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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo jan./jun. 2020

 

EDITORIAL

 

Chronos/Kairós

 

 

Ana Clara Duarte Gavião

Editora / jornaldepsicanalise@sbpsp.org.br

 

 

Os processos do sistema Ics. são intemporais; isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo.

A referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema Cs. (Freud, 1915/1990a, p. 214)

Durante o percurso editorial mais recente, espontaneamente foi se compondo uma trilogia que permite integrar as últimas seções temáticas do Jornal de Psicanálise, inspiradas em mitos: primeiramente, em 2019, com Thanatos (n. 96), Eros (n. 97), e, agora, Chronos/Kairós (n. 98). A evidência da brutalidade e da estupidez demanda recursos vitais e emocionais para processar psiquicamente instintos humanos animalescos, destrutivos, coexistindo com instintos civilizatórios associados a ética e criatividade.

O tempo do desejo e o da realidade factual podem se harmonizar com tolerância ao imediatismo insatisfeito, com o prazer adiado, não necessariamente impedindo a satisfação, mas gradativamente agregando-lhe qualidade afetiva e simbólica.

O consenso em torno do "tempo" como tema para este número deu-se em meados do segundo semestre de 2019, compartilhado oportunamente com a diretoria da Associação dos Membros Filiados (AMF) - que completa 50 anos, daí a seção comemorativa programada para esta edição. Em celebração ao cinquentenário, contamos com as reflexões de sua presidente, Gizela Turkiewicz, e da autora do trabalho premiado pela AMF, Claudia Amaral Mello Suannes.

Ainda em clima de comemoração, a seção "História da Psicanálise" traz a curiosa ata da reunião de fundação da AMF, além de trechos das entrevistas realizadas com as colegas Amélia Vasconcellos e Myrna Favilli, figuras de destaque na construção desse espaço institucional.

Ester Hadassa Sandler e José Martins Canelas Neto, na "Aula inaugural do Instituto", assim como Maria Luiza Salomão, no "Diálogo com um jovem colega", transmitem as peculiaridades de suas trajetórias na formação psicanalítica.

O tempo cronológico, sequencial, mensurável, se associa à finitude, ao rei dos titãs - Chronos -, que tudo devora... Kairós, filho de Zeus e de Tyche, deusa da prosperidade, está associado ao momento indeterminado em que algo especial e oportuno acontece, a um instante valioso no presente, de natureza qualitativa, não linear.

Surpreendentemente, o tema adquiriu incrível realce em função da parada abrupta em nossa rotina ou de sua transposição para o espaço online: o novo coronavírus chega intensificando angústias de morte, concretamente acelerando óbitos,1 evidenciando o desamparo humano, a experiência emocional e temporal de desestabilização, em praticamente todo o planeta.

O contraste e conexões entre indivíduo e grupo suscitam polarizações e paradoxos, como narcisismo/socialismo, saúde privada/pública, exclusão/in-clusão, obscurantismo/ciência, e, no limite, morte/vida. A vulnerabilidade ecológica, além da biológica, põe em xeque a geopolítica e o sistema socioeconómico global. Considerando previsões de indígenas, biólogos, economistas, entre outros especialistas, de que a poluição desmedida e o crescimento violento do desmatamento da Amazônia trariam consequências desastrosas, não deixa de ser curioso que, ao agredir intensamente o "pulmão do planeta", o ser humano seja tão atacado em sua capacidade respiratória, faltando-lhe justamente os pulmões no agravamento veloz da covid-19.

O setting psicanalítico presencial foi suspenso, o impasse evoca cenários de guerra: ou a dupla psicanalítica continua seu trabalho a distância, e meios tecnológicos não faltam para isso, ou o interrompe, dadas as recomendações científicas mundiais, respeitadas (ou não) nas mais diversas instâncias governamentais. Muitas questões afloram, como continuidade e descontinuidade do vínculo, contato emocional e sensorial, a materialidade do setting no espaço virtual (celular, computador, fones de ouvido, aplicativos, imersão no espaço doméstico), a imaterialidade nas reveries, mudança catastrófica e mudança criativa, entre outros fenômenos clínicos classica-mente instigantes, elaborados em profundidade pelos colaboradores da seção temática, na abertura deste número. Vale conferir.

