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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo ene./jun. 2020

 

CHRONOS/KAIRÓS

 

Tocando a vida com os dedos: reciprocidade na clínica de adolescentes1

 

Touching life with our fingers: reciprocity in the clinic with adolescents

 

Tocando la vida con los dedos: reciprocidad en la clínica de adolescentes

 

Toucher la vie avec les doigts: réciprocité dans la clinique des adolescents

 

 

Adriana Maria Nagalli de Oliveira

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCampinas). / Piracicaba / amnagalli@gmail.com

 

 


RESUMO

No artigo, a autora trata a reciprocidade como a reverberação entre analista e analisando, com foco no trabalho psicanalítico com adolescentes. Entende que é na adolescência que as confusões se ativam mais intensamente. A necessidade de destituir a autoridade dos pais externos confunde-se com a queda dos pais internos, o que deflagra a necessidade de identificação introjetiva -processo que, por sua vez, aparece no apego a figuras sociais, grupos musicais, esportivos e culturais. As ideias aqui desenvolvidas partem do conceito de reciprocidade estética (Meltzer, 1992; 1995), culminando em ampliações sobre os processos de identificação e introjeção, que se desenrolam exatamente nessa troca recíproca.

Palavras-chave: reciprocidade estética, introjeção, projeção, função alfa, simbolização


ABSTRACT

In this article, the author treats reciprocity as the reverberation between analyst and patient, focusing on psychoanalytic work with adolescents. She understands that it is in adolescence that confusions are most intensely activated. The need to remove the authority of external parents is confused with the fall of internal parents, which triggers the need for introjective identification - a process that, in turn, appears in the attachment to social figures, such as musicians, sportspeople and cultural groups. The ideas developed here are based on the concept of aesthetic reciprocity (Meltzer, 1992; 1995), culminating in expansions on the processes of identification and introjection, which take place exactly in this reciprocal exchange.

Keywords: aesthetic reciprocity, introjection, projection, alpha function, symbolization


RESUMEN

En el presente artículo, la autora trata la reciprocidad como la reverberación entre analista y analizando, centrándose en el trabajo psicoanalítico con adolescentes. Ella entiende que es en la adolescencia que las confusiones se activan más intensamente. La necesidad de eliminar la autoridad de los padres externos se confunde con la caída de los padres internos, lo que desencadena la necesidad de una identificación introyectiva, un proceso que, a su vez, aparece en el apego a figuras sociales, grupos musicales, deportivos y culturales. Las ideas desarrolladas aquí parten del concepto de reciprocidad estética (Meltzer, 1992; 1995), que culmina en expansiones en los procesos de identificación e introyección, que tienen lugar exactamente en este intercambio recíproco.

Palabras clave: reciprocidad estética, introyección, proyección, función alfa, simbolización


RÉSUMÉ

Dans cet article, l'auteur traite la réciprocité comme la réverbération entre l'analyste et l'analysant, en se concentrant sur le travail psychanalytique avec les adolescents. Elle comprend que c'est à l'adolescence que les confusions sont le plus intensément activées. La nécessité de retirer l'autorité des parents externes est confondue avec la chute des parents internes, ce qui déclenche la nécessité d'une identification introjective - un processus qui, à son tour, apparaît comme attaché aux figures sociales, aux groupes musicaux, sportifs et culturels. Les idées développées ici partent du concept de réciprocité esthétique (Meltzer, 1992; 1995), aboutissant à des développements sur les processus d'identification et d'introjection, qui se déroulent exactement dans cet échange réciproque.

Mots-clés : réciprocité esthétique, introjection, projection, fonction alpha, symbolisation


 

 

O ritmo é o meio para engajar-se na experiência; o espectador tem de encontrar alguma maneira de entrar no mundo do objeto. (Meg Harris Williams)

 

1. Introdução

Reciprocidade é a reverberação entre analista e analisando, acontecendo de segundo a segundo; sendo assim, é uma composição realizada entre duas mentes. Trata-se, portanto, de um termo potencialmente interessante à dinâmica de uma análise, situação em que as angústias e as experiências são comunicadas ao analista, que oferece em troca uma escuta peculiar.

