenciarmos diante dessas questões, o que ficará claro com fatos que foram incorporados ao texto inicial, texto este que segue vivo e atento aos movimentos, às ideias e aos afetos que circulam ao redor da escravização, ou melhor, das escravizações.

Uma busca por artigos psicanalíticos com a palavra escravidão, realizada com auxílio da biblioteca da spbps, encontrou apenas sete trabalhos, nenhum deles publicado pela Revista Brasileira de Psicanálise.1 Já uma busca com a palavra escravo resulta em alguns textos, como Rosa (2002) e Pôrto (2008). Entretanto, escravo é usado principalmente em outros contextos, como escravo do consumo, ou escravo do prazer. Se nos apoiamos em "Psicologia das massas" e "Mal-estar na civilização", temos a confirmação de que a psicanálise se interessa pela vida em sociedade, por suas vicissitudes e seus contextos, sem aspiração de se tornar sociologia. Constatamos que este tema pouco tem interessado à comunidade psicanalítica e, cabe ponderar, se este desinteresse não se torna cada vez mais insustentável. Enquanto psicanalistas interagimos com nosso contexto social, que no caso brasileiro, inclui irremediavelmente a escravização e suas consequências.

Utilizo a palavra escravizado e não escravo, bem como escravização e não escravidão. Encontramos excelentes justificativas para isso no trabalho de Harkot-de-La-Taille e Santos que embasam uma reflexão sobre o sentido dessas palavras e sua íntima relação com as relações sociais que descrevem. Estes autores acompanham o que pensa a psicanálise, campo para o qual as palavras são valorizadas para além do senso-comum: "Estar escravizado instaura tensão entre a continuação e a mudança, diferentemente de ser escravo, que se fecha na estabilidade e na manutenção da condição" (2012, p. 11).

 

São Paulo, 2015-2017

São Paulo de 2017 é uma cidade instigante, com problemas e possibilidades infinitas. Entre seus mais de 12 milhões de habitantes, 37% são negros ou pardos e 45%, migrantes. A "Pauliceia desvairada" de Mário de Andrade ou o "Bouquet de flores mortas" de Criolo é uma cidade imensa que acomoda, acolhendo ou repelindo, um imenso contingente de pessoas.

Mais do que como mera ilustração procuramos acompanhar aqui a vida da pernambucana Joana e sua experiência psicanalítica com sua analista,2 em que circularam elementos como escravidão, pobreza, abandono, religião, medicina, psiquiatria, hospital, música, Skype, dúvida, amor, traição, história...

A suma importância dessa análise nos confrontou com o significado de torná-la pública. Tendo uma vitalidade notável, Joana seguiu em frente. "Sem olhar para trás", manteve-se firme, organizando uma estrutura psíquica que, como pôde, não se esfacelou, mas que, ao mesmo tempo, acumulou sofrimentos não digeridos que se infiltraram insidiosamente em sua vida.

No trabalho com Joana, pensamos muito no trânsito entre o mundo externo e o mundo interno, entre suas instâncias psíquicas e entre os envolvidos nessa experiência. Na São Paulo de 2017, a palavra trânsito é onipresente, e é inegável seu impacto da biografia de Joana. Conscientes do sentido da abstinência psicanalítica, transitamos na calibragem entre a identificação indispensável e o distanciamento necessário (Minerbo, 2012).

E por que sua biografia nos afetou tanto? "Fui escravizada na infância." Conhecemos a história do país, nos sensibiliza o sofrimento de nossos concidadãos e temos os olhos abertos para a realidade social que nos rodeia, mas jamais havíamos escutado um relato como esse.

Joana procurava ajuda pela segunda vez. Já havia feito um trabalho no próprio hospital, mas a profissional mudou-se para Londres. Tentaram um atendimento por Skype, que não foi bom, e o interromperam. Dessa análise, Joana dizia: "eu sei que preciso muito dos outros e, às vezes, estrago tudo".