Bion, como pode ser visto no artigo de Anne Lise Scappaticci e Orlando Hardt Jr., transformou seu antecedente militar num recurso refinado de sensibilidade analítica. O autor foi comandante em front de batalha na Primeira Guerra Mundial e atuou como psiquiatra no Exército britânico na Segunda Guerra:

Na guerra, o objetivo do inimigo é aterrorizar você para impedi-lo de pensar claramente, enquanto o seu objetivo é continuar a pensar com clareza, apesar de a situação ser adversa ou amedrentadora, porque isto é uma vantagem para você. A ideia subjacente é que pensar com clareza é vantajoso e conduz a ficar atento ao que eu chamo de "realidade", a avaliar corretamente o que é real. Mas tornar-se conhecedor da realidade pode envolver o conhecimento do desprazer, porque ela não é necessariamente prazerosa ou bem-vinda. (Bion, 1979, p. 467)

Um desprazer humano é a percepção de que, em algum momento, vai destituir-se de vitalidade e morrer. Com a pandemia, tal dimensão do real - a transitoriedade - se materializa de modo exacerbado. Por ser transitoria a vida é revestida de sentido ético, como pondera Freud durante um passeio em companhia de um poeta que se mostrava profundamente indignado com a finitude: "O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo ... Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela" (Freud, 1916/1990b, pp. 345-346).

A complexidade intrínseca às questões relacionadas ao valor da vida é abordada na seção "Interface com a cultura", em que publicamos a edição escrita do evento promovido pela diretoria da SBPSP em setembro de 2019, intitulado "Prevenção do suicídio", com as participações de Carlos Cais, Leda Spessoto e Roosevelt Cassorla, e a coordenação de Luciana Saddi. São bem-vindas as considerações epidemiológicas, psiquiátricas e psicanalíticas sobre o suicídio, no enfoque preventivo e interdisciplinar. Na mesma seção, Medusa e seus poderes mortíferos e ambiguidades são articulados a material clínico, por Cleuza Mara Perrini. Contamos, ainda, com observações perspicazes no texto de Amneris Maroni, referentes ao premiado filme Bacurau (2019), transpondo para dimensões socioculturais e históricas a atemporali-dade dos instintos humanos.

Na seção "Temas livres" encontram-se interessantes contribuições clínicas e teóricas, em sintonia com grandes autores da escola inglesa como da francesa. Além do estilo criativo na crônica de Talita Oliveira.

No enfrentamento da crise sanitária internacional, torna-se imprescindível a crescente valorização da ciência e da arte enquanto direitos humanos, e, nesse sentido, a valorização da psicanálise como campo de conhecimento que integra os vértices científico e artístico, num método que requer grande disponibilidade do analista para identificar e elaborar a destrutividade que pulsa dentro de si e nas relações intersubjetivas.

Um olhar especial de Fabio Herrmann sobre a China é elaborado por Fernanda Sofio, em edição crítica resenhada por Sandra Schaffa.

A seguir, no editorial de Lidia Freitas, parceira incansável nesta jornada, o leitor é convidado a sonhar delicadamente a proposta temática desta edição.

Esperamos, assim, contribuir para o encontro vivo com os autores que aqui colaboraram, em tempos difíceis que sonhamos e ressonhamos superar...

Boa leitura!

 

Referências

Bion, W. (1979). Como tornar proveitoso um mau negócio. Revista Brasileira de Psicanálise, 13(4), 467-78. (Original em inglês: "Making the best of a bad job", artigo publicado na edição de março de 1979 do Bulletin of the British Psychoanalytical Society. Editor responsável: Dr. Dinora Pines)        [ Links ]

Freud, S. (1990a). O inconsciente. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., vol. 14, pp. 191-245). Imago. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (1990b). Sobre a transitoriedade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., vol. 14, pp. 343-348). Imago. (Trabalho original publicado em 1916)        [ Links ]

 

 

1 Na data da revisão deste editorial, o Brasil registra cerca de 3 milhões de casos confirmados de covid-19 e mais de 100.000 óbitos, uma média de mortes diárias de 1.000 pessoas. Esses números são atualizados diariamente.

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