Do latim reciprocitas, a reciprocidade trata do que é recíproco, do que é mútuo, do que existe de igual modo entre duas pessoas, ou daquilo que se troca e retribui na comunicação e convivência humana.

Do latim adolescere, adolescente equivale a crescer. Cerca de cem anos mais antiga que a palavra adulto, adolescer é a busca de ser, de libertar-se, de realização. É na adolescência que a confusão entre bom-ruim, feminino-masculino, externo e interno se ativa. A necessidade de destituir a autoridade dos pais externos confunde-se com a queda dos pais internos, que deflagra a necessidade de abastecimento dos objetos internos, por identificação introjetiva,2 e que aparece no apego a figuras sociais, grupos musicais, esportivos e culturais. Ao enriquecer as imagos internas, o adolescente abre espaço para o reconhecimento da dependência necessária, até mesmo da análise e do analista.

Entre a certeza delirante e a conjectura imaginativa, a atmosfera emocional na qual os adolescentes vivem constrói o desenvolvimento de uma análise. Todo psicanalista de adolescentes escuta um material de ligações complexas, que reflete na sessão, numa inconstância ativa e emocional. Se há algo a ser criado, é no adolescente que encontrará guarida, caso o espaço para ser si mesmo, para expor seus questionamentos e críticas, esteja em um meio de reciprocidade.

Pretendo desenvolver algumas ideias partindo inicialmente do conceito de reciprocidade estética (Meltzer, 1992; 1995), culminando em ampliações possíveis sobre os processos de identificação e introjeção, que acontecem exatamente nessa troca recíproca. Depois de elucidadas tais questões, pertinentes à metapsicologia (questões valiosas para os autores mencionados), compartilho como penso que, para mim, se apresentou a reciprocidade dentro do contexto clínico, e qual sua importância no desenvolvimento da análise de uma menina adolescendo.

 

2. Meltzer e a reciprocidade

Donald Meltzer concebia a psicanálise como um campo de observação, e exploração do misterioso mundo do analista e do analisando. Nesse tipo especial de encontro, buscava captar o nível de intensidade do afeto possível de ser experimentado. Através do ritmo da dupla, notava a temperatura que os envolvia, ou seja, a aproximação ou a distância que apresentava a qualidade da interação e da reciprocidade.

Para ele, a relação analítica se estabelece com base em construções estéticas. Como modelo, apresentou a relação emocional da mãe com seu bebê, conjecturando que o bebê faria um trabalho criativo de imaginar o interior desconhecido da mãe; e a da própria mãe de receber e povoar esteticamente o mundo interno da criança, também de modo criativo. Essa reciprocidade estético-emocional torna-se, assim, fundamental para o desenvolvimento psíquico e se dá quando a incerteza e o mistério puderem ser tolerados e o interior da mãe puder ser explorado na imaginação.

Também as mães capazes de suportar o impacto, sobre elas, do estado mental de seu bebê (angústia e terror) colaboram para que ele possa internalizar uma imagem de si mesmo mais tranquila. Pode haver a partir daí um compartilhamento e uma satisfação estética nesse reconhecimento mútuo da realidade psíquica. Assim, a relação mãe-bebê, no sentido de uma experiência estética, tanto estimula no bebê a necessidade de conhecer a mãe quanto o expõe à frustração criada por seu mistério.

Em paralelo, a investigação psicanalítica passa justamente pelo aprofundamento da atividade mental, principalmente, de um olhar estético para a experiência, para tornar simbólico aquilo que é matéria (ou que é apenas sensorial). Essa captação estético-simbólica passa pelo imaterial, pelo mistério, até tornar-se instrumento capaz de fecundar e fazer nascer a vida mental, processo que tem, na reciprocidade estética e na troca criativa, seu fundamento. Nesse sentido, a imaginação e a curiosidade são pontos básicos da dinâmica mental.

É através desses "motores" (da imaginação criativa e da experiência estética) que é possível construir ou dar continuidade à construção dos elementos do mundo interno.

