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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo jan./jun. 2020

 

CHRONOS/KAIRÓS

 

Chronos, Kairós e a temporalidade da pandemia: confronto entre deuses e possibilidade de reinvenção do setting1

 

Chronos, Kairos and the temporality of the pandemic: confrontation between gods and the possibility of the re-invention of setting

 

Chronos, Kairós y la temporalidad de la pandemia: confronto entre dioses y posibilidad de reinvención del setting

 

Chronos, Kairós et la temporalité de la pandémie : confrontation entre dieux et possibilité de réinventer le setting

 

 

Ana ArchangeloI; Claudia Regina CampanaroII; Fabio Camargo Bandeira VillelaIII

IMembro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro do corpo editorial do periódico Psychoanalysis, Culture & Society (Ed. Palgrave). Membro da Association for the Psychoanalysis of Culture & Society (APCS). Professora Livre-Docente do Departamento de Psicologia Educacional, Faculdade de Educação, Universidade de Campinas / Presidente Prudente / ana.archangel@gmail.com
IIMestranda em Educação, Faculdade de Educação, Universidade de Campinas / Presidente Prudente / claucampanaro@gmail.com
IIIProfessor Doutor do Departamento de Educação, Universidade Estadual Paulista / Presidente Prudente / f.villela@unesp.br

 

 


RESUMO

O presente artigo discorre sobre a temporalidade de nossa sociedade atual, fortemente pautada por Chronos, deus que diferencia dia e noite e confere estabilidade, mas que se converte em vigia e classificador da experiência do viver. Aponta como a pandemia tem representado um corte em tal temporalidade e provocado, entre outros efeitos, o confronto entre o tempo de Chronos e de Kairós. Discute como esse confronto se apresenta como possibilidade de contato com o "melhor instante" da experiência, em que a produção de sentido se dá, e como o setting analítico tem sido impactado por ele. Conclui que a reinvenção do setting nesse momento tem como eixo fundamental a confiabilidade construída na experiência entre paciente e analista, recurso que, por definição, assegura que os cacos resultantes do confronto possam ser objeto de partilha e restauração na experiência analítica.

Palavras-chave: temporalidade, Chronos e Kairós, pandemia, setting analítico


ABSTRACT

This article discusses the temporality of our current society, strongly regulated by Chronos, the god who distinguishes day from night and gives stability, but who turns into a sentinel and classifier of the experience of living. It points out how the pandemic has represented a cut in such temporality and provoked, among other effects, the confrontation between the time of Chronos and that of Kairos. It debates how this confrontation is presented as the possibility of contact with the "best moment" of the experience, in which the production of meaning occurs, and how the analytical setting has been impacted by this. It concludes that the reinvention of setting at this moment has as its fundamental axis the state of trust constructed in the experience between patient and analyst, a resource which, by definition, ensures that the fragments remaining after the confrontation can be an object of sharing and restoration in the analytical experience.

Keywords: temporality, Chronos and Kairos, pandemic, analytical setting


RESUMEN

Este artículo analiza la temporalidad de nuestra sociedad actual, fuertemente guiada por Chronos, el dios que diferencia día y noche y le da estabilidad, pero que se convierte en vigilante y clasificador de la experiencia de vivir. Señala cómo la pandemia ha representado una ruptura en la temporalidad y ha provocado, entre otros efectos, una confrontación entre el tiempo de Chronos y el de Kairós. Plantea cómo esta confrontación se presenta como posibilidad de contacto con el "mejor instante" de la experiencia - en la que la producción de sentido ocurre - y de qué modo afecta el setting analítico. Concluye que la reinvención del setting en este momento tiene como eje fundamental la confiabilidad construida en la experiencia entre paciente y analista, cuyo recurso, por definición, asegura que los fragmentos resultantes de la confrontación se puedan compartir y restaurar en la experiencia analítica.