Aos 46 anos, ela voltava a procurar a psicanálise justamente no momento em que suas filhas, agora adultas, estavam prestes a sair de casa. Dizia sentir muito medo do que poderia acontecer e não se contentava com ter feito por elas tudo o que podia: com pouquíssimo dinheiro (sempre trabalhou como diarista ou doméstica) e pouquíssima parceria (com o ex-marido pouco ou nada participativo, a quem ela se refere como "criatura").

À medida que conhecíamos e pensávamos nas diferenças reais entre o que Joana contava e o que nós, analista e supervisor, havíamos vivido, sentíamos na pele o impacto das diferenças entre nossas histórias de vida e, sobretudo, o peso daquela história.

No começo da análise, Joana alerta a analista: "vai ser muito difícil falar minha história, porque ela é um lixo". E também: "já tentei falar com outra psicóloga, mas ela não prestou atenção".

"Minha história é um lixo." Assim, descontextualizada, essa frase não terá aqui o impacto emocional que teve para a analista (como também "ter sido escravizada"). Posso assegurar que foram passagens realmente difíceis. Orientada por sua escuta, contudo, a analista foi capaz de produzir transformações essenciais: não era Joana que era um lixo, mas sua história. Eis uma inflexão crucial. Havia uma história, "um lixo de história", e havia Joana, que "foi escravizada". Joana estava escravizada junto ao lixo da história sem poder sentir-se vítima. Identificada com o lixo, sentia-se responsável pelo que lhe acontecera.

"Minha outra psicóloga disse que eu tinha medo da rejeição e que eu fazia coisas para as pessoas irem embora." Joana nos mostrava que a palavra ainda a feria. Pensamos juntos que, mesmo que essa frase representasse uma interpretação coerente, ela surgiu num contexto muito inadequado (a separação da dupla) e nos indicou que a convivência com Joana poderia suscitar um clima de tensão no qual a ação poderia emergir de forma violenta.

Uma questão vital era não violentar Joana: percebíamos que ela ainda não estava consciente de aspectos cruciais de sua vida. O "lixo" era parte de sua história, e não ela própria. Sem essa distinção, sem essa discriminação, ela talvez pudesse agir no sentido de afastar ou se afastar das pessoas. A analista não arrisca interpretações audaciosas no começo do trabalho, guia-se pela curiosidade genuína de conhecer as histórias de Joana e pela honestidade emocional de dizer que não era possível para ela sentir tudo aquilo que Joana sentia na sua própria pele, mas que estava ali realmente interessada no que ela tinha para dizer.

Lembrávamo-nos da imagem de Lou Andreas-Salomé para mostrar o significado da proposta freudiana de transferência: "uma praia que recebe a onda do mar da maneira que esta chega".

A história de Joana emergia aos poucos: fotografias, pequenos filmes, espaços vazios. Um contato ansioso, marcado pela necessidade de atenção e cuidado, um olhar aflito e carente mostra uma mulher assustada, temerosa, envergonhada, humilhada. Diz que, quando está na terapia, é como se estivesse "arrumando um quarto e, de repente, aparecem bichos assustadores". Isso nos fez pensar: que quarto é esse? Que bichos são esses? Ao que a analista sutilmente introduziu: "mas agora você não está sozinha, e eu não sou um bicho".

Joana captava a presença viva e receptiva da analista respondendo também com sua presença: estava sempre lá, raras faltas, raros atrasos. Com um ano de convivência, ela pôde dizer algo que para ela era muito importante: "Minha mãe morreu, e não tive vontade de ir ao velório. Ela me deixou um bilhete: 'Desculpe por não ter te amado. Era difícil aceitar seu amor'".

Sentindo-se agora encorajada, diz que nasceu de um estupro: seu pai estuprara uma mulher e, desse estupro, ela nascera. Logo, Joana era cuidada pelo pai biológico e por sua madrasta (a quem chama de mãe). O caso é complicado. O pai tem um caso extraconjugal que emerge, num primeiro momento em sua fala, como "meu pai estuprou uma mulher e eu nasci". A esposa do pai adotou Joana sem lhe contar nada.