 

3. Aproximações à ideia de reciprocidade

Melanie Klein

Melanie Klein traz a ideia de que na mente existem dois estados ou posições: o esquizoparanoide, como estado de cisões constitutivas, e o depressivo, quando uma integração se faz possível (Klein, 1991-97). O papel da mãe é o de ocupar um lugar de objeto, em que as profundas angústias do bebê são depositadas e experimentadas.

Para entendermos melhor as contribuições de Klein, faz-se necessário remeter ao conceito de objeto interno, um dos mais fundamentais da autora. Os objetos internos são experimentados com base nas relações que se estabelecem com o objeto externo (seio = parcial, e mãe = total). O bebê pode identificar-se com eles e assimilá-los, e isso é de suma importância para o desenvolvimento de seu psiquismo. A introjeção do objeto "bom", e a identificação com ele, capacita o Eu a integrar diversos aspectos de si mesmo e diversas experiências entre si. Também os objetos internos maus, ou mesmo mortos, movimentam o psiquismo, provocando ansiedade; a integração deles, o objeto bom e o mau, no ego, promove segurança.

Os objetos internos são experimentados e podem ser representados em sonhos, em fantasias e na linguagem, e, portanto, pautam e modulam as relações intrapsíquicas e intersubjetivas.

No campo analítico a expressão e simbolização das phantasias inconscientes, através das interpretações, representam o "apelo ao contato, e à reciprocidade" (Heimann, Valenstein, 1972), confirmando o desejo de estabelecer uma ligação.

O brincar no ambiente analítico é uma forma de expressão simbólica dos estados mentais que mostram a distinção entre sinais e símbolos, e a maneira pela qual o analista estimula o analisando a participar do encontro disponibiliza recursos ao processo de análise, também por meio da identificação projetiva,3 para que os objetos internos da dupla sejam movidos de seus lugares e ressignificados, tendo por base a emoção que se desvela.

Haverá um sujeito que se livra de partes indesejáveis se houver um objeto para recebê-las e dar forma e voz às fantasias, as quais, de modo simultâneo, ajustam-se em tempo, espaço e emoção. Na experiência do analista-analisando, esse é o produto da troca e da reciprocidade entre eles.

A reciprocidade, aqui, ocorre na via da comunicação entre inconscientes: nesse amálgama da interpretação e da presença, uma phantasia inconsciente expressada e simbolizada pelo analista pode então ser apresentada ao analisando, que tem a possibilidade de perceber algo novo, ou

Bion

Indo além de Melanie Klein, Bion dá ênfase à oscilação PS↔D, que quando livres da onipotência promoverão a expansão do espaço mental. Em "Uma teoria sobre o pensar" (Bion, 1994), o autor apresenta uma diferenciação entre identificação projetiva como processo normal, a serviço da comunicação, e um processo patológico, a serviço da descarga. A identificação projetiva, assim, pode ser o protótipo da comunicação entre analista e analisando, da apreensão de emoções, imaginações e fantasias, em que a dupla estará disponível para se deixar afetar. O analista que se apresenta, ao seu analisando, como é colaborará com a reciprocidade criativa da dupla. Esse caminho que Bion constrói esclarece que o estado mental de ambos alterou-se pela proximidade de se deixarem tocar. O contato mais íntimo está em serem eles mesmos, na presença do outro. Aquele que se relaciona consigo mesmo, e que é sujeito de sua experiência, é o que está inserido num campo de apreensão da "recíproca presentificação do Eu-Outro".

Utilizando como modelo a relação mãe-bebê, Bion nos diz que, com base nessa experiência (vivida emocionalmente), é possível desenrolar uma cadeia de transformações que culmina no desenvolvimento do pensar. Todo o caminho trilhado pelo bebê é acompanhado pela presença de uma mente-mãe, capaz de desempenhar funções psíquicas. Bion chama essa função de "função alfa", uma qualidade da mente que é um fino instrumento. A função alfa atuará sobre as impressões provocadas pela experiência, desenvolvendo a capacidade simbólica com base em processos oníricos. A mente da mãe (e do analista) trabalha num processo de digestão, transformando elementos beta4 em elementos alfa,5 capazes de uma organização estética; assim, a matéria-prima da experiência sensorial é transformada em símbolos para o pensamento.

