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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo jul./dez. 2019

 

RESENHA

 

Melanie Klein: autobiografia comentada

 

 

Paula F. R. da SilvaI; Tradução: Elsa Vera Kunze Post Susemihl; Paulo Sérgio de Souza Jr

IMembro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), São Paulo / paulafrs@yahoo.com.br

 

 

 

Organização: Alexandre Socha
Comentários: Claudia Frank, Izelinda Garcia de Barros, James Gammill, Liana Pinto Chaves & Robert Douglas Hinshelwood
Tradução: Elsa Vera Kunze Post Susemihl & Paulo Sérgio de Souza Jr.
Editora: Blucher, 2019
Resenhado por: Paula F. R. da Silva, São Paulo

"Poucos meses antes de completar 78 anos, Melanie Klein (1882-1960) decidiu reunir em um único texto uma série de fragmentos esparsos que vinha escrevendo" (p. 7) - é assim que Alexandre Socha, organizador de Melanie Klein: autobiografia comentada, inicia sua apresentação desse livro precioso, que traz pela primeira vez para o leitor de língua portuguesa esta Autobiografia.Socha, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), tem se dedicado ao garimpo e à publicação cuidadosos de textos psicanalíticos relevantes e esteve recentemente envolvido na edição bilíngue do Manuscrito inédito de 1931, de Sigmund Freud,1 do qual escreveu o prefácio. Nele, afirma que

com a atual publicação temos, portanto, a oportunidade de contar com mais uma peça no intrincado quebra-cabeças de um pensamento fértil e ainda hoje em contínuo movimento. Peça essa fugidia, que, após tantos percalços, pode, agora, ser descoberta e reencontrada por cada um dos leitores. (p. 26)

Afortunadamente, parece também ser esse o caso da presente Autobiografia.

Cerca de um ano antes de sua morte em 1960, Melanie Klein compilou uma série de notas autobiográficas que vinha escrevendo, chegando à versão aqui apresentada. Dois anos depois, Betty Joseph a enviou a Roger Money-Kyrle, então responsável por coordenar uma edição completa dos escritos de Klein,2 para avaliar sua inclusão ali. Ela não foi publicada na ocasião, vindo a ser integrada aos documentos de Money-Kyrle no "Wellcome Trust" após sua morte, em 1980. Paralelamente, as notas avulsas permaneceram nos arquivos de Klein no mesmo "Wellcome Trust", sendo amplamente citadas ao longo dos anos e mais recentemente transcritas e publicadas como dez fragmentos em The Autobiography of Melanie Klein, de Janet Sayers e John Forrester (2013).

Tantos anos depois, o objetivo da publicação da versão final da Autobiografia, esclarece R. D. Hinshelwood3 mais adiante no livro, é

oferecer uma primeira impressão a respeito da maneira como Melanie Klein via sua vida em retrospectiva, agora como mulher idosa. As imagens de sua infância, da família e de sua relação com os pais e irmãos transmitem um distanciamento emocional alcançado depois de muitas décadas por uma mulher relativamente satisfeita com sua contribuição como psicanalista. (p. 29)

Apresentam-se então as questões sobre o longo percurso que essa Autobiografia teve de cumprir até chegar ao público e sobre a imagem de Klein nela apresentada. Ainda em sua apresentação, Socha refere-se a ambas e oferece ao leitor elementos interessantes para ampliar a reflexão - lembra que toda narrativa autobiográfica implica uma reconciliação do autor com sua história, não sendo um resgate do passado, mas uma reconstrução no presente, mais comprometida com a autenticidade do que com a veracidade, "em um referencial, aliás, bem mais afinado com o da escuta psicanalítica" (p. 15).

Por fim, ele acrescenta que toda escrita se destina a um leitor, e, se assim for, essa Autobiografia vale ser lida, seja ela destinada aos herdeiros intelectuais e/ou aos herdeiros biológicos, ou ainda a qualquer um que, mais ou menos familiarizado com os conceitos desenvolvidos por Klein, encontra-se atravessado por eles.

Em pouco mais de 50 páginas, a narrativa autobiográfica escrita por Melanie Klein privilegia suas relações familiares. As origens das famílias paterna e materna, as relações da pequena Melanie com o pai e a mãe, seu convívio com os irmãos, com as governantas francesas, a vida escolar compõem um retrato equilibrado algo suavizado, ainda que não desprovido de alguma gravidade. O grande número de perdas sofridas por Klein (as mortes da irmã Sidonie quando Melanie tinha 4 anos e meio, do irmão Emmanuel quando ela tinha 20 anos, da mãe e do filho Hans), bem como o abandono dos estudos e a infelicidade no casamento são apresentados com pesar, mas sem ressentimento.

São mais breves as passagens sobre a vida de casada, a experiência da maternidade e o interesse inicial pela psicanálise, ainda que relate de maneira emocionante seu primeiro contato com o texto "Sobre os sonhos", de Freud (1901) - quando soube que era aquilo ali o que vinha procurando. Discorre então sobre suas análises pessoais e sobre o desenvolvimento de seu trabalho.

Ao final, parece fazer as pazes com a sua história e com a transmissão de seus legados intelectual - "tenho agora um misto de resignação e alguma esperança de que meu trabalho talvez afinal sobreviva e seja de grande ajuda para a humanidade" (p. 84) - e familiar, por meio dos netos, para quem sentia ter grande valor.

