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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo jul./dez. 2019

 

TRADUÇÃO

 

Eros e Afrodite1

 

 

Tradução de Michael Bálint

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

 

 

Na Antiguidade clássica, há duas divindades soberanas do Amor que não são mera combinação de figuras idênticas, mas seres separados e distintos. Uma delas, Afrodite, pertence provavelmente ao mesmo grupo de deusas como Istar, Astarte e Ísis. Ou seja, ela era originalmente uma deusa-mãe. Em sua concepção mais desenvolvida do período clássico, entretanto, ela é representada como uma mulher jovem e encantadora que desperta amor por todos os lados e que, por princípio, vive ela mesma apaixonada. Ela não se sujeita a nenhuma lei moral e tem muitos amantes, entre eles, Adônis e Anquises. Ela também tem vários maridos, Hefesto, Ares e Hermes. Ela leva, de fato, uma vida sexual madura, embora nem sempre com o mesmo parceiro. Quando ama alguém, ela se entrega a seu amor. A outra divindade do amor é Eros, um deus poderoso e, no entanto, uma criança, um malandrinho travesso, devasso e imprudente. Os etnologistas certamente demonstrarão que ele em realidade simboliza o pênis, mas no momento não precisamos nos preocupar com isso. O que nos importa é que Eros jamais é concebido como um homem adulto. Ele é o fiel companheiro de Afrodite, mas nunca seu parceiro sexual. Ele só brinca, mas em suas brincadeiras ele realiza as mais difíceis tarefas. Ele é uma criança e, no entanto, é ainda mais poderoso que os maiores deuses. Um dos temas preferidos para sua representação nas artes plásticas é o Triunfo de Eros, no qual o próprio Zeus é conduzido em sua carruagem triunfal, sorrindo, ainda que acorrentado. Ou então os Amores são representados a brincar com as insígnias dos deuses supremos ou domando animais selvagens. Eros é de fato uma criança, mas suas flechas não poupam ninguém. Sendo o primeiro de todos os deuses, ele brota diretamente do Caos, e Platão escreveu o mais belo de seus diálogos em sua homenagem.

Assim, os gregos dividiam os fenômenos do amor em dois grupos, os quais foram então reunidos em duas ideias, duas divindades. Semelhante dualidade da experiência libidinal foi descrita por Freud nos Três ensaios. Na satisfação sexual precisamos distinguir entre o prazer preliminar e o prazer final, e deste último a sexualidade infantil ainda nada conhece. Todos os trabalhos acerca da teoria pulsional escritos desde a publicação da obra de Freud começaram por postular esses fatos, mas suas implicações ainda não foram plenamente esclarecidas. O prazer final foi tacitamente assumido como algo altamente desenvolvido, um pouco mais complexo, digamos, uma forma adulta de prazer que fundamentalmente não difere do prazer preliminar. Até Ferenczi, que enfatizou a posição excepcional da genitalidade entre as demais pulsões parciais, trata o erotismo final em sua teoria da anfimixia (1924, cap. 1) simplesmente como a soma total dos mecanismos do prazer preliminar. Essa suposição me parece duvidosa, e eu sugeriria que o prazer preliminar e o prazer final são dois modos distintos de se experimentar o prazer, análogos, mas fundamentalmente diferentes. Penso que essa distinção se torna evidente no contraste entre Eros e Afrodite.

Essa hipótese é apoiada pelo fato universalmente reconhecido de que existe uma estreita conexão entre prazer final e angústia: parece que o prazer final obedece ao desígnio de tornar os seres humanos adultos imunes à angústia. Na proporção em que a capacidade de um homem de tolerar o orgasmo é pequena e suas oportunidades de experimentar periodicamente o prazer final são limitadas por dentro e por fora, ele sucumbirá prontamente à angústia. Esse fato também é observado nos primeiros trabalhos de Freud. Podemos recordar o conhecido exemplo da neurose de angústia segundo o qual a angústia se repete constantemente na medida em que as excitações não consumadas persistem, enquanto os ataques de angústia cessam assim que a satisfação completa, o prazer final, é alcançada. Sabemos também que uma criança, que ainda não tem conhecimento do orgasmo, está muito mais sujeita à angústia do que um adulto. Parece então que uma condição da angústia é a desproporção entre as excitações reais, por um lado, e as oportunidades oferecidas para satisfação, por outro. Se a excitação ultrapassa certo limiar de intensidade, o orgasmo - o prazer final - é o único meio adequado de descarga.