Aqui Bion é o que mais se aproxima da ideia de reciprocidade estética em Meltzer, pois a incerteza e o mistério estão na base da verdadeira relação criativa, transitando pela turbulenta mudança das sensações à intuição. Nesse movimento, ocorrem flutuações entre continente e contido, ou seja, cada um será continente do outro, mantendo uma profunda interação com estados emocionais.

 

4. Clínica

Anna chegou a meu consultório coberta por roupas escuras e um longo cabelo alaranjado. Uma menina muito alta, com 13 anos de idade, que veio com o pai, o qual logo disse estar assustado porque Anna estava "viciada" num seriado com uma personagem suicida, chegando ao ponto de copiar os modos da protagonista. Ele disse também ter achado algumas cartas que o preocuparam e decidiu procurar ajuda. Com olhos marejados, entregou-me as cartas, e notei que Anna ficou incomodada. Perguntei-lhe se gostaria que eu lesse, e ela disse que não, então as devolvi e disse que, quando se sentisse à vontade, poderia me entregá-las. Mudando seu jeito, o pai consultou Anna sobre me contar apenas o que leu e me mostrar as fotos que achou. Ela acenou que sim.

Anna e Hanna

Anna imitava, em detalhes, a protagonista de um seriado, dando a versão que lhe cabia. Hanna, a protagonista de 13 Reasons Why, deixa para Clay, um amigo, um pacote com várias fitas cassetes, que explicavam por que havia cometido suicídio. Anna imitava o estilo de Hanna (cabelos e roupas), porém, nas fotos que vi, fazia poses diferentes e interessantes. Perguntei-lhe curiosa se ela exercia alguma atividade usando fotos e desfiles, e ela acenou que não. O pai disse que achava aquele meio muito perigoso, apesar de notar o talento da filha. Sem pensar, eu respondi: "Não sabemos onde mora o perigo".

Sobre Anna

Os pais de Anna separaram-se quando ela era pequena, e há um ano mora com o pai, a pedido da mãe, que disse não mais suportar seu jeito provocativo. Supus imediatamente que as provocações poderiam ser testes de amor de uma menina adolescendo. Essa separação em relação à mãe, segundo o pai, deixou Anna entristecida. Imaginei-a com medo de ficar sem lugar - sem lugar para viver como realmente é, porque haviam desistido de uma parte dela, e, a qualquer momento, isso poderia se repetir. Será que aí seus personagens nascem para serem por ela carregados? Sofreria menos se quem fosse mandada embora, dessa vez, fosse Hanna?

Anna e Adriana

Anna vem para nosso primeiro encontro, nossa primeira sessão de análise, bastante reticente. Entre roupas amassadas, um cabelo mal colorido e uma face muito maquiada, senta-se na ponta do sofá, de forma aparentemente desconfortável. Aguardo alguns minutos, e ela, sem me olhar, diz que não gostava de falar e que, quando havia aproximações tão grandes, num espaço tão pequeno, ela fugia ou ficava chata de propósito. Eu sorri espontaneamente, porque algo me interessou nessa fala, e respondi: "Onde tem briga, tem vida!"

Após inúmeras sessões e entre cheiros ruins, silêncios e imagens estranhas, Anna passa a chorar. Chora por alguns meses sem dizer nada, nem por quê, e assume cada vez mais uma postura ereta e delicada, quase artificial. Uma das perguntas que lhe fiz foi se ela estava com medo de algo e de estar ali, de estar com alguém que ela não conhecia por dentro e por isso não poderia expor seus pensamentos estranhos. Com a cabeça, ela acenava que sim. Às vezes me contava que a dor em seu peito aumentava e que não entendia por que andava tão esquisita. Após tantas outras sessões, eu decidi dizer tudo o que me ocorria a seu respeito, como se estivesse adivinhando algo dela, relacionando a algum gesto, olhar ou movimento. Mesmo que ela não dissesse sim, nem não, percebi que isso ofereceu uma ponte de contato. Parecia gostar desses movimentos de certa investigação, até que um dia me pediu que eu dissesse a ela o que eu achava que ela pensava sobre mim. Eu disse sem pensar... "Ih, caí do cavalo! Mas vou tentar o mais fácil, sou animada". Ela sorriu e disse que não sabia por que a mãe a havia deixado, e acrescentou que às vezes ela se achava bem legal e às vezes, não muito. Em seguida, perguntei como se sentiria com a mãe ali, entre nós, e ela disse que gostaria, e eu senti que parecia ser um bom momento.

