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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo jul./dez. 2019

 

TRADUÇÃO

 

As linguagens da ternura e da paixão

 

 

Marina F. R. RibeiroI; Péricles Pinheiro Machado JrII

IProfessora doutora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Membro fundador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC). Membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae / marinaribeiro@usp.br
IIPsicólogo e psicanalista. Membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Pesquisador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC). Doutorando pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Psicologia Social pela USP e pela Birkbeck College, Universidade de Londres / periclespmachado@icloud.com

 

 

A consideração simultânea da dimensão sexual e da dimensão das relações de objeto era uma marca da atualidade de Bálint, retomada nos dias de hoje, por exemplo, por André Green.
(Figueiredo, Ribeiro & Tamburrino, 2012)

De que modo podemos cotejar o primoroso trabalho de Bálint, "Eros e Afrodite", escrito em 1936, com as discussões da psicanálise contemporânea de 2020, sem corrermos o risco de o tratarmos como algo obsoleto e quase pornográfico? Que ressonâncias podemos captar ao escutarmos o texto de Bálint em seu caráter atemporal, mítico e decididamente criativo? Consideramos que a leitura de trabalhos psicanalíticos de outros tempos requer um esforço de contextualização no seio histórico da psicanálise e uma certa compreensão da trajetória e da transformação de alguns conceitos, além da compreensão das redes transferenciais e políticas presentes na ocasião em que o artigo foi escrito.

Michael Bálint (1896-1970) é um reconhecido herdeiro do legado de Sándor Ferenczi, o que não o impediu de desenvolver ideias e conceitos próprios, como apresentaremos brevemente a seguir. Nascido na Hungria e tendo migrado para a Inglaterra antes do início da Segunda Guerra Mundial, foi um psicanalista do Middle Group, isto é, um analista que, ao lado de Winnicott, não se alinhava explicitamente com qualquer uma das partes envolvidas nas célebres controvérsias Freud-Klein. Indubitavelmente compartilhou de alguns conceitos clínicos com seu contemporâneo britânico, tal como a importância do ambiente na constituição do sujeito, a importância fundamental do amor primário (narcisismo primário em Winnicott), a questão da regressão em análise e a possibilidade de um novo começo decorrente da resolução da falha básica em tais condições (Bálint, 1935/1994 e 1968/2014). Usufruindo da sua proximidade com Ferenczi, Bálint foi seu paciente, aluno e posteriormente colega. Partilhou do seu pensamento clínico como poucos na época o fizeram, dialogando com os textos de Ferenczi mesmo após a sua morte em 1933, ocasião em que a obra do psicanalista húngaro foi politicamente silenciada nas instituições psicanalíticas.

No artigo ora comentado, "Eros e Afrodite", Bálint (1936/1938) tem como interlocução dois importantes textos de Ferenczi: Thalassa. Ensaio sobre a genitalidade, de 1924, e o célebre "Confusão de línguas entre os adultos e a criança", de 1933. Provavelmente, este último texto de Ferenczi é um dos mais conhecidos e citados atualmente. Mas não era assim em 1936, conforme aludido.

A obra de Ferenczi permaneceu no ostracismo por mais de quarenta anos! Ele foi considerado o enfant terrible da primeira geração de psicanalistas (Kupermann, 2019). Sua morte precoce em 1933 talvez tenha evitado mais uma dissidência entre os escolhidos de Freud. Ferenczi foi um psicanalista intimamente ligado ao ofício clínico, em que exercia toda sua ousadia e criatividade em uma atitude que frequentemente desafiava o que ele denominava a hipocrisia do saber psicanalítico. Ou, poderíamos dizer, das instituições psicanalíticas, detentoras de um suposto conhecimento.

Ernest Jones, analisando de Ferenczi, "irmão" e contemporâneo de divã de Melanie Klein, condenou a obra de Ferenczi ao esquecimento, acusando-o de desequilíbrio psíquico. Jones se recusou a publicar os últimos textos de seu antigo analista, relegando-os a algo que poderíamos considerar como uma espécie de latência arbitrária na própria história da psicanálise. Seu polêmico manuscrito intitulado Diário clínico (Ferenczi, 1932/1990) foi mantido sob os cuidados de Bálint, tendo sido publicado primeiramente em francês apenas em 1985, ou seja, quinze anos após a morte de Bálint.