Nunca soube o paradeiro da mãe biológica. Em dado momento, a madrasta decide migrar para São Paulo e distribui os filhos, dando Joana, a penúltima, para uma senhora - que bem poderia ser uma senhora de engenho. "Não me lembro com quantos anos, nem quanto tempo fiquei lá": trabalho doméstico forçado, explorações infindáveis (faziam chinelos de borracha, tinham que carregar placas quentes na cabeça, que produziam feridas), cabelos raspados, surras, alimentar-se com migalhas, sobras e, às vezes, com lavagem. A tentativa de abuso sexual por um dos filhos adolescentes da senhora levou Joana a fugir.

A analista acompanhava o desvelar dessa história sofrida, e ao mesmo tempo corajosa. Pedaços e fragmentos que aos poucos eram reconstruídos com muita vergonha e constrangimento em uma narrativa possível. Em nossa supervisão: silêncio, incredulidade, olhos marejados e doses de ódio, muito ódio, compartilhado pelo grupo. "Para algumas pessoas, a vida parece mesmo não valer a pena", pensávamos.

Joana decidira enterrar essa história. Após fugir dessa situação, procura uma tia, que lhe conta que a madrasta e o pai haviam se mudado para São Paulo. Ela decide vir e passa a trabalhar como diarista em várias casas. Segundo ela, ocorre a reedição de abusos e humilhações por alguns patrões, além de desenvolver uma péssima convivência com a madrasta (sem ainda saber de sua história).

Enfim, trabalha na casa de um casal, em que se sente adotada e amada. A ajuda é decisiva: casa, comida, dinheiro, escola, música, igreja, afeto, presença e amor. Sente-se alguém. Mas o casal morre tragicamente num acidente automobilístico. Joana segue em frente. Casa-se (com o único homem de sua vida), tem duas filhas, engorda muito e chega a fazer uma cirurgia bariátrica (há 10 anos). Encorajada, se divorcia.

"Meu caminho é de pedras, como posso sonhar?" Ainda assim, sonhava que seu casamento desse certo, mas "casamento é feito de duas pessoas". Cita o filme Náufrago e diz que, ao cair na ilha, o personagem fez um amigo, que era a bola: "no meu caso, são as músicas".

"Voltar para os lugares do passado é como tirar a casquinha do machucado." Joana diz que precisa falar várias vezes a mesma coisa para assimilar, até que se cansa e muda de assunto, e pede que a analista tenha paciência com ela.

Num curso que frequentava, percebe que uma mulher sempre procura estar perto dela. Ela mudava de lugar, e a mulher ia atrás. Isso começou a incomodá-la, e essa moça acabou se declarando amorosamente. Joana achou engraçado, pois nunca se tinha imaginado passando por isso. Explicou à moça que gostava de homens, mas o fato de haver despertado o interesse de alguém fê-la refletir: "alguém gostou de mim". A ressonância transferencial é bastante clara nesse momento de sua análise.

Citando outra música ("O pra sempre sempre acaba/Mas nada vai conseguir mudar o que ficou"), diz que queria fazer algo bom na vida, para ser lembrada por isso. Depois, conta que via o ex-marido dormindo e tinha vontade de matá-lo, mas pensava que era boa e não faria isso. Com mais de dois anos de convivência, a analista questiona de forma interpretativa: "nessas horas, você tem mesmo é vontade de se matar, não é?" Muita emoção: "Hoje, você colocou a mão no meu coração. Fez a criança nascer. Uma filha minha nasceu de parto natural, e a outra, de cesárea. Você colocou a mão e tirou a criança. Tirou o espinho de peixe que estava entalado na minha garganta".

A análise de Joana seguiu até o momento em que ela descobriu o paradeiro da mãe biológica e decidiu ir a seu encontro.

 

Fortaleza, 2017

Em 2017, no Congresso Brasileiro de Fortaleza, apresentamos o trabalho "Estupro, escravidão e liberdade: quem sou eu, qual é a minha história?" Com base nas consequências dessa primeira discussão, como informado, o texto foi reescrito para ser apresentado em Cabo Verde, com o título "A escravidão e os preconceitos". A cada exposição, novos elementos se incorporam ao texto, que se renova. Trata-se de um trabalho in continuum sobre um tema imprescindível. Em Fortaleza, dividimos a mesa com outros dois trabalhos, que falavam sobre abuso sexual na infância. A apresentação foi interessante, os questionamentos circularam e pudemos discutir detalhes dessas situações.