Na sequência da Autobiografia, a seção de comentários traz textos de quatro psicanalistas bastante familiarizados com a prática e a teoria kleinianas. A seção se inicia com um texto inédito de R. D. Hinshelwood, o qual muito oportunamente apresenta uma pergunta que, de maneira mais ou menos explícita, será considerada pelos demais comentadores: "há, parece-me, um interesse particular na biografia de um psicanalista. ... Estarão os fatos biográficos relacionados a ideias importantes que um psicanalista descobre em seu trabalho?" (p. 106).

No texto, intitulado "A abordagem do material clínico conforme Melanie Klein", Hinshelwood propõe-se pois a traçar paralelos entre passagens da vida de Klein e suas contribuições à psicanálise. Ao destacar a importância que ela deu a "tocar a ansiedade", deslocando o foco analítico dos instintos e do prazer em direção à criação e ao compartilhamento de sentidos, ele pondera que, se, por um lado, a falta de um conhecimento científico formal foi uma desvantagem para Klein, por outro, permitiu a ela certa liberdade para, com base em suas observações, chegar a conclusões próprias.

Na sequência, em "Citizen Klein", Liana Pinto Chaves, analista didata da SBPSP, correlaciona a Autobiografia, que para ela alinhava vida e morte, a alguns textos de Klein - "O romance familiar em statu nascendi" (1919), com o qual se tornou membro da Sociedade Psicanalítica Húngara, "A técnica psicanalítica através do brincar" (1955), espécie de autobiografia profissional, e "Sobre o sentimento de solidão" (apresentado originalmente no Congresso de Copenhague de 1959 e publicado postumamente em 1963), em que fala sobre dor, depressão e solidão. Para Pinto Chaves, dados o momento em que foi escrito e o seu teor, esse último texto forma um conjunto com a Autobiografia, que seria um acerto de contas de Klein com seus objetos internos e externos, em particular com sua mãe, ante a aproximação da morte - diferentemente do que faz no filme de Orson Welles o personagem Charles Kane, que, segundo a própria Melanie Klein, teria fracassado no amor e na capacidade de manter a mãe viva dentro de si. O comentário é encerrado com um belo poema em prosa em que Luiz Meyer, membro efetivo da SBPSP, acompanha Klein por sua vida familiar, até o momento em que "reinventou a psicanálise".

Em "Melanie Klein (1882-1960): um 'gênio feminino' ou um 'antigênio'?", originalmente publicado em 2016 no livro Psicanálise no século XX. Os sucessores de Freud e suas contribuições para a psicanálise moderna,4 Claudia Frank, analista didata da Sociedade Psicanalítica Alemã (dpv) e membro convidado da bps, debruça-se sobre a origem psicanalítica e elenca as principais contribuições de Melanie Klein, a partir de seu encontro com "Sobre os sonhos" (1901), de Freud - o desvelamento do mundo interno das relações objetais e a investigação dos aspectos cruéis da mente, os estágios iniciais do complexo de Édipo, o supereu primitivo, a posição esquizoparanoide, o sentido clínico do instinto de morte, a posição depressiva, o aprofundamento do conceito de fantasias inconscientes, entre outros.

No último dos quatro comentários, "Melanie Klein: mulher, mãe, psicanalista", Izelinda Garcia de Barros, psicanalista de crianças, analista didata da SBPSP, retoma o relato autobiográfico para então apresentar a tese de que o encontro entre Klein, mulher e mãe, e Ferenczi, analista que pôde ajudá-la a dar sentido às vivências psíquicas arcaicas associadas à maternidade, contribuiu para a sua identidade psicanalítica. Nesse sentido, o texto "O desenvolvimento de uma criança" (1921), em que apresenta importantes reflexões fundamentadas na observação do filho mais novo, ilustraria como a originalidade do pensamento kleiniano tem profunda fundamentação em conceitos psicanalíticos apreendidos e desenvolvidos com base na experiência da maternidade.

O apêndice do livro traz o texto "Algumas recordações pessoais sobre Melanie Klein", relato originalmente apresentado por James Gammill em 1982, em evento realizado por ocasião do centenário do nascimento de Klein, e posteriormente publicado no livro A partir de Melanie Klein (1998). Gammill, que foi analista didata da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e um dos responsáveis pela introdução do pensamento kleiniano na França, faz nele uma homenagem àquela que foi sua supervisora, afirmando que "Melanie Klein foi a única pessoa genial com quem trabalhei de perto durante a minha formação psicanalítica" (p. 187) e a retratando como psicanalista já madura e estabelecida, precisa e vivaz, numa espécie de contraponto que complementa a Autobiografia.

Parece ser justamente tal possibilidade oferecida ao leitor, presente não apenas nesse apêndice do livro, mas na sua apresentação, em cada comentário e no conjunto que compõem - a possibilidade de ter diante de si pontos contrários que não se desvaloram, mas se complementam, como a menina Melanie e a sra. Klein - que torna esta leitura absolutamente preciosa.

 

 

Recebido em: 24/10/2019
Aceito em: 26/11/2019

 

 

1 Freud, Sigmund. Manuscrito inédito de 1931: edição bilíngue. São Paulo: Blucher, 2017.         [ Links ]
2 Obras completas de Melanie Klein (1975).         [ Links ]
3 Membro da Sociedade Britânica de Psicanálise (BPS) e autor do Dicionário do pensamento kleiniano (1989).
4 Tradução livre de Psychoanalyse im 20. Jahrhundert. Freuds Nachfolger und ihr Beitrag zur modernen Psychoanalyse.         [ Links ]

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