Bálint talvez seja um dos poucos psicanalistas que nas décadas de 1940 e 1950 permaneceram dialogando com os textos de Ferenczi. Melanie Klein pouco citou Ferenczi, provavelmente devido a questões políticas. No entanto, as ressonâncias do pensamento clínico de Ferenczi e de Abraham, seus dois analistas, são visíveis em sua obra (Cintra & Ribeiro, 2018).

Antes ainda de comentarmos o artigo de 1936, destacamos algumas contribuições de Bálint para a psicanálise contemporânea. Seu trabalho teve um lugar pioneiro no atendimento dos assim chamados casos difíceis, isto é, pacientes com problemas significativos na área por Bálint denominada falha básica. Tais pacientes são atualmente referidos como borderline ou com falhas marcantes em sua constituição narcísico-identitária. Bálint descreve pessoas que, apesar de terem realizações consideráveis em suas vidas, e mesmo depois de algum tempo em análise, continuam sentindo uma marcante inapetência para a vida. São pessoas que não se sentem capazes de amar ou experimentar o prazer. Ele então descreve uma falha no objeto primário, uma falha na passagem do amor primário para as relações de objeto propriamente ditas.

Bálint (1935/1994) nomeia uma relação de objeto libidinal, o que é surpreendente na década de 1930, conectando a sexualidade às relações objetais. Esse termo descreve uma relação objetal presente desde o início da vida psíquica, acompanhando Melanie Klein em linhas similares. Bálint diz que a mãe deve oferecer ao bebê uma atmosfera adequada, algo também muito próximo da noção de mãe ambiente de Winnicott, com algumas pequenas diferenças (Figueiredo, Ribeiro & Tamburrino, 2012). O que nos chama a atenção, portanto, é que as proposições de Bálint, enquanto originais, guardam ressonâncias significativas com as ideias que fervilhavam entre os psicanalistas na Inglaterra dos anos 1950. A riqueza dos trabalhos de Bálint por volta das décadas de 1940 e 1950 reside justamente em sua habilidade para conectar a dimensão sexual (pulsional) da experiência com a dimensão das relações de objeto (Figueiredo, Ribeiro & Tamburrino, 2012). Encontramos no pensamento de Bálint um objeto que estimula a pulsão, e uma pulsão que busca o objeto, questões estas que são caras à psicanálise contemporânea. Cabe dizer que nos textos de Bálint da década de 1960, em especial seu livro de 1968, A falha básica, o mais conhecido no Brasil, essa conexão se dilui, e ele, conjuntamente com Winnicott, favorece uma certa dessexualização da teoria psicanalítica.

Voltando ao texto de Bálint de 1936, pensamos que Eros e Afrodite são duas boas metáforas mitopoéticas para representar a ternura da criança e a paixão do adulto, com suas inúmeras confusões de língua, linguagens corporais e modos de organização do trauma. Há pesquisas sobre situações de abuso sexual (cf. França, 2014) em que o texto Confusão de línguas entre os adultos e a criança (Ferenczi, 1933/1992) oferece um arcabouço de referências fundamentais que favorece consistentemente a compreensão teórica e clínica desses casos. Aqui, no entanto, gostaríamos de apresentar outro vértice de reflexão sobre o tema.

Poderíamos considerar Eros e Afrodite como dois estados sexuais de mente no próprio adulto? Quando estes estados sexuais, a ternura e a paixão, encontram-se integrados, seriam estes os responsáveis por promover bons encontros amorosos e sexuais possíveis na vida de uma pessoa? Tentaremos expor melhor essa ideia, ainda que de modo bastante breve: pensamos em Eros (ternura) e Afrodite (paixão) como polos de um mesmo espectro de experiências da sexualidade intrínseca a qualquer vínculo.

Nosek (1997) no artigo "Pensamento e sexualidade" escreve que nenhum ato humano ou pensamento carece de raiz sexual. Essa é a revolução freudiana: não há estados dessexualizados de mente. Somos seres de paixões, e a sexualidade no sentido amplo compreendido por Freud está presente em todos os vínculos. O erotismo e a interdição marcam as relações humanas, desde nossas primeiras paixões, mãe e pai. As identificações são marcas de paixões, aquilo que resta depois que tudo foi esquecido ou reprimido.