Em relação ao exposto, há uma importante observação clínica para a qual Ferenczi chamou minha atenção em 1925. Sadger (1929, p. 350) foi o primeiro a descrevê-la alguns anos mais tarde. Curiosamente, ele aludiu a essa questão apenas como se abrisse um parêntese, em uma nota de rodapé, e, desde então, não se deu mais atenção ao assunto. A questão era a seguinte. Aprendemos com os legítimos perversos que eles não obtêm satisfação de sua atividade pervertida propriamente dita: esta apenas produz um estado extraordinariamente forte de excitação. Eles encontram o alívio derradeiro apenas posteriormente através da masturbação genital ou do coito. Isso se aplica igualmente à escopofilia ativa e passiva, ao fetichismo, ao sadismo, ao masoquismo ou a quaisquer outras formas que a perversão venha a assumir. Fornecerei dois exemplos dentre muitos. Um homem em torno dos 40 anos era exclusivamente homossexual e somente tentara se relacionar com uma moça uma ou duas vezes, por curiosidade, para ver como ele se sairia. Em nenhuma ocasião, no entanto, ele sentiu a mínima emoção. Ao longo da vida, ele desempenhou um papel passivo no ato sexual, que quase sempre assumia a forma de coito per anum, e durante longos períodos ganhara a vida na prostituição, geralmente vestido como uma mulher. Ele procurou a Policlínica por conta de sua masturbação obsessiva. Mesmo quando teve a oportunidade de realizar o ato sexual com um parceiro adequado, possivelmente em diversas ocasiões, esta resultou apenas em excitação que por fim teve que ser descarregada por meio de repetidas masturbações. A única forma de gozo de que ele era capaz era a masturbação durante a pædicatio.2

O segundo paciente era um rapaz de cerca de 30 anos que exibia uma eclética coleção de perversões - vários métodos de manipulação do ânus, que se assemelhavam à masturbação, escopofilia, tomando por objeto jovens vestidos com calções justos (escoteiros, atletas etc.), uma compulsão a adquirir e se vestir com calções, a qual ele considerava prazerosa, diversas práticas homossexuais, tanto ativas como passivas, mas também tentativas de relações heterossexuais com prostitutas. Em sua busca por satisfação, ele frequentemente combinava várias dessas atividades, mas o resultado disso tudo era apenas um estado mais intenso de excitação, jamais de satisfação. Ele somente conseguia atingi-la por meio da masturbação realizada por ele mesmo ou por outra pessoa.

Devo diferir para uma ocasião futura a tentativa de apresentar a pertinência dessas observações sobre a teoria geral da perversão. Por ora, direi apenas que nós nos acostumamos a pensar que nas perversões ocorre uma usurpação da hegemonia da genitalidade por uma ou outra pulsão parcial, e que toda a sexualidade do indivíduo se organiza sob a primazia dessa pulsão parcial. Mas isso é apenas uma parte da verdade. É verdade que nos perversos alguma pulsão parcial ocupa o primeiro plano e que sua excitação prevalece sobre todo o resto. Essa, porém, encontra por fim sua descarga pelo método genital do prazer final, ainda que de forma velada. Assim, a perversão é apenas um meio de estimulação, um caminho indireto para o prazer final genital, um modo muitas vezes tortuoso e às vezes realmente perigoso para o próprio sujeito, mas um caminho que ele deve seguir porque todos os outros caminhos encontram-se bloqueados pelo recalque. Assim como nos sonhos, o mecanismo da perversão é o deslocamento do afeto. A ênfase é deslocada do primário para o secundário - isto é, para a pulsão parcial - para que a satisfação genital subsequente possa, a esse preço, ser finalmente atingida. Os sintomas grosseiros das perversões são em realidade apenas um subterfúgio ou mesmo um engano, uma fraude, e isso decerto está inteiramente de acordo com o caráter geral dessas pessoas infelizes.

Uma alusão a esse fato encontra-se na velha piada sobre dois homens que fizeram uma aposta para ver qual deles conhecia mais formas de prazer sexual. Um deles mencionou a relação normal como a primeira forma, o que levou o outro - notadamente tido como um velho libertino - a declarar que ele havia perdido a aposta, pois nunca havia pensado nesse método. É bem possível que isso fosse verdade. Mas ele certamente tinha a seu alcance muitos outros meios para obter prazer. Por que ele não os revelou? Sem dúvida porque, mesmo segundo sua ótica, a soma de todos esses meios não se equiparava à relação normal.