Na plateia, uma mulher pede a palavra: "Sou T., psicanalista de [nome da cidade]. Sou negra e vim aqui porque foi a primeira vez que vi a apresentação de um caso sobre escravidão em um congresso. Mas chego aqui e vejo que nem a cor da paciente foi citada. Posso saber qual a cor de Joana?"

Joana era negra. E é verdade: sua cor não fora mencionada. Quando escutei esse comentário, fiquei desconcertado, e pensei: "Como foi que esqueci, ou que esquecemos isso?" Respondi: "Sim, você tem razão, nós esquecemos". Foi o que foi possível dizer naquele momento. Ficamos perturbados. "Mais uma vez, nós, os brancos, nos beneficiando da escravidão", foi o que ficou registrado para mim.

Depois disso, não tirei o caso da cabeça, tentando entender como havia "esquecido". No fim do dia, lembrei-me de que não fora esquecido, mas sim evitado, porque achávamos que o trabalho poderia ser lido como "panfletário", "partidário" ou "menos analítico". A decisão pretendia dar mais "liberdade" ao texto, para que pudéssemos pensar sobre Joana. Equívoco, grande equívoco.

Procurei T. pelo congresso, mas não a encontrei. Ela fisgara o ponto crucial, que mesmo nós, diante de uma entrega conscientemente dedicada ao trabalho e aos seus vários aspectos, não conseguíramos notar.

Dias depois, conversando sobre a situação com um amigo, ele fez uma interpretação importante: "T. fez você sentir na pele o que era ser escravizado. Você ficou preso ao comentário dela e não percebeu que sua intenção era outra, não era escravizá-la, mas falar do horror da escravidão". No momento, eu concordo e fico aliviado.

Ledo engano. Dias mais tarde, formulo outra ideia, ainda mais difícil de sentir e admitir. Não, eu não experimentara o peso de ter sido escravizado, como aventara meu amigo. Sentira a vergonha de ter reeditado o papel de quem escraviza, de não poder negar que havia, sim, feito aquela escolha. Nossa decisão suprimia uma questão central, que não poderia ser relativizada: a cor de Joana. São negros que sofreram e negros que sofrem as consequências tenebrosas de ser escravizados.

Por outro lado, meu amigo me ajudou: sim, eu estava escravizado ou me escravizando a algo de que não me dava conta (apesar de conscientemente desejar). Para produzir um texto mais "analítico", seja lá o que isso queira dizer (naquele momento, a ideia era não saturar o que ocorria entre a dupla com muitos fatos externos e privilegiar o interno), estávamos nos encarcerando em "um ideal de psicanálise", que só poderia gerar "um ideal de trabalho a ser apresentado". Em nome de "mais liberdade para o texto", decidíramos suprimir a cor de Joana. E revelávamos justamente como estávamos aprisionados. E ainda que, anunciando conscientemente que não queríamos fazer da história de Joana um fetiche psicanalítico, de certo modo, fosse isso que fazíamos.

Um duplo mal-estar: reeditar o papel de quem escraviza negando um aspecto central na história de Joana e perceber-se escravizado por ideais que nos distanciam do centro de nosso trabalho.

 

Cabo Verde, 2018

"Rotas da Escravidão" foi o tema escolhido para o IV Congresso de Psicanálise em Língua Portuguesa, que acontece em 2018 na cidade de Mindelo, em Cabo Verde. Portugueses começam a ocupar o território cabo-verdiano em 1460, mas a arqueologia investiga agora vestígios de ocupação humana nas ilhas anterior a essa data, ainda sem haver encontrado nada conclusivo.

A literatura mostra que a "questão da origem" é sumamente importante para a construção da identidade, ou das identidades nacionais (Miranda, 2016), em Cabo Verde como em muitas outras nações do mundo. O processo de colonização portuguesa é, até aqui, o mito fundador desse povo. O arquipélago foi transformado num entreposto marítimo, um complexo burocrático de registro de escravizados (Barros-Varela, 2013) africanos trazidos para as Américas durante os longos séculos de sua escravização.