Palabras clave: temporalidad, Chronos y Kairós, pandemia, setting analítico


RÉSUMÉ

Cet article traite de la temporalité de notre société actuelle, fermement guidée par Chronos, un dieu qui fait la différence entre le jour et la nuit et nous donne de la stabilité, mais qui se couvre comme gardien et classe l'expérience de vivre. Cet article montre encore comment la pandémie représente une coupure dans une telle temporalité et provoque, parmi d'autres effets, la confrontation entre l'époque de Chronos et celle de Kairós. Il examine également comment cette confrontation se présente comme une possibilité de contact avec « le meilleur moment » de l'expérience, dans laquelle se produit la production de sens, et comment le setting analytique en a été impacté. Il conclut que la réinvention du setting en ce moment a comme axe fondamental la fiabilité construite dans l'expérience entre patient et analyste, une ressource qui, par définition, assure que les éclats résultant de la confrontation puissent être l'objet de partage et de restauration dans l'expérience analytique.

Mots-clés : temporalité, Chronos et Kairós, pandémie, setting analytique


 

 

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve.

Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.

Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho. Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos?

Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos - sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. (Lispector, 1998, p. 11)

 

O tempo de Chronos e alguns de seus efeitos

O trecho do narrador-personagem do livro A hora da estrela sugere, com suas indagações, o passar do tempo por meio de uma constatação: coisas acontecem, corpos, objetos e moléculas se deslocam, chocam, pulsam. Sem que haja a percepção dele, o tempo aí está, indicando e representando mortes e nascimentos, seguindo, posto. Outra constatação é que vem do humano medir o tempo, quantificá-lo, experienciá-lo. Desde as primeiras marcas da história, registros de observações da natureza, do céu com o dia e a noite, da movimentação das estrelas, dos oceanos, das estações do ano, existem, nessa externalidade terrena, sucessões que levaram à marcação do tempo como uma necessidade humana.

O processo civilizatório testemunhou muitas mudanças no modo de vida e em sua organização no tempo. Assim, a concepção de tempo foi e é, por assim dizer, resultado de uma construção histórica por meio da qual os grupos sociais e as pessoas organizam a experiência de ser, observar e relacionar sua rotina e as demandas advindas da configuração espacial na qual se encontram. De acordo com Norbert Elias:

Nos primeiros grupos de caçadores, pastores e agricultores, a necessidade de uma atividade de fixação do tempo ou de uma "datação" era mínima, sendo 28

igualmente mínimos os meios de realizá-la. [ênfase no original]. Nas grandes sociedades urbanizadas em que existe o Estado, sobretudo naquelas em que as funções sociais são muito especializadas, em que as cadeias de interdependência que ligam os portadores dessas funções são longas e altamente diferenciadas, e nas quais grande parte das tarefas vitais cotidianas é executada por energias e máquinas descobertas pelo homem, a necessidade social de medir o tempo e, para esse fim, dispor de instrumentos adequados, constituídos por sinais mecânicos, torna-se irreprimível; o mesmo acontece com a consciência do tempo nos homens que vivem nessas sociedades. (1998, p. 98)

A sociedade moderna, então, ao sequenciar a experiência humana, submete-a à lógica da compartimentação do tempo medido através dos relógios, e quantifica-a para fazê-la caber em partes organizáveis e classificáveis. Essa classificação acaba por estabelecer um padrão de medida que gerencia e dita um ritmo comum, de modo que o tempo apresenta uma

relativa autonomia como instituição social e como dimensão de um movimento de caráter físico ... É essa uma das fontes do poder coercitivo que o "tempo" exerce sobre o indivíduo. Este é sempre obrigado a pautar seu próprio comportamento no "tempo" instituído pelo grupo a que pertence e, quanto mais se alongam e se diferenciam as cadeias de interdependência funcional que ligam os homens entre si, mais severa torna-se a ditadura dos relógios. (Elias, 1998, p. 97)

O tempo cronológico insere o homem em uma relação diferenciada de interdependência. Esta, por sua vez, alcança uma transformação no bojo da vida social onde a sensação de ter a vida "sequestrada" aponta uma modificação voraz em sua organização estrutural. Entretanto, vale dizer que a sensação de ter a vida pautada ou consumida pelo tempo não é exclusiva das organizações sociais e das relações humanas atuais, pois aparece retratada desde os mitos.

Na mitologia grega, Chronos se instaura contra a "excitação descontrolada das forças criadoras representadas por Uranos" (Brandão citado por Gonçalves & Vieira, 2010, pp. 5-6), seu pai, vista como força perigosa à ordem.