No encontro com a mãe, Anna não pôde falar: não havia espaço para ela, que logo desanimou. Conversamos sobre isso (ela e a mãe não conseguiam ocupar o mesmo espaço - uma se afastava da outra) e seguimos nosso trabalho. Nas sessões seguintes, disse ter passado noites e dias em seu quarto, e que não tinha vontade de fazer nada, além de comer e assistir a séries. Temia ter engordado demais e às vezes passava pela sua cabeça acabar com a própria vida. Não sabia se teria coragem. Disse a ela que notava que ela mostrava sua coragem para viver a vida e que esse momento de mudança, sair da mãe, estar com o pai, estar em análise, podia ser vivido como algo muito desafiador, assustador, muito novo. Acrescentei que eu estaria ali, e ela, sem me olhar, diz que o sofá da minha sala era bom. Eu ri e disse que notava que ela estava mais confortável comigo e que a sala, meio apertada, e nossa proximidade incomodavam menos. Naquele momento lembrei-me de um livro que havia lido recentemente e estava em cima de minha mesa. Disse que queria mostrar-lhe algo que eu havia me lembrado e perguntei o que ela achava. Ela acenou que sim, e então peguei um livrinho de Valter Hugo Mãe que se chama O paraíso são os outros, e li o seguinte trecho:

Vivo num lugar quente. Aqui tem muitos mosquitos que não gosto, mas encontramos borboletas nas flores, se a gente esperar. A esperança parece inventada pela espera e eu não sei esperar. Minha mãe diz que eu tenho que fazer um esforço e acho que quando eu for maior vou melhorar nesse desafio.

Em outra sessão, entre aproximações e distanciamentos, notei que, quando ela falava um pouquinho, eu ouvia um tom de voz forte e disse a ela, acrescentando que isso contrastava com a cor mais ou menos do cabelo, com esse mais ou menos ser ela própria e o mais ou menos estar ali. Indaguei-me, e a ela, se era por isso que ela ficava em silêncio, para não mostrar que esse mais ou menos não passava de uma fachada, afinal, por dentro ela era muito intensa. Ela disse que estava com vontade de ser diferente, mas não tinha ideia de como fazê-lo.

Anna tinha o hábito de sair da sala para ir até o banheiro enxugar suas lágrimas e retocar a maquiagem carregada. Minha impressão era de que ela tentava evitar que aparecesse algo muito feio, esquisito, embaixo dessa pintura forte em seu rosto. Mas também me ocorria que ela ia simplesmente se ver, como para assegurar-se de que existia, para ela e para mim.

Certo dia, Anna decide usar os papéis que eu havia deixado à sua disposição, numa pasta, com alguns lápis e canetas coloridas. Entrou e foi direto para uma mesa que tenho, ao lado do sofá. Começou a desenhar um rosto de menina, e, de repente, apareceram formas impressionantes de uma arte escondida. Fiquei ligeiramente desconcertada, pois uma emoção muito forte me tomou. Não contive minha sempre entusiasmada paixão pela arte, e fiz um comentário: "Nunca vi alguém desenhar assim tão bem, tão de perto. Um desenho lindo e triste". Ela gostou do que ouviu, tentando disfarçar sua alegria.

Em outras sessões, alternava os desenhos com novos gestos e posturas. Um novo lugar estava sendo inaugurado por Anna.

Após algum tempo, ela se irrita, e num tom de voz alto diz que não quer mais desenhar, pois entendia que aquilo a mostrava demais e também que eu a estava irritando com esse meu jeito nada disfarçado de querer que ela desenhasse. Respondi que ela tinha razão e que eu ficava ali com ela aparentemente bem livre de complicações, mas, por outro lado, estávamos nos aproximando, afinal, nós duas choramos, e sabemos o que é isso. Perguntei também se ela poderia sentir-se mal quando eu olhava para o desenho, e não para ela. Ela responde que não achava que aquilo tudo era dela. Respondi que aquilo tudo era de fato ela. Fez um desenho na sessão seguinte.