Desse modo, se conferirmos uma posição excepcional na economia libidinal ao prazer final genital, responderemos ao mesmo tempo à velha pergunta de por que a genitalidade não é uma perversão. É lógico que essa questão surgiu da teoria da libido, segundo a qual a genitalidade seria apenas uma pulsão parcial que de maneira alguma se distinguiria das demais pulsões parciais. Enquanto apenas os mecanismos de prazer preliminar estiverem operando, a genitalidade não terá realmente uma posição preferencial. Mas toda a situação muda tão logo o prazer final possa ser experimentado regularmente, pois este parece estar de alguma forma ligado à genitalidade. Por outro lado, as perversões - isto é, os métodos tortuosos - podem se formar somente por mecanismos do prazer preliminar.

Há outra distinção igualmente importante, mas que não parece ser universalmente válida. Sabemos que o erotismo ligado ao prazer preliminar não é masculino nem feminino, mas é experimentado por ambos os sexos da mesma forma. Suas metas e, muitas vezes, seus objetos são os mesmos. Em realidade, essa forma de erotismo é assexual. É verdade que chamamos algumas dessas atividades e modos de comportamento de masculinos ou femininos, mas em grande medida tal descrição é arbitrária e, além disso, quase todas essas interpretações são baseadas nas duas equações mais do que duvidosas: "ativo = masculino" e "passivo = feminino" (Hermann, 1935). Isso tudo se aplica com especial ênfase ao prazer preliminar associado à genitalidade. Como já propus anteriormente, esse tipo de prazer preliminar é, na verdade, não mais importante do que as demais pulsões parciais até que a experiência do prazer final tenha sido estabelecida. Se tivermos isso em mente, talvez possamos dar uma explicação mais simples da tão discutida fase fálica. Acima de tudo, teremos um melhor esclarecimento sobre a observação peculiar de que nessa fase os dois sexos ainda não estão diferenciados. Por outro lado, a função do prazer final é sempre sexualmente diferenciada. Fica bastante claro que, em contraste com os mecanismos do prazer preliminar, o prazer final - e somente o prazer final - tem dois arranjos: masculino e feminino.

O mecanismo que produz prazer preliminar é muito simples: geralmente assume a forma de afagar, fazer cócegas, lamber ou chupar. Nos adultos, a reação correspondente pode ser sorrir, gemer, rir ou mesmo gritar, suplicar etc. A situação assemelha-se ao gracejo e ao burlesco. Portanto, o erotismo do prazer preliminar é uma espécie de jogo para os adultos, algo bastante simples, sem uma meta muito definida e, consequentemente, desarticulada e incoerente. É, de fato, uma espécie de passatempo. Por sua vez, a função do prazer final é séria, dramática, se não trágica. Muitas vezes chega a ser uma questão terrivelmente solene, pois animais de muitas espécies eventualmente morrem durante o primeiro orgasmo. Até a expressão facial transmite esse sentido, pois torna-se quase sombria. Lembremos, por exemplo, a Leda de Michelangelo. Acima de tudo, o coito é definitivamente algo que visa a uma meta: não se trata de passatempo, mas de um processo com uma intenção precisa, uma tarefa a ser executada. Mas qualquer pessoa que saiba fazer uso amplo e habilidoso de vários mecanismos de prazer preliminar no coito será considerada pervertida, não apenas por teólogos católicos ou puritanos, mas também por leigos em geral. Isso está plenamente de acordo com o que eu disse anteriormente, pois aqui novamente a questão é darmos uma volta mais longa com o objetivo de aumentar a excitação ao maior grau possível. Vemos então que, especialmente em adultos, o prazer preliminar está para o prazer final assim como a brincadeira está para a solenidade. Nós não nos surpreendemos com essa constatação, pois somente quando o orgasmo advém, certamente após a excitação, é que o jovem se torna um homem e a moça, uma mulher.