Como as ilhas não se constituíram como típicas colônias de exploração, entre outros fatores que não estudamos aqui, a percepção cabo-verdiana da escravização é particular e diferente da brasileira. Além disso, a própria formação dessa sociedade difere da nossa, levando a que o negro, o escravizado, o branco e o mestiço sejam percebidos, descritos e analisados de formas específicas, que precisamos conhecer. Esse fato foi essencial para mim, porque me dei conta de que a "preocupação brasileira" (se é que se pode dizer algo dessa natureza) expressa no Congresso pela questão da escravização me pareceu diferente das preocupações portuguesa e cabo-verdiana.

Cabo Verde não tem sociedade de psicanálise, tampouco psicanalistas, mas interessados em psicanálise - em grande parte, mulheres, médicas ou psicólogas. Aparentemente, o apoio das autoridades locais foi importante para que se realizasse aquele encontro, em que brasileiros e portugueses eram maioria.

Caminhando para o Congresso, vejo uma rua que parece estar movimentada. Decido ir por ali, "quero ver as pessoas da terra se divertindo". No meio do caminho, um cachorro salta em minha direção e começa a latir ferozmente. Amedrontado e acuado, a princípio tento não olhar e sigo caminhando, mas a proximidade do cão e meu medo me impedem, então, tento afastá-lo. De repente, uma jovem cabo-verdiana vem em minha direção, agarra meu braço com força e diz: "Ei, não fique nervoso, não fique nervoso. Não tenha medo. Se você tiver medo, ele vai perceber". Mas eu não estava nervoso, e sim com medo. O cão se aproxima ainda mais. A moça me encara firmemente. Tentando ser prudente, procuro me proteger, e começamos a andar em círculo, até que alguém se levanta e, com um pedaço de pau, vem em nossa direção, afastando o cão. Um alívio. Sigo para o Congresso mexido com a intensidade daquela situação e com o impacto daquela cena.

Na abertura do Congresso, Ignácio Paim pede o microfone. Colega de Porto Alegre, negro, fala emocionado sobre suas primeiras impressões na África, continente onde jamais estivera: "Eu, pela primeira vez, senti-me maioria". Sua fala sensibiliza praticamente todos os presentes. Visivelmente enternecido, procura entender o que sente, cotejando isso com a experiência que vivia, na abertura do congresso, cujo palco inicial era dominado por brancos: "Estaremos aqui repetindo a antiga e conhecida situação?", pergunta ele.

Durante a apresentação de meu trabalho, relatando o caso de Joana acrescido das elaborações feitas durante o congresso de Fortaleza e também das reflexões realizadas após o congresso, escuto como comentário: "Vou ater-me ao que tem de psicanalítico no trabalho, então, me pergunto, o que é psicanálise nesse relato?" As palavras não foram exatamente essas, mas esse foi o sentido. Eu estava preparado, imaginava que ouviria algo assim.

Acho que entendo a natureza desses comentários. Procuraram apontar para uma determinada natureza do trabalho clínico pensando a clínica como o encontro entre analista e analisando. Nesse sentido, o mundo externo não figura senão como coadjuvante útil em determinadas circunstâncias. A própria frase "ater-me ao que tem de psicanalítico" indica uma leitura que se propõe como discurso de poder, ao sugerir, ainda que não o afirme, que o trabalho clínico de um colega psicanalista precise de certa averiguação e supervisão, pois alguns trabalhos podem ser exemplos do que não é psicanálise. Admito que esta seja uma possibilidade de compreensão. Podemos, contudo, também pensar que emerge em muitas situações como essa a função de vistoriar, calcada essencialmente nas avaliações superegoicas, que fiscalizam e que redundam em confirmações e reconfirmações do conhecido, os comentários tornando-se verificadores de autenticidade psicanalítica, pretensamente pura (sem que isso jamais seja declarado e assumido).