Como primeira divindade do cosmo ordenado, Gaia precisa interferir, implorando aos Titãs para que um deles castre Uranos, interrompendo as gerações sucessivas e desenfreadas e separando novamente o Céu e a Terra.

Ao mesmo tempo em que a fertilidade de Uranos inicia as gerações, também é percebida como uma potência destrutiva que precisa ser controlada, interrompida. Esta é a função de Cronos, agente da vontade de Gaia e carrasco de Uranos. Ao castrar o pai, Cronos separa Céu e Terra, dissipa a ameaça de retorno ao Caos inicial.

(Brandão citado por Gonçalves & Vieira, 2010, pp. 5-6)

Chronos representa o corte em uma era de prazer e fertilidade, sentidos como ameaça de caos e morte. Ao diferenciar céu e terra, dia e noite, luz e escuridão, torna-se dispositivo que promete ao ser humano o conhecimento e o controle dos movimentos da natureza. Paradoxalmente, contudo, é fonte de profundo mal-estar, visto que se converte também em ordenador externo da experiência interna.

Pode-se dizer, portanto, que o tempo cronológico, pensado não mais como deus, e sim como modus operandi social, surge para atenuar ou fazer desaparecer a vivência atemporal da experiência psíquica. Depois de Chronos, algo só "é", se com duração determinada, começo e fim. O tempo de Chronos acaba por ser este que provoca o sentimento de inutilidade, significado ou sentido, quando da ausência de eventos sucessivos e/ou simultâneos, localizados em uma cronologia, de modo que preenchê-lo torna-se quase uma obrigatoriedade.

O mal-estar produzido pelo afastamento em relação à própria experiência interna atemporal, em nome de certa cumplicidade com as exigências de Chronos, não é algo meramente individual, como bem afirma Elias; tem relação direta com os modos de organização social.

Ora, o tempo não se reduz a uma 'idéia' que surja do nada, por assim dizer, na cabeça dos indivíduos, Ele é também uma instituição cujo caráter varia conforme o estágio de desenvolvimento atingido pelas sociedades [ênfase no original]. O indivíduo, ao crescer, aprende a interpretar os sinais temporais usados em sua sociedade e a orientar sua conduta em função deles. A imagem mnêmica e a representação do tempo num dado indivíduo dependem, pois, do nível de desenvolvimento das instituições sociais que representam o tempo e difundem seu conhecimento, assim como das experiências que o indivíduo tem delas desde a mais tenra idade. (Elias, 1998, p. 15)

Assim, temos que a velocidade do tempo no mundo do trabalho, da informação e da tecnologia, por exemplo, evoca nos indivíduos essa sensação de que viver é o equivalente a produzir, conhecer, responder prontamente a qualquer demanda, externa ou interna. No ambiente escolar, por exemplo, a aprendizagem, processo lento, profundo, sempre inusitado e idiossincrático, passa a ser atestado pelo fazer imediato e pela utilidade mensurável desse fazer, em relação aos demais fazeres distribuídos em uma grade curricular.

A subjetividade é açoitada pela ferocidade de Chronos, um filho que, já tendo castrado o pai, assume para si a condição de castrador. Desta feita, Chronos divide com o Super-eu da cultura a qualidade castradora. Embora um não se confunda com o outro, pode o Super-eu, eventualmente, assumir a forma de Chronos, e vice-versa, na tarefa de manter o controle sobre o sujeito e seus impulsos herdados do deus Uranos, mediante as exigências e as recriminações direcionadas ao Eu. De acordo com Freud:

o Super-eu da cultura, exatamente como o do indivíduo, institui severas exigências ideais, cujo não cumprimento é punido mediante "angústia de consciência" [ênfase no original]. E aqui se produz mesmo o caso curioso de os processos psíquicos em questão serem para nós mais familiares e mais acessíveis à consciência, quando vistos no grupo, do que podem sê-lo no indivíduo. Neste apenas as agressões do Super-eu, no caso de tensão, fazem-se audíveis como recriminações, enquanto exigências mesmas com frequência ficam inconscientes no segundo plano. Se as trazemos para o conhecimento consciente, revela-se que coincidem com os preceitos do Super-eu cultural prevalecente. (1930/2011, p. 89)