Aos poucos, seus cabelos cor de laranja ganharam tonalidades azuis, e ela parou de chorar, seu rosto dando lugar a um olhar mais interrogativo. Certa sessão, ela apareceu com um grande estojo de maquiagem. Disse que, se eu aceitasse, ela me ensinaria a pintar os olhos, porque achava esquisito esse meu jeito de pintar só os cantos, isso não era bom. Eu disse que realmente seria muito legal aprender com ela, mas que essa era uma missão um tanto difícil. Fomos ao banheiro, e ela fez, nos olhos dela, tudo o que eu deveria fazer nos meus, pois ela havia aprendido sobre o assunto "nesses blogs de estética". Em minutos, ela pintou algo muito bonito, e eu disse que jamais conseguiria imitar aquilo. Ela imediatamente pede para me ajudar, o que eu consenti, e ela faz um traço mais forte em meus olhos. Digo-lhe que ela tinha vindo naquele dia para pôr mais vida em mim, com seus dedos. Provavelmente porque se sentia viva ali comigo e sabia que algo vivo dela morava em mim.

Em outra sessão, falamos sobre a maquiagem em nós e o que poderia representar. Pensamos se ela serviria para nos manter belas, mas que, se limparmos a cara e deixarmos vir o que é real, as olheiras e espinhas poderiam ser vistas.

Na semana seguinte, Anna me conta de sua paixão por Ricardo, que a motivou a sentir-se como Hanna (personagem), quase morta. E, depois dessa paixão não correspondida, interessou-se por Vanessa, que a chamava para participar de grupos e sair. Notava que Anna procurava aprender a amar e odiar, ensaiar gestos e personagens, para aos poucos criar uma intimidade consigo mesma.

Sobre o mundo interno de Anna

Anna entra e sai de inúmeras personagens. Hanna, modelo, roqueira, ensaia passos de bailarina e mais recentemente carrega uma Dama Antiga, com seus originais cabelos negros. Atualmente, algumas roupas de brechó, meias finas e sapatos clássicos complementam um olhar mais sincero. Atrai olhares por onde passa, e provavelmente ser notada faz com que se sinta bem, pois uma dor que sempre a acompanha é a de não ser descoberta, em seus talentos e em suas angústias.

A singularidade de seu desenvolvimento, um tanto solitário, provoca-lhe muita ansiedade. Seu corpo carrega uma alma que se compara, adere e vai ganhando forma. A angústia de Anna aparece em seus gestos e em seus pesadelos, vividos em seu quarto e interpretando personagens confusos.

Da menininha que usa e se apropria das roupas e dos sapatos da mãe, vai moldando-se aos poucos, descobrindo seu tamanho e liberdade.

Adolescendo, fora e dentro da sala de análise, ela está sempre imersa em desafios, revelando um bocado de contradição. Uma criança sempre presente dá lugar a uma mais crescida, que alterna a presença de forma inesperada e imprevisível.

Forte na voz e nas emoções, Anna, despida de suas artimanhas, mostra-se dedicada, impulsiva, irritada, com ódio, questionadora e talentosa. Ser receptiva às suas emoções e experiências, oferecendo-lhe espaço e afetos (amor e ódio), colaborou na criação de uma Adriana dentro dela, possibilitando que Anna pudesse pertencer à minha história, num momento de extrema vulnerabilidade.

Na análise de Anna com Adriana, passamos por situações de impacto emocional, que atingiram diretamente nossa relação. As ações de Anna nos puseram numa relação tão direta, que o contato corporal apresentou-se como numa análise lúdica e em transição. Todas as mensagens contidas no ato, ou seja, controle, temor da perda, tentativa de perturbar minha capacidade de pensar, estavam presentes como vias de comunicação. A emergência de nossos núcleos mais primitivos manifesta-se até alcançar algum sentido, em cada sessão e em cada desenho que ilustrava nossos afetos. Por mais difíceis que essas situações pudessem ser, foram e são ricas em significado, porque representam uma vida emocional nascente, em que nossa dupla se encontrou aos poucos. Foi quando nosso campo analítico ficou carregado por imagens e ações que seu mundo interno ganhou visibilidade - não por expulsão, mas por partilha.