 

Brasil, 2018

De volta ao Brasil, seguimos uma rota de reflexões sobre a questão da escravização e da atualidade de suas consequências. Como trágico exemplo temos as reverberações do assassinato de Marielle Franco, militante LGBT e vereadora do Rio de Janeiro. E, como escreveu o músico e poeta Arnaldo Antunes, ela foi assassinada e reassassinada quando políticos eleitos deputados e governador do estado do Rio destruíram uma placa de uma rua que levava seu nome.

Também em 2018, duas notas no jornal ilustraram parte dessa realidade. Em Natal, capital do Rio Grande do Norte, uma mãe fantasiou o filho de escravo para "abrasileirar o Halloween" (https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2018/10/29/mae-fantasia-filho-de-escravo-para-festa-de-halloween-em-escola-de-natal-vamos-abrasileirar-esse-negocio.ghtml), e, na página dessa notícia, um link mostrando que uma conhecida blogueira já havia feito o mesmo (https://oglobo.globo.com/sociedade/blogueira-gera-revolta-com-roupa-em-homenagem-aos-escravos-22357849.). Em Treze de Maio, cidade do Sul criada em homenagem à Abolição da escravidão (assinada em 1888), apenas um cidadão se declara negro, e é imigrante.

Como vimos, a omissão da cor negra de Joana só foi revelada pela presença de uma psicanalista negra, que pediu a palavra e denunciou o preconceito de nossa apresentação. Desse mal-estar, transitamos entre esses diferentes lugares internos e externos, sentindo na pele o desconforto, a vergonha e o próprio mal-estar. Naquele momento, a palavra produziu uma inflexão decisiva nessa experiência, bem como as palavras trocadas entre Joana e sua analista. Entre o silêncio e a palavra tentamos nos movimentar assumindo aquilo que se torna perceptível, dando corpo e significado ao que transita inconscientemente. Estamos cada vez mais conscientes de que o peso da escravização, da pobreza e da violência não recai da mesma forma sobre todas as pessoas de uma sociedade, principalmente a brasileira. As diferenças são explícitas, escancaradas, e não podem deixar de causar assombro. Negros são reiteradamente violentados.

 

Considerações finais, a lama da Vale

Com a força das repetições mortíferas que não são elaboradas, a barragem de lama se rompeu, destruindo a vida de muitas pessoas. A prática clínica, mas também os próprios acontecimentos da vida em geral, confirma algumas ideias freudianas que mostram o dinamismo radical do psiquismo humano e a ineficiência de barragens precárias para esconder sujeiras.

Nesse sentido, a atitude perversa da empresa, que negou a realidade atestada e comprovada em vários documentos que alertavam para os riscos de rompimento, traduz o que também ocorre com a clínica das perversões, em que as consequências do que é feito não recaem no próprio sujeito. Este se protege, foge e jamais lida com a realidade de suas ações. O sofrimento psíquico é para quem sofre ou faz sofrer alguém, como já escreveu Kurt Schneider, psiquiatra alemão do século XX. Freud jamais ignorou essa ideia.

Assim como a barragem precária, penso que o silêncio psicanalítico diante da escravização representa a complacência diante das perversões sociais que nos constituem. Não podemos negar a importância de fazer a psicanálise pensar o real sem se enclausurar na assepsia de uma clínica quase laboratorial. Os efeitos dessa alienação são nefastos e podem ser verificados, por exemplo, na praticamente inexistência de psicanalistas negros ou pobres no país. Em geral, a psicanálise tem transitado num estrato muito específico da população brasileira.

Essa causa não estava diretamente presente nas reivindicações dos inconfidentes, eles estavam interessados na defesa de questões muito pessoais e comerciais, insatisfeitos com a política portuguesa que cobrava altos tributos. Em Cabo Verde, notei que a questão da escravização tocava as pessoas de diferentes modos, e, para muitos psicanalistas brasileiros, aquele evento foi uma grande oportunidade de reencontrar esse tema reprimido. A fala de Paim, já mencionada, "Estaremos aqui repetindo a antiga e conhecida situação?" ecoa com as constatações que faço e se aprofunda com as reflexões que esse tema solicita.