O superego cultural se presta a transformar o tempo em vigia, que apressa a mente e cobra dela aquilo que não fez, não criou e não processou, e que, por suposto, deveria ter feito, criado, processado. Trata-se de um superego que não se importa com o realizado, apenas com o que faltou realizar; ou seja, trata-se de recriminação permanente, pois o que falta é, por definição, o registro do infinito. Feito o coelho de Alice no País das Maravilhas (Carroll, 1865/2014) que está sempre atrasado e corre para chegar sabe-se onde ou, ainda, não importando onde, o tempo é o vigia que

o obriga indefinidamente a estar onde não está. Esse tempo voraz, carregado de pressa, provoca um constante mal-estar que acompanha o indivíduo, provocando-lhe o sentimento de não produzir o suficiente. Decorre disso o mal-estar que vem, inclusive, de sentir a necessidade de pausa, ócio e, sobretudo de produção de sentido para a experiência. Freud vai dizer que:

o sentimento de culpa nada é, no fundo, senão uma variedade topográfica da angústia, e em suas fases posteriores coincide inteiramente com o medo ao Super-eu. ... De algum modo, a angústia se acha por trás de todo sintoma, mas ora reivindica ruidosamente para si a consciência inteira, ora se oculta de modo tão perfeito, que nos vemos obrigados a falar de angústia inconsciente ou - se quisermos uma mais limpa consciência [Gewissen] psicológica, já que a angústia é em princípio uma sensação - de possibilidade de angústia. E por isso é fácil conceber que também a consciência de culpa produzida pela cultura não seja reconhecida como tal, permaneça inconsciente ou venha à luz como um mal-estar, uma insatisfação para a qual se busca outras motivações. (1930/2011, p. 82)

Uma cultura que se vale da culpa e do mal-estar faz uso de Chronos para alimentá-los. Ainda assim, o tempo de Chronos tem seus encantos: ele ordena, estabelece limites claros para o pensar, o sentir e o agir; em suma, estabiliza.

Na ordem do tempo cuja marcha social impregnou de voracidade, o sujeito se vê submetido a exigências cruéis e inalcançáveis. Ele abre mão do aqui e agora em nome de chegar onde não está; perde de vista as relações (com o outro e consigo), perde contato com o mundo natural, deixa suas qualidades mentais desinvestidas: não mais são necessárias a atenção, a observação, a concentração, a memória, o discernimento. A ação não mais resulta de um pensamento que confere sentido ao conjunto dos elementos da experiência de estar em contato com o mundo externo e interno, como descreveria Freud (1911/1984).

 

Chronos, a pandemia e o confronto com outro tempo

É esse sujeito que se vê agora abatido pela pandemia e pela necessidade imperiosa de permanecer onde está. A pandemia, ao exigir o afastamento social, surge como corte no tempo, uma castração de Chronos. O Chronos narciso, preocupado apenas com sua própria imagem refletida, tem seus olhos cegados; precisará ser guiado também por outros olhos, outro tempo.

Desse modo, podemos pensar em um tempo que destrói o próprio tempo, mas que termina e recomeça. Estamos todos diante da necessidade de inventar novos ciclos, novas temporalidades, de recuperar temporalidades relegadas ao esquecimento. A pandemia nos colocou novamente em contato com a cosmogonia. Como afirma Eliade:

A imagem do "Ano-Círculo" foi carregada de um simbolismo cósmico--vital ambivalente, simultaneamente "pessimista" e "otimista". O decorrer do Tempo implica o distanciamento progressivo do "princípio" e, portanto, a perda da perfeição inicial. Tudo o que dura se desfaz em pó, degenera e acaba por perecer.

O Ano tem um fim, o que equivale a dizer que ele é automaticamente sucedido por um novo começo. ... a idéia da perfeição dos primórdios desempenhou um importante papel na elaboração sistemática dos ciclos cósmicos cada vez mais amplos. O "Ano" comum foi consideravelmente dilatado, dando nascimento a um "Grande Ano" ou a ciclos cósmicos de uma duração incalculável. A medida que o ciclo cósmico se tornava mais amplo, a idéia da perfeição dos primórdios tendia a implicar a seguinte idéia complementar: para que algo de verdadeiramente novo possa ter início, é preciso que os restos e as ruínas do velho ciclo sejam completamente destruídos. Em outros termos, para a obtenção de um começo absoluto, o fim do Mundo deve ser radical. [ênfases no original] (1963/1972, pp. 39-40)

Um paradoxo temporal de corte social se instaura. Em alguns casos, em casa, o indivíduo se vê pressionado pela velocidade do trabalho remoto de um lado, enquanto, por outro, convocado a olhar para o ritmo do próprio corpo -o tempo da fome, o tempo do processamento das experiências emocionais intensas, o tempo do crescimento dos filhos, do envelhecimento dos pais.