E, finalmente, o erotismo ligado ao prazer preliminar manifesta-se nas crianças desde os primórdios, enquanto a função do prazer final está, sem a menor dúvida, sujeita às determinações do tempo. Não é possível afirmar precisamente quando tem início ou quando termina, mas a divisão da vida humana em infância, puberdade, maturidade, climatério e velhice baseia-se nas fases da função do prazer final. A capacidade para se experimentar esse modo de prazer não está presente desde a origem, mas provavelmente se desenvolve durante ou imediatamente antes da puberdade e é então lenta e gradualmente estabelecida. Na velhice, torna-se mais fraca e finalmente desaparece ou, no máximo, faz aparições esporádicas. Por sua vez, o erotismo ligado ao prazer preliminar é perene: tem início com o nascimento e cessa somente com a morte. Essa diferença é belamente representada nas figuras das duas divindades gregas do Amor: Eros surge do caos quando criança e jamais se torna adulto, enquanto Afrodite nunca foi criança, mas, segundo o mito, ergueu-se do mar como uma mulher adulta, Anadiômena, e permanece eternamente jovem. Os autores foram unânimes em adotar esse ponto de vista. Em sua Genitaltheorie, o próprio Ferenczi oferece um relato detalhado da fisiologia do prazer final genital. Ele afirma que na história das origens a genitalidade, tal como Afrodite Anadiômena, emergiu do mar. É bem claro que ele gostaria de dar à genitalidade uma posição especial, mas ele estava por demais influenciado pela visão geral do assunto para que a nossa pergunta atual viesse a lhe ocorrer. Apesar do título de seu artigo, "Sobre a gênese da genitalidade", Rank (1925) aborda somente a gênese das relações de objeto genitais.

Vou resumir agora, em forma de tabela, algumas diferenças adicionais entre o prazer preliminar e o prazer final. Penso não haver necessidade de descrevê-los amplamente, uma vez que Sadger (1929, p. 350) já tratou dessa questão de maneira mais minuciosa.

 

 

Chegamos agora ao nosso principal problema. Terá a função do prazer final evoluído a partir do erotismo do prazer preliminar, ou teria essa função se desenvolvido isoladamente? É notável que essa questão da origem nunca tenha sido levantada em relação ao erotismo do prazer preliminar. Aparentemente, tal como o próprio Eros, o prazer preliminar brota diretamente do Caos. Por outro lado, ao longo dos tempos, tem havido muitos que se esforçaram para descobrir por que, de onde e como o prazer final chegou até nós. Nos mitos, nas lendas, nos contos de fadas, nas anedotas e nas teorias filosóficas e científicas, tentativas foram feitas para se resolver esse problema. Na literatura psicanalítica, a visão aceita - aceita, de fato, sem discussão - foi a que Rank (1925) formulou precisamente assim: "É certo que a genitalidade se desenvolveu a partir do erotismo pré-genital, através do deslocamento da libido". A maior parte da literatura psicanalítica sobre esse assunto surgiu entre 1924 e 1930 e foi indubitavelmente inspirada na teoria genital de Ferenczi.

O excelente estudo de Sadger (1929, p. 350) é uma peça exemplar de descrição clínica, mas não trata da gênese do orgasmo. Em A função do orgasmo, Reich (1927, em especial, cap. 6) conclui que a genitalidade é composta pelos três elementos fundamentais a seguir: (1) erotogenicidade local da zona genital (a suscetibilidade genital aos estímulos), (2) libido somática centrada nos genitais (a impulsão genital) e (3) libido psicogenital (o desejo genital). Nesse segundo ponto está reproduzida a teoria da anfimixia de Ferenczi. O terceiro ponto, sobre o desejo genital ou, mais corretamente, o amor ativo, na verdade não se enquadra no escopo do presente artigo, e, além disso, recentemente afirmei (Bálint, 1935) de forma concisa tudo o que sei sobre esse assunto. O primeiro ponto, a questão da suscetibilidade genital ao estímulo, isto é, por que o órgão genital em particular é apropriado para produzir orgasmo, leva diretamente ao nosso problema. Reich, no entanto, não foi mais além, e encaminhou seus leitores à fisiologia: "A explicação do fato de que o aparato genital é o único instrumento de satisfação orgástica deve estar na estrutura fisiológica das diferentes zonas erotogênicas" (Reich, 1927, p. 150). Certamente isso é verdade, mas não iremos desistir, contudo, da tentativa de avançar um pouco mais no campo da psicologia.