No caso de Joana, as barragens conscientes e inconscientes nos mostraram problemas. Na história de sua análise, ela se mantivera protegida de muito "lixo", identificada com ele. Ao longo do trabalho, conseguiu distanciar-se e discriminar quem era ela, quais eram suas responsabilidades e em que situações havia sido vítima. Assim, ao enxergar e poder contar sua história, foi capaz de mudar sua posição subjetiva, adotando na vida novas posturas, que ressignificam sua história. A mesma Joana nos mostrou como, ainda que a racionalidade consciente aponte nossos preconceitos, somos traídos pelo inconsciente. A fala de T. em Fortaleza foi interpretativa, mobilizou barreiras que estavam dentro de mim, se construindo e determinando o modo com que eu via e vivia a experiência.

A força da jovem cabo-verdiana que me segurava vigorosamente e me dizia que "não tivesse medo" é equivalente à fala de T. em Fortaleza e também ao depoimento de Paim no mesmo Congresso de Cabo Verde. Ainda assim, como o cão que continuou latindo, os "perigos" simplesmente não desaparecem pela força de nossas intenções.

Quando encerrava este texto, eis que mais uma imagem ganha a mídia nacional. A diretora da Vogue Brasil, comemorando aniversário de 50 anos, posa entre duas mulheres negras em cena que retrata explicitamente a escravização brasileira (https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2019/02/diretora-da-vogue-brasil-causa-polemica-com-festa-com-negras-fantasiadas-de-escravas.shtml).

Ainda que a executiva tenha argumentado que não pretendida retratar a escravidão, mas o candomblé, a historiadora Lilia Schwartz questiona o significado simbólico da foto (https://www.metro1.com.br/noticias/brasil/68613, historiadora-lilia-schwarcz-reage-a-foto-publicada-pela-diretora-da-vogue-brasil.html). Compartilho a dúvida com a historiadora, ressaltando que tais fatos, comuns no Brasil, devem-se à negligência com que tratamos a escravização. As barragens são frágeis, inadequadas e ineficientes, nada fazem senão conter temporariamente lama tóxica.

Assim, é papel da psicanálise problematizar a escravização como processo social, coletivo, institucional, individual e psíquico. As marcas dessa barbárie ainda são vívidas entre nós, e não será com o silêncio que conseguiremos questionar sua perversidade remanescente.

Todos conhecem a suma importância do trabalho "Mal-estar na civilização", em que Freud sinaliza as gigantescas dificuldades que temos em lidar com as vicissitudes de nossa condição humana, imbricada no conflito pulsional. Ao assumir e reiterar essas dificuldades, entretanto, Freud jamais subscreveu barbáries, abusos, explorações ou preconceitos e, tampouco anuiu com a subjugação do outro a qualquer condição que não aquela arduamente trabalhada pela própria pessoa. Finalmente, com a devida autorização, reproduzo uma imagem que expressa a recorrente necessidade de tornar pública, pensar, não consentir e buscar desenvolver, enquanto psicanalistas, reflexões e atitudes que possam contribuir com a disruptiva permanência da barbárie entre nós. Trata-se de uma fotografia que me foi enviada por um ex-paciente e retrata o absurdo das ameaças reais e perversas com as quais muitas pessoas convivem. Sua autorização e consentimento para que eu pudesse publicá-la me dão a certeza de que esse envio também consistia em um pedido de ajuda:

 

 

Referências

Barros-Varela, O. (2013). Cabo Verde: a máquina burocrática estatal da modernidade (1614-1990). In S. Costa & C. M. Sarmento, Entre África e a Europa: nação, Estado e democracia em Cabo Verde (pp. 173-208). São Paulo: Almedina.         [ Links ]

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Recebido em: 12/9/2019
Aceito em: 5/11/2019

 

 

1 Essa pesquisa bibliográfica foi feita na base de dados da biblioteca da SBPSP.
2 Meu agradecimento especial à psicóloga Fabiane Regine Gonçalves Manuchakian responsável pelo atendimento de Joana.

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