Em outro panorama social, onde se encontram os trabalhadores dos "serviços essenciais", o tempo da essencialidade do ser vivo precisa ficar em suspensão - a necessidade de se alimentar ou de urinar não pode se apresentar no seu próprio tempo. Há, ainda, aqueles que recolhem os sem-número de mortos, perdendo de vista a complementaridade da morte com a vida. São paradoxos que vêm afetando, de modo tão profundo, quanto imprevisível, cada um de nós, as instituições e a sociedade.

Ao lado do "eu do Chronos", o qual cinde e nega a turbulência emocional para dar conta de suas obrigações, ou prazos, há o "eu Kairótico" que precisa se haver com sua vulnerabilidade e com a necessidade de integração da experiência de ser nesse mundo. Assim sendo, o tempo de Kairós aparece e se destaca como indeterminado, subjetivando o cenário de experiência próspera e oportuna.

O aspecto de um tempo reconfigurado à velocidade de transmissão do vírus fez com que retornasse a angústia da imprevisibilidade de um caos sem pai. Onde há falta, pois, de referências, vê-se a necessidade de buscá-las em terrenos onde possa haver algo que inspire confiança, espírito de renovação, solidariedade e esperança. É assim que surge, então, o tempo oportuno de Kairós. Arantes discorre que:

Segundo a mitologia grega, há pelo menos duas narrativas sobre a origem de Kairós. Na primeira, Kairós era visto como o filho mais moço de Zeus com a deusa da prosperidade, Tyche. Ele era rápido, andava nu e possuía apenas um cacho de cabelos na testa. Somente era possível prendê-lo, agarrando-o por esse topete, caso contrário, seria impossível segui-lo ou trazê-lo de volta. Kairós era visto na inteligência de Atena, no amor de Eros e no vinho de Dionísio. Mais tarde, na genealogia dos deuses, ele parece estar associado a todos eles, como a manifestação de um tempo específico. Na mitologia grega, Kairós era visto como um atleta de características obscuras, a qual não se expressava mediante uma imagem uniforme, estática, mas por uma ideia sempre em movimento. Em nenhum momento Kairós refletiria o passado ou pressentiria o futuro; ele simboliza o melhor instante presente: o instante em que se consegue afastar o caos e abraçar a felicidade. (2015, n.p.)

Considerando o clima nebuloso diante da pandemia, surge a necessidade de uma vivência de um tempo diferente daquele limitado à cronologia para sobreviver à dura realidade imposta. O tempo oportuno de Kairós aparece, nesse momento, de modo que se viva para além da sobrevida - ao vírus e ao caos sociopolítico. O desespero diante de tanto descontrole e, por consequência, o sentimento de impotência, o mal-estar e a desordem temporal que se acumulam acabam por fazer emergir um movimento que caminha para um espaço de potencial criatividade e solidariedade. Freud, abordando o reconhecimento do nível cultural e os requerimentos que fazemos à civilização, traz a importância de detalhes que nos despertam uma espécie de encantamento diante da vida. Segundo o mesmo:

Como se estivéssemos negando a exigência feita em primeiro lugar, saudamos também como civilizado o fato de pessoas se preocuparem com coisas que absolutamente não são úteis, que antes parecem inúteis; por exemplo ... quando as janelas das casas são adornadas com vasos de flores. Logo notamos que a coisa inútil, que esperamos ver apreciada na civilização, é a beleza.