Antes, porém, devemos fazer uma excursão pela biologia. Como vimos, o prazer preliminar perdura tanto quanto a própria vida humana, surge continuamente e está inseparavelmente ligado a todas as funções somáticas (por exemplo, nutrição, digestão, excreção, percepção sensorial, atividade muscular etc.). Portanto, é provavelmente uma das funções primordiais do nosso corpo, o soma. Por outro lado, o prazer final - orgasmo - parece ser uma aquisição relativamente recente. Ao longo da vida, há um elemento estranho nesse fenômeno: ele age sobre o organismo de maneira intoxicante ou mesmo atordoante. Além disso, em contraste com o prazer preliminar, pode-se viver sem o prazer final durante um longo período de tempo, e mesmo a capacidade para experimentá-lo não perdura por toda a vida. Frequentemente ouvimos dizer que os idosos ficam bem felizes quando finalmente conseguem sentir-se livres das exigências do prazer final (Cícero, 44 a.C.; Schopenhauer, 1851; Wells, 1926; e muitos outros). Pode-se então concluir que o soma, ou seja, nosso corpo, era originalmente assexual, incapaz de orgasmo, mas não de erotismo, e que a princípio só conhecia o prazer preliminar. Mais tarde, porém, no decurso da filogênese, ficou sujeito à diferenciação sexual e capacitado ao prazer final. Sabemos que, como todos os vertebrados, somos constituídos por dois sistemas diferentes, as células corporais diploides e as células germinativas haploides, e, portanto, deve haver alguma relevância no fato de que o período em que surge o prazer final coincide aproximadamente com aquele em que células germinativas haploides maduras estão presentes no corpo. Certa vez, tentei decifrar (Bálint, 1932, p. 28) essas relações, mas apenas consegui chegar à conclusão de que o ato da cópula, o orgasmo, a individualização e a morte aparecem concomitantemente na história da raça, desenvolvem-se em linhas paralelas e provavelmente devem ter uma explicação comum a tais fenômenos, uma vez que nenhuma dessas funções é atributo primordial da vida ou do soma.

Também na vida psíquica, um forte desejo genital - o anseio pelo prazer final (e às vezes a própria experiência) - envolve perturbações consideráveis. Com muito mais frequência do que qualquer outro, esse impulso leva a conflitos, e a solução nessas ocasiões costuma ser a regressão com a qual já estamos familiarizados. Isso está de acordo com o fato de que, em contraste com as formas de prazer preliminar, que são aproximadamente contínuas, o prazer final é obviamente intermitente. Assim, também a esse respeito, pode-se dizer que este ocupa uma posição intermediária entre os estímulos pulsionais genuinamente somáticos e aqueles que se originam no mundo externo. Tal argumento biológico sugere que o prazer preliminar e o prazer final são duas funções separadas, ou seja, que o prazer final não evoluiu a partir dos mecanismos do prazer preliminar.

Voltemo-nos agora para a psicologia. Com exceção de Ferenczi (1924; 1933), a maioria dos autores psicanalíticos discutiu a função orgástica do ponto de vista dinâmico. Vamos considerar seu aspecto econômico. Nossa primeira ideia provavelmente seria que o prazer preliminar está associado a um menor grau de excitação e o prazer final, a um grau maior. Mas isso não corresponde aos fatos. Como vimos no caso de perversões e das sutilezas da ars amandi, os mecanismos do prazer preliminar são capazes de produzir intensa excitação. Eles podem produzi-la, mas não podem descarregá-la. Parece que qualquer quantidade considerável de excitação apenas pode ser descarregada por meio do prazer final genital. Se essa saída estiver bloqueada pelas resistências devidas ao recalque e o único caminho aberto para o indivíduo for o prazer preliminar, o resultado é uma neurose de angústia ou alguma forma de anseio desejoso mórbido. Do ponto de vista econômico, a neurose de angústia corresponderia à tensão sempre crescente, enquanto o anseio desejoso representaria um modo forçado de descarga em refracta dosi - e a tensão, neste caso, seria constante e dolorosamente grande, como é o caso na ischuria paradoxa.3

O órgão genital, por outro lado, não é apropriado para produzir essa tensão excessiva, pois a satisfação culminante é facilmente induzida e é seguida por uma fase de resistência a estímulos. O flertar só é flertar se não levar ao prazer final: suas armas são os mecanismos do prazer preliminar, e o prazer final é, para este, fatal. Por outro lado, se não houver a preparação do prazer preliminar, a satisfação proporcionada pelo coito é menos completa, conforme demonstrado por Ferenczi em sua contribuição de 1912 na Sociedade Psicanalítica de Viena para a discussão sobre a masturbação (Ferenczi, 1912, cap. 6). Uma das condições essenciais do prazer final satisfatório é que este deve ser precedido por um aumento considerável da tensão, mas o prazer preliminar não depende de maneira alguma disso.