O vínculo inicial e primordial mãe-bebê é de ternura e paixão: olhos nos olhos, beijinhos pelo corpo, suaves mordidas, risadas e sons de prazer. Freud (1905/1976) escreve que a expressão de saciedade do bebê após a mamada, assim como o sono que a esta sucede são semelhantes às expressões do adulto após o orgasmo. Podemos compreender essa imagem freudiana como uma manifestação resultante de um encontro amoroso e terno, erótico e apaixonado: uma união que implica intimidade, entrega, imaginação e criação. Ferenczi (1924/1990) descreve em Thalassa uma associação próxima à de Freud: o sono e o coito são uma regressão ao útero materno, um estado de entrega. Esta é a confiança no objeto primário descrita por Bálint (1935/1994). Ferenczi nos recorda que "Freud escreveu que o homem, na realidade, jamais nasce completamente, mas passa metade de sua vida no seio materno quando se entrega ao repouso noturno" (1924/1990, p. 92). Essa entrega ao outro, ao sono, ao orgasmo, ao inconsciente, ao sonho, é incessante e desafiadora.

O artigo de Ferenczi, "Confusão de línguas" (1933/1992) teve desdobramentos, entre outros, na teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche, segundo o qual o trabalho de Ferenczi constitui um verdadeiro prefácio à sua teoria (Laplanche, 1988). A situação originária (passividade originária) é o confronto entre o bebê (linguagem da ternura) e o mundo adulto (linguagem da paixão). A defasagem entre os protagonistas - a criança e o adulto - é o terreno do traumático, da confusão de línguas (Ribeiro, 2011). A sexualidade humana é inerentemente traumática (McDougall, 1997), ou seja, o encontro entre a criança em sua extrema dependência e desamparo com o adulto que dela cuida, considerando sua sexualidade inconsciente, é inevitavelmente traumático. A confusão de línguas que nos constitui psicossexualmente nos revela Eros e Afrodite sempre juntos, lado a lado, tal como na imagem mítica evocada por Bálint (1936/1938).

O enigmático do inconsciente parental, segundo Laplanche (2003/2015), é o Sexual - neologismo em forma substantivada introduzido por Laplanche para marcar uma diferença com a forma adjetiva francesa sexuel ao se referir à dimensão infantil da sexualidade. Mas, antes dele, Ferenczi já dizia que haverá sempre uma confusão de línguas mais ou menos intensa entre o adulto já marcado pelo sexual e a criança em sua linguagem de ternura - Afrodite e Eros, como propõe Bálint em 1936. A teoria do trauma pode ser compreendida como uma teoria da constituição do sujeito humano, marcado pelo traumático e pelo enigmático do Sexual. A confusão de línguas pode ser compreendida como parte do processo de constituição psíquica, sempre traumatizante, cujas variantes são a intensidade das paixões e as qualidades psíquicas do objeto externo. Eis a confiança no objeto primário de que nos fala Bálint na década de 1930: para amar e se entregar ao prazer é necessário confiar.

Bálint (1936/1938) descreve o processo no qual Eros nasce do caos e é a eterna criança que jamais se torna um adulto. Podemos pensar no caos pulsional de onde brotam sensações momentâneas e difusas de prazer, as zonas libidinais, lugares de trocas prazerosas com os adultos cuidadores. Um corpo erótico é um corpo marcado por uma geografia inconsciente de prazer e desprazer resultado dos encontros e desencontros com o adulto que cuida: pulsão e objeto amalgamados. O bebê busca o seio, assim como a mente da mãe. As primeiras experiências emocionais de um bebê são com o corpo e a mente inconsciente da mãe, entrelaçados por Eros, o seio terno que nutre o bebê, e Afrodite, o seio erótico na relação sexual. Bálint (1936/1938) escreve que Afrodite nunca foi criança, mas, segundo o mito, ergueu-se do mar como uma mulher adulta. A criança imagina que um adulto sempre foi grande, e se surpreende ao constatar que a mãe e o pai já foram crianças.

No livro Bálint em sete lições encontramos:

Afinal, Thalassa nos é apresentado como uma teoria da genitalidade, e o retorno ao seio marítimo é tanto um mergulho regressivo no estado pré-objetal quanto uma realização plena da experiência primordial de prazer. As formas e figuras do prazer e as formas e figuras das relações de objeto se cruzam e se imbricam umas nas outras (Figueiredo, Ribeiro & Tamburrino, 2012, p. 169).

Os vínculos afetivos são permeados por Eros e Afrodite, ternura e paixão enredados, a inevitável confusão de línguas que nos constitui. Bálint escreveu sobre isso em 1936 e podemos, em 2020, apreender a dimensão complexa dessa ideia, mesmo que parcialmente: Eros e Afrodite estão sempre juntos.

 

Referências

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