(Freud, 1930/2011, p. 37)

Surgem, pois, alguns espaços-tempo nos quais é possível que nos embebamos de alguns fragmentos das subjetividades, das ditas por "inutilidades" com traços de beleza. Um afresco de memórias precisa ser descoberto sob nossa pele. Kehl diz que "o tempo é o tecido das nossas vidas" (2009, n. p.). Esse tecido puído precocemente pelo sofrimento psíquico mobilizado pela pandemia ou por seus efeitos, como aqueles relativos ao emprego, ou à exacerbação da incerteza sobre o futuro, em sua desordem social, com suas mortes, com o luto e o isolamento, carrega, paradoxalmente, os meios de trocas de pulsações de vida, de sopros de esperança. Isso faz eco com o que Mezan discorre em seu trabalho:

o sofrimento psíquico - que repito, não é a única forma do abalo emocional -, justamente por ser psíquico, pode encontrar vias psíquicas de ligação/elabora-ção/alívio que eventualmente conduzam ao nascimento de uma obra. Este é o momento intermediário no processo vinculador, uma cristalização provisória que por sua complexidade mesma, pela obrigatoriedade de passar por outros canais que não o puro sentir, permite uma poderosa catarse. (1998, p. 113)

A arte aparece, mais do que nunca, como meio para experienciar o tempo kairótico, a fim de prolongar a relação dos indivíduos com a representação e a expressão das próprias inquietações. São, também, em momentos de extremo sofrimento que a arte viabiliza canais de comunicação diferenciados, de modo que o tecido de nossas vidas acaba por pulsar em vida, e não em cronologia. No espaço-tempo da criatividade habitam a arte, os símbolos, as memórias, as histórias, os jogos, as brincadeiras, as tradições que podem nos ajudar a experimentar, na estabilidade perdida, a riqueza, e não apenas o caos. É este espaço-tempo, pois, que nos permite confrontar o deus Chronos. É nesse espaço-tempo que se configuram as oportunidades de comunicação, onde é possível viver a experiência do narrar e, junto a ele, um endereçamento, seja ele a um outro alguém ou lugar, seja a nós mesmos.

O isolamento físico provocado pela pandemia não irrompe as barreiras da criatividade e não encontra uma hora marcada para gerar teias de comunicação e interação entre os indivíduos. A comunicação acontece através de grandes teias de narrativas, se e quando narrador e testemunha do narrar são capazes de guardar espaço por onde passe o menino nu - Kairós -, e capazes de agarrá-lo pelo topete - aquele "melhor instante", único, nem passado, nem futuro.

De experiências culinárias a atividades artesanais das mais diversas, de composições musicais aos poemas, de brincadeiras a costura, há uma ebulição de tradições que se estende entre os indivíduos. Destarte, vê-se um movimento de reelaboração do narrar na trama do tempo oportuno; junto a ela, o movimento de constituição do testemunho, da escuta.

 

Repensando o setting analítico na companhia de Chronos e Kairós

Analistas e analisandos, professores e alunos, pais e filhos, médicos e pacientes, colegas de trabalho estão tendo a oportunidade de restabelecer os enlaces e os vínculos que justificam a companhia um do outro. Novas formas de narrar e escutar a presença do tempo kairótico na experiência cotidiana cultivam uma terceira camada de comunicação, um espaço potencial (Winnicott, 1975), onde o setting pode ser revisitado e recriado, não apenas devido à nova materialidade do espaço virtual.

O setting da análise, que sempre teve que lidar com as resistências erigidas, entre outras coisas, com a ajuda de deus Chronos, tem contado com a presença de deus Kairós. Embora Chronos ainda apareça vigilante, nesses últimos meses muitos dos pacientes têm buscado seus analistas com uma ânsia por agarrar Kairós por seu cacho de cabelo, uma ânsia pelo sentido compartilhado encontrado no instante inusitado da sessão de análise, na companhia do analista. Conteúdos que estavam adormecidos ganham impulso de parcela do Eu para virem à tona, superando resistências intransponíveis até então, como se a premência da vida assim o exigisse, sob o signo de Kairós e à semelhança de uma análise cuja data final fica determinada logo adiante, como ocorrera com o Homem dos Lobos, por decisão de Freud (Obholzer, 1993). Conteúdos e emoções que não se apresentavam no encontro entre paciente e analista, senão em doses minúsculas e com muito esforço analítico, assumem a primazia.