Até certo ponto, esse aumento de tensão é ocasionado pela situação objetiva. Se um homem deseja obter satisfação genital, ele deve primeiro assegurar a conformidade de seu objeto de amor. Essa não é uma condição indispensável no caso de toda pulsão: é muito menos necessária no que diz respeito às pulsões orais e anais, mas um pouco mais na escopofilia ativa ou passiva. Em muitas perversões, a exemplo da cleptomania e do fetichismo, o objeto de amor é algo inanimado. A genitalidade (assim como o sadomasoquismo) exige muito mais a conformidade do objeto de amor. Se nosso objeto não cede ou não se enquadra em nossos desejos, e, se não se sentir uno conosco, a satisfação genital dificilmente será possível. Algo deve ser feito, portanto, para converter o objeto em um parceiro genital.4

Assim, a situação objetiva explica em parte a necessidade de um aumento da tensão antes do prazer final. Mas essa explicação é muito inadequada. Os fenômenos clínicos que precedem e acompanham o ato do coito são certamente de caráter violento demais para serem explicados simplesmente como o processo de assegurar a conformidade do objeto de amor. Esses movimentos dificilmente podem ser ditos coordenados, e sua consciência é em algum grau nublada. Se buscarmos fenômenos semelhantes, devemos primeiro destacar os ataques epiléticos, depois as deflagrações de afeto, como a raiva e o pânico, e finalmente as neuroses traumáticas. Todos esses são caracterizados por uma tensão intolerável que produz incessantemente movimentos de um tipo particular. Estes são quase ou inteiramente incontroláveis, na natureza dos reflexos e, ainda assim, rítmicos, e devem perdurar por certo período de tempo a fim de fazer desaparecer a tensão. Freud (1920) sustenta que nessas situações o indivíduo experimentou algum estímulo excessivamente forte e que a excitação resultante é tão intensa, que ele não pode descarregar tudo de uma só vez. A dominância do princípio do prazer é temporariamente suspensa, ou seja, o ponto crucial não é mais se a excitação é prazerosa ou dolorosa: esta deve ser reduzida a todo custo. O esforço para reduzi-la sempre assume a forma de movimento. Freud deduziu esse modo arcaico de funcionamento do aparato psíquico com base nas neuroses traumáticas, em certas brincadeiras infantis e nos fenômenos da transferência. Um quarto objeto de estudo a esse respeito pode muito bem ser a função do prazer final, pois nele penso que podemos observar uma situação traumática em statu nascendi. Infelizmente, quase tudo o que nossos analisandos nos dizem a esse respeito refere-se ao corpo. Podemos aprender muito pouco dos processos mentais, talvez apenas porque ocorram em estratos arcaicos aos quais é difícil obter acesso. O escasso material que os pacientes produzem têm conteúdo aproximadamente como este: - Eles sentem uma tensão crescente que produz uma impulsão em direção ao movimento rítmico; a tensão torna-se ainda maior ... eles querem se livrar da tensão a todo custo, mesmo que isso envolva sofrimento ... eles mal podem suportar ... eles geralmente gemem, soluçam, choram ou até blasfemam; às vezes, chegam a atos de agressão ou violência contra seu parceiro sexual. ... Eles descrevem o sentimento experimentado antes que a excitação atinja seu clímax como uma incapacidade de se conter, uma sensação de ruptura, dissolução ou desintegração. ... É somente ao término que há uma sensação tranquila e serena de bem-estar. Este último parece ser a forma primária de prazer. É certo que todas as funções do prazer preliminar têm o bem-estar como sua meta direta, e, mesmo que não o possam alcançar por si, esse estado é não obstante perseguido e finalmente atingido pela maneira tortuosa de se aumentar a excitação e o prazer final.

O que acabei de dizer lança luz sobre um distúrbio particular da função sexual. Quando o estímulo é excessivo - como pode ser observado com frequência no caso de homens que estão abstinentes há muito tempo -, a tendência a se aliviar a tensão torna-se tão poderosa, que o prazer da satisfação é consideravelmente reduzido ou pode até desaparecer por completo. Alguns homens fazem disso um sistema regular: o primeiro coito tem esse caráter traumático e produz nada além de alívio; somente após o segundo coito haverá algum prazer. Quando a quantidade de excitação pode ser mais precisamente regulada, para que um homem tenha certeza de que não excederá o que ele próprio deseja e sabe ser capaz de tolerar, então e somente então, a gratificação - o prazer final - é satisfatória.

