SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.53 número98Chronos/KairósChronos, Kairós e a temporalidade da pandemia: confronto entre deuses e possibilidade de reinvenção do setting índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo jan./jun. 2020

 

EDITORIAL

 

Chronos/Kairós

 

 

Lidia Maria Chacon de Freitas

Editora associada / lidiafreitas@terra.com.br

 

 

Na praia esperam-nos. É a família quase completa. Os homens à frente, pés banhados pelo rio, acenando-nos. As mulheres atrás, braços de umas cruzando braços de outras como que segurando um só corpo. Nenhuma delas me olha no rosto.

Quando me dispunha a avançar, o Tio me puxa para trás, quase violento. Ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo no chão. Junto à margem, o rabisco divide os dois mundos - de um lado, a família; do outro, nós, os chegados. Ficam todos assim, parados, à espera. Até que uma onda desfaz o desenho na areia. Olhando a berma do rio, tio Abstinencio profere:

- O homem trança, o rio destrança.

Estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o costume. Só então o Abstinencio e meu pai avançam para os abraços. Voltando-se para mim, meu Tio autoriza:

- Agora, sim, receba os cumprimentos!

(Couto, 2002, p. 26)

Esta passagem, do belíssimo livro de Mia Couto, trouxe-me, como um resgate, toda uma concepção sobre o nascimento do ser e do tempo abordada por Winnicott quando propôs o desafio de podermos transitar entre dois tempos, o da subjetividade, Kairós, em que o meio fusionado prevalece sobre a diferenciação, e o da objetividade, Chronos, em que a mãe e, na análise, o analista podem ser não somente criados pela ilusão da onipotência, mas percebidos e usados no tempo e no espaço, mantendo, no entanto, a qualidade de transitoriedade, sem esmorecer, dissociar ou exterminar, em casos mais graves, a própria subjetividade, nossa grande reserva criativa. Winnicott denominou este espaço livre e em trânsito permanente de "espaço potencial", um espaço criado/encontrado em sua origem e preservado como um tempo entre, talvez a ideia de instantes transitórios. Um tempo de movimento e espera entre Chronos e Kairós.

O silêncio é cheio de ruídos antes de se fazer silêncio e calma para vivenciarmos as experiências emocionais. É necessário respirar para relaxar o intelecto e transitar pela subjetividade/objetividade. Antes do abraço, faz-se necessário um processo de fertilização espaçotemporal - rio e terra, ou, podemos pensar, Chronos e Kairós - que nos envolva numa dimensão transcendental, simbólica, e não mais binária ou mecânica. Mia Couto nos traz a imagem do tempo, nascido da terra, pelo movimento do rio, o grande mandador: o homem trança experiências e conhecimentos delas advindos; o rio destrança, desobstruindo as memórias, os desejos e a compreensão, tal como Bion nos advertiu, para podermos transitar nas florestas escuras da alma em espera e busca do novo.

Sonhar o abraço antes de abraçar...

SLEEP. Let down your tap root/ to de center of your soul/ Suck up de sap/ from de infinite source/ of your inconscious/ and/ be evergreen.

SONHO. Deixa penetrar a raiz/ no centro da tua alma /aspira a seiva/ da fonte infinita/ de teu inconsciente/ e / conserva seu verdor.

(Winnicott, 1982/1965, p. 9)

Que forças precisamos reunir dentro de nós para não perdermos o ritmo da vida, com suas notas e entonações afinadas e/ou dissonantes? Como nos manter ligados em vez de plugados? Como preservar a capacidade de ser e transitar pela liberdade, como preservar nossa criatividade, nossa potência, nossa autoria, nossa subjetividade, principalmente em tempos atuais, em que as horas parecem contadas, de tão fragmentadas em segundos de produtividade, eficácia, mensagens cada vez mais sintéticas, não exatamente no sentido de síntese, mas de plastificadas?

O tempo, do jeito que se apresenta neste momento, é exterminado e em seu lugar se impõe um mundo de um falso tempo, em que a realidade perde sua objetividade, seu movimento e se imobiliza num tempo fechado, de certezas absolutas. Águas paradas. Um tempo artificial, impulsionado por interesses de mentes autoritárias. Um tempo de cortes, e não intervalos.

Pensando em nossas vivências de regime de exceção, quando uma abrupta mudança de paradigmas se apresenta, convocando-nos a interagir num universo tecnológico, de redes sociais, plataformas de atendimento, busca acelerada de novos modelos de setting capazes de oferecer um encontro marcado pela intimidade e presença, neste momento demarcado por isolamento e desamparo, indago-me de como conservar a espera da onda do rio, conservando dentro de nós um estado de repouso que permita conquistar contato emocional.