O superego cultural que tem o tempo como vigia e que não se importa com o realizado, apenas com o que faltou realizar, perde intensidade, diante das forças do Eu. Ou seja, coloca o coelho de Alice numa posição em que o atraso e a ânsia por estar onde não se está não são mais as diretrizes do viver, ao menos na sala virtual da análise. Subverte-se o tempo da análise, nessa temporalidade que se assemelha àquela do Chapeleiro Maluco, onde caducam os ponteiros de Chronos, os relógios quebram e são sempre seis horas. A dupla analítica precisa do signo de Kairós para alcançar os desani-versários comemorados à mesa do chá, graças a esse tempo que parou, mas que continua.

O protagonismo do paciente em sua busca por encontro consigo, com o outro e com a própria narrativa e com a escuta tem parecido mais evidente e efetivo. A urgência que o risco de morrer comporta (e a evidência do que já estava lá) parece ter convocado um sentimento de sobrevivência, ao fazer nascer, morrer (e renascer) conceitos e ideias sobre o que é ou não seguro ou confiável.

Se antes da pandemia o setting contava com o espaço físico e o cuidado com ele como delimitadores do lugar do reservado, da intimidade, do mistério, agora ele precisa se reinventar, contando fundamentalmente com a confiança entre paciente e analista. De acordo com O'Loughlin:

Dereked Wolcott, falando sobre a fragmentação das Antilhas pela colonização, pontuou em seu discurso de aceite do prêmio Nobel, que às vezes o vaso que é quebrado e reconstruído possui uma beleza muito especial: 'Quebre o vaso, e o amor que junta os fragmentos será mais forte do que o amor que tomou a simetria por certa enquanto o vaso era inteiro. A cola que gruda os pedaços é a vedação que garante o formato original ao vaso... e, se os pedaços são desiguais, se encaixam mal, eles contêm mais dor do que a escultura original (1992, sem página)'. Esta metáfora captura tanto o amor quanto a dor da jornada de auto-recuperação (2013, p. 30, tradução livre).

A reformulação do setting em tempos de pandemia não deixa de ser uma surpresa para analista e paciente. Em alguns casos, isso representou motivo para o recrudescimento das resistências do paciente e abandono da análise. Em outros, porém - maioria, ao que parece - as novas dúvidas e as experimentações operadas pela dupla para a preservação da essência do encontro (decisões quanto ao uso ou não de vídeo, posição da câmera, manejo das interferências do espaço físico e da dinâmica doméstica de ambos, para citar apenas alguns), acabaram por favorecer a tematização das dúvidas sobre aspectos fundamentais da vida ligados a Kairós.

A singularidade e a dramaticidade da nova situação externa compartilhada evidenciaram a simetria interna à dupla que, muito frequentemente, fica ofuscada pela assimetria (também real, diga-se) da posição ocupada por analista e paciente na sala de análise. Tal simetria parece ter favorecido a manifestação do paciente, assim como a receptividade do analista, muito embora esta requeira um cuidado ético redobrado da parte do analista para que seja mantida a escuta que qualifica e justifica seu trabalho.

Cabe aqui, então, um alerta: o novo setting, marcado pela virtuali-dade, não pode ser tomado como panaceia. As qualidades observadas nesse processo de mudança não podem ser atribuídas à virtualidade da análise realizada remotamente. Elas resultam de um mosaico complexo, criado com cacos do sofrimento desencadeado pela pandemia e que encontraram acolhida na disponibilidade psíquica dos analistas que se dispuseram, mesmo despidos de qualquer convicção sobre a efetividade da tentativa, a lançar mão do único recurso que lhes restava para o encontro no período de isolamento.

A confiabilidade do setting analítico permite viver e morrer nos encontros, desencontros e reencontros com os tempos diversos do eu. É o lugar onde a emergência do pior e do melhor do paciente e da própria dupla analítica é autorizada, assegurada. É matéria-prima para o que se é no "melhor instante" e para o tornar-se.

Juntar os cacos da ruptura abrupta tanto da temporalidade de Chronos, como da materialidade da relação presencial, parece-nos crucial para a reinvenção de um setting em que a casa (mental) do analista e a casa (mental) do paciente sejam morada para os símbolos, a criação, a imaginação e o sonho.

 

Referências

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Recebido em: 30/5/2020
Aceito em: 6/7/2020

 

 

1 Este artigo é resultado de uma continuidade de assuntos abordados no Trabalho de Conclusão de Curso De Cronos a Kairós: o tempo e a escola à luz da psicanálise (Campanaro, 2014).

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