Do ponto de vista econômico, o prazer final é a integração de duas tendências conflitantes. A primeira é a mais arcaica e quase pode ser chamada de biológica. Ela data do período anterior à afirmação do princípio de prazer. Seu objetivo é aliviar a tensão a todo custo e não é necessariamente agradável. A tendência à autotomia, descrita por Ferenczi (1924, cap. 4), pode servir como protótipo dessa tendência. A segunda é de origem muito mais recente e, sem dúvida, mental. Seu fim é manter a excitação em um determinado nível considerado seguro e submeter-se consciente e deliberadamente a esse grau de excitação, com a garantia de poder descarregá-la. Essa função, que quase pode ser chamada de consumação, é eminentemente prazerosa.

Pfeifer (1928) tem uma linha de pensamento semelhante. Ele também distingue dois tipos de descarga. Quanto mais primitiva a pulsão, menor será o aumento de tensão possível de ser tolerado e mais cuidados devem ser tomados para que "estímulo e satisfação coincidam o mais próximo possível no tempo". Pfeifer sustenta que a diferença entre esse modo de descarga e a genitalidade reside em certo elemento "catastrófico" que foi trazido para dentro desse processo.

Se seguirmos essa linha de pensamento, ela nos levará diretamente à psicologia do ego. O conceito de "força do ego" é um dos que temos empregado com frequência, especialmente nos últimos anos. Ainda não foi definido com exatidão, mas é claramente baseado em uma ideia quantitativa. Eu agora sugeriria que a força do ego em um dado momento pode ser medida pelo máximo de tensão ou de excitação máxima que este pode tolerar sem perturbação. Em condições razoavelmente normais, a única excitação que se aproxima desse máximo em adultos é a excitação experimentada antes e durante o orgasmo. Mesmo supondo que essa situação não fosse a única, é certamente a mais frequente, pois é uma das condições normais da vida adulta. Aqui temos uma explicação simples do que parece um pouco misterioso - o ditado de que a vida sexual é o padrão de toda a vida. Os primeiros sinais de distúrbio latente ou deficiência no ego tornam-se perceptíveis quando este é submetido a uma tensão de excitação mais forte, isto é, precisamente na "função orgástica". Por outro lado, as pessoas que podem periodicamente se expor com segurança ao orgasmo têm um ego suficientemente forte, que pode suportar tensões de outros tipos.

De modo geral, todos aqueles que educam os mais novos têm apenas dois métodos. Por um lado, as crianças são tratadas com amor, isto é, estão sujeitas a uma tensão libidinal, do ponto de vista econômico. (Estou pensando em coisas como acariciar, acalentar, abraçar e beijar uma criança ou colocá-la sentada sobre os joelhos.) Por outro lado, certos canais de prazer preliminar são fechados para a criança - isto é, quando ela é desmamada, quando o sugar é proibido ou quando ela é treinada nos hábitos de limpeza e regularidade. Assim, a educação ameaça o já instável equilíbrio libidinal da criança de ambos os lados simultaneamente: a excitação real é aumentada e as oportunidades de descarga são restringidas.

Quando a tensão é muito alta, a criança tem duas maneiras de recuperar o equilíbrio. Ou seu ego pode ficar dominado pela crescente excitação, e forma-se um estado de pânico, que então encontra alívio em uma deflagração de afeto e em movimentos descoordenados. Ou então ela fará todo o possível e invocará todas as suas energias para conter a excitação. O primeiro método se assemelha a um espasmo clônico e o segundo, a um espasmo tônico. Agora, não há dúvida de que esses dois modos de reação são as formas primárias de defesa do ego. E penso que as formas posteriores, das quais Anna Freud (1937) foi a primeira a dar um relato sistemático em seu recente livro, derivam destas e são, por assim dizer, superestruturas psíquicas baseadas nesses dois modos quase físicos de defesa.

Claramente, a educação vai no sentido tolerar-se a excitação: ela considera com horror qualquer deflagração de afeto. Às vezes, alcança muito bem seu propósito: as crianças aprendem a tolerar tudo - mas pagam por isso com uma condição cronicamente espástica. Elas reagem a todos os estímulos com um espasmo cada vez maior, especialmente se estiverem incertas quanto à possibilidade de o estímulo se tornar ainda mais poderoso. Ferenczi (1919, cap. 15; 1925, cap. 32) foi o primeiro a chamar a atenção para essas formas físicas de defesa (especialmente a tensão muscular crônica). As pessoas com essa disposição espástica conseguem se entregar à livre associação apenas com grande resistência. Elas jamais podem se abandonar ao amor e quase nunca conseguem relaxar com prazer. Percebemos um retorno de material recalcado quando as mulheres que sofrem de frigidez espástica riem ou choram convulsivamente em vez de experimentar o orgasmo. Afinal, o espasmo tônico abriu o caminho para a deflagração clônica do afeto.