Mobilizada por essas questões, emergiu em minha memória um autor, Vitor Guerra, e um comovente trecho de seu trabalho Ritmo na vida psíquica: entre a perda e o reencontro.

Reencontrar o ritmo

Mudemos novamente o cenário. Transportemo-nos para perto de 30 anos atrás, e pensemos na situação de nosso país, submetido ao governo de uma ditadura militar.

Um dos muitos presos políticos era Carlos Liscano, escritor que hoje relata parte da experiência vivida na prisão.

(Guerra, 2007)

Guerra nos relata a cena, descrita por Liscano, da volta para cela comum de um preso condenado à solitária durante muito tempo, como castigo:

Uma tarde, trazem um companheiro que estava isolado há meses. Oferecem-lhe comida, leitura, o que quisesse.

Nada, nada lhe interessa... Começa a escurecer, e dois ou três se põem a batucar nuns potes de plástico, numa caixa. O recém-chegado se incorpora, ensaia uns passos de dança.

Há gritos, aplausos.

Ele continua dançando, mais um instante.

E logo não para, prossegue. Movimenta-se, o corpo procura o ritmo, encontra-o.

Faz-se um espaço no meio da cela, pouco a pouco se forma uma roda de homens sentados no chão, nos colchões, à volta daquele que dança. E o recém-chegado dança, e dança. De olhos fechados ele gira, levanta os braços, movimenta os quadris, os ombros, requebra o corpo, para, gira no sentido contrário.

Os músicos se cansam, se entediam, mas a música não pode parar, outros pegam o tambor, o pote de plástico abandonado. A música deve continuar, para que o homem continue voando, viajando, em sua dança, em sua coisa, em sua felicidade. Está feliz, feliz, isso se vê em seu rosto, em seus olhos fechados, nas mãos, no corpo liberado. Há meses que está sozinho, que seu corpo não sente o calor de outro corpo amigo por perto. E dança, o corpo dança, uma hora, hora e meia.

Não estará doente?

Seja como for, doente e feliz.

Quando finalmente para, sorri, olha para nós. Põe-se a falar.

Há alguma coisa para comer?

É outro, já esqueceu que nos manteve mais de uma hora na expectativa, alegres, preocupados. Já visitou o lugar que precisava visitar, sabe-se lá onde, e com quem.

Agora é outro, e está aqui. Quer comer.

(Liscano, 2001, pp. 177-179)

Mia Couto, Winnicott, Victor Guerra, Bion, Freud, em diferentes diálogos parecem reconhecer a necessidade de borrar, pelo movimento do rio, as demarcações do tempo Chronos, para que um novo tempo, da subjetividade, seja vivenciado. O nascimento do encontro leva tempo, precisando ser banhado pelas águas maternas até que um processo de subjetivação abrande as demarcações eu/outro, possibilitando o encontro criação. Este borramen-to se faz pelo rio dos ritmos e perdura por toda vida como uma capacidade de estar e transitar nos tempos entre, brincando, sonhando, construindo/ destruindo/reencontrando castelos e culturas, aprendendo, pensando. Vivos e existentes.

A psicanálise desde suas origens nos traz caminhos para não desperdiçarmos algo tão valioso como o tempo de estarmos vivos. Freud formulou o inconsciente, atemporal, que nos constitui e nos acompanha no sono e em vigília, permitindo que nos libertemos dos grilhões da racionalidade bidimensional, para deixarmos aflorar a possibilidade de vivenciarmos o infinito de nós próprios.

Muitos autores e autoras dedicaram-se ao tema do tempo. Poesias foram criadas, músicas, grandes romances, imagens, estudos sobre os ritmos que acompanham o nascimento e a morte, tempos de paz, tempos de guerra, de criação e de extermínio.

As contribuições dos colegas convocam o leitor a dialogar, sonhar e pensar em nossa clínica, em nossas dimensões subjetivas, em nossa expansão para além do imediato, é enfim um convite para traçarmos um círculo em nosso solo de experiências e juntos observarmos, em espera sonhante, os movimentos do rio.

 

Referências

Couto, M. (2002). Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Compania das Letras.         [ Links ]

Guerra, V. (2007). El ritmo en la vida psíquica: entre perdida y re-encuentro. Unesco. Recuperado de http://bit.ly/2yNTBAH.         [ Links ]

Liscano, C. (2001). El furgón de los locos. Planeta.         [ Links ]

Winnicott, D. (1982). O ambiente e o processo de maturação (J. Outeiral, Trad.). Artmed.(Trabalho original publicado em 1965)        [ Links ]

Creative Commons License