Na função do prazer final, encontramos também essas duas tendências: a tendência clônica, mais biológica, para aliviar a tensão e a tendência mais psicológica, que tem maior afinidade com o ego, para tolerar ou até aumentar a excitação. Podemos agora entender que a cooperação não perturbada dessas duas tendências exige uma certa força no ego (e nas pulsões). Isso provavelmente só pode ser alcançado após as revoluções biológicas da puberdade. Ainda então, ao menos em nossa civilização moderna, a descoberta do prazer final tem um efeito traumático. Kovács (1926) foi a primeira a mostrar que, quando o prazer final é experimentado pela primeira vez, muitas vezes desperta medo e angústia. Nos homens, isso ocorre por ocasião da primeira ejaculação e, nas mulheres, por ocasião do primeiro orgasmo, sejam estes induzidos pela masturbação ou pelo coito (defloramento). É muito raro que esses processos ocorram sem nenhuma perturbação. A "cura espontânea da pré-genitalidade", descrita por Anna Freud (1937, p. 162), ocorre apenas muito gradualmente e os primeiros atos quase nunca são modulações prazerosas. É verdade que aliviam a tensão, mas demora muito para se tornarem agradáveis. Assim, há muito a ser dito em defesa do aparente paradoxo de que o coito, o protótipo do prazer, é em sua origem inteiramente desprovido de prazer e de que sirva apenas à tendência à autotomia, e que somente mais tarde, quando a erotização ocorrer, torna-se então agradável e fonte de satisfação.

As muitas pessoas que sofrem de distúrbios de potência ou de frigidez não estão adoecidas em realidade, mas apenas inibidas em seu desenvolvimento. O ego dessas pessoas não é forte o suficiente para suportar uma tensão de semelhantes proporções: ou se alivia em um tipo de curto-circuito (a exemplo da ejaculatio proecox) ou se perde em tentativas convulsivas de forçar a excitação a uma tonalidade ainda mais aguda (no caso da frigidez). Às vezes, isso é bem-sucedido até certo ponto, mas o próprio espasmo impede o prazer final, e não resta mais nada além de cessar por exaustão. Pacientes desse tipo sempre descrevem o progresso de suas análises nos mesmos termos. Dizem coisas como "eu poderia ter demorado ainda mais", "eu acabei fazendo bobagem", "eu poderia ter aguentado mais" etc.

A linha de pensamento que tenho empreendido neste artigo nos levaria a uma série de problemas interessantes, tais como a diferença entre masculino e feminino, o fenômeno da angústia primária diante do perigo pulsional, as diferenças econômicas entre a vida pulsional das crianças e a dos adultos e outros pontos semelhantes. Na presente ocasião, porém, não poderei tratar desses aspectos; apenas resumirei, portanto, as principais conclusões às quais chegamos.

A diferença entre prazer preliminar e prazer final é muito mais fundamental do que se supunha até agora. A função do prazer preliminar é comparativamente simples e parece ser um atributo primordial dos seres vivos. A função do prazer final é, por outro lado, uma aquisição mais recente na história da humanidade e é tão complicada que cada indivíduo precisa aprendê-la novamente. Essa função consiste em duas tendências opostas, e a integração de ambas constitui um orgasmo. Isso pode ser chamado de consumação e depende da capacidade de se tolerar um grau de excitação que é quase traumático. Eu tentei mostrar a influência dessas observações sobre a teoria da libido e a psicologia do ego.

 

Referências5

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1 Trabalho apresentado na Ferenczi Memorial Lecture em Budapeste, em 23 de maio de 1936.
2 N. T. Termo arcaico derivado do latim para sexo anal (Ellis & Symonds, 1897).
3 N. T. Ars amandi, expressão do latim que designa "a arte de amar". Refracta dosi, expressão utilizada na medicina para relatar que uma dose de determinado medicamento é tomada em partes iguais durante certo período de tempo. Ischuria paradoxa, termo da medicina que designa incontinência urinária por transbordamento.
4 Essa conformidade é alcançada por meio de mecanismos do prazer preliminar: é como se os dois parceiros primeiro tivessem que se tornar crianças juntos, a fim de desenvolverem juntos a capacidade adulta de orgasmo. (Nota de Alice Bálint)
5 N. E. As referências foram mantidas conforme o original e posicionadas ao final do texto.

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