 

5. Considerações finais

Na sala de análise, vamos a quatro mãos, reciprocamente, tateando nosso vir a ser analista e analisando. Internalizar uma nova companhia não oferecerá uma solução para restaurar as antigas, mas favorecerá experimentar as angústias da nova relação, criando uma espécie de família - sombra da sua própria. Com base nisso, podemos visitar uma história que permanecia escondida, reunindo-a aos sentimentos. Com Anna, a evidência de um material transferencial se apresentou. Ficando verbalmente bloqueada por uma pressão emocional e pelo medo, expôs seus objetos idealizados, sua dor e terror, representados por desenhos, maquiagens e imitações. Em nosso encontro seria livre para Ser Anna? Nossa curiosidade sobre nossos sentimentos nas cenas nos apresentou novos sentimentos.

Potencializamos nossa interação, criando uma e outra em nós mesmas. Aprendi com Anna, ao percebê-la em mim, que a linguagem expressa em nossa análise verificou-se por meio de códigos de comunicação, incluindo seus invólucros: ritmo, tom de voz e imitação (Guerra, 2014).

Esse encontro, partiu do corpo (experiência sensorial), e se abriu para a música, desenho e narrativa (Golse, 2006).

Assim, de uma performance sensorial a uma representacional, fazendo das sensações um mundo de palavras impregnadas de emoções, a intimidade se instalou.

"Tecendo casacos de frases" (Bekes, 2010), passamos para o campo da metáfora e da narrativa, expandindo um mundo interno, em que histórias tecidas em conjunto formam uma "segunda pele que abriga a alma" (Guerra, 2014).

 

Referências

Bekes, A. (2010). Lo intraducible. Ensaios sobre poesía y traducción. Pretextos.         [ Links ]

Bion, W. R. (1973). Atenção e interpretação. Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (1991a). Elementos de psicanálise. Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (1991b). O aprender com a experiência. Imago. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Bion, W. R. (1994). Estudos psicanalíticos revisados. Imago. (Trabalho original publicado em 1959)        [ Links ]

Golse, B. (2006). L'être bébé. PUF.         [ Links ]

Guerra, V. (2014). Indicadores de intersubjetividad 0-12 m: del encuentro de miradas al placer de jugar juntos. Psicanálise, 16(1),209-235.         [ Links ]

Heimann, P., Valenstein, A. (1972). The psycho-analytic concept of aggression. I nt. J. Psycho-Anal., 53,31-35.         [ Links ]

Klein, M. (1980). Notes on some schizoid mechanisms. In M. Masud, R. Khan (Eds.), The writings of Melanie Klein (Vol. 3). The Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1946)        [ Links ]

Klein, M. (1991-1997). Nosso mundo adulto e suas raízes na infância. In Obras completas (Vol. 3). Imago.         [ Links ]

Meltzer, D. (1992). The Claustrum. Clunie Press.         [ Links ]

Meltzer, D. (1995). A apreensão do belo. Imago.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 5/12/2019
Aceito em: 24/3/2020

 

 

1 Trabalho apresentado em reunião científica na SBPSP em março de 2019, e já tinha sido exposto em reunião científica no GEPCampinas em novembro de 2018.
2 A identificação introjetiva consiste numa introjeção em fantasia de partes clivadas do objeto, e mesmo deste em sua totalidade. Constitui-se como um fenômeno normal, base da segurança e intimidade. É a intensidade e qualidade que determina se o mecanismo é patológico ou normal.
3 Esse conceito de Klein (1946/1980) de identificação projetiva se refere a um processo de descarga, pela psique, do excesso de estímulos que se impõem a ela. A fantasia consiste em que seja possível expelir partes indesejáveis da personalidade, situando-as no outro. mesmo de integrar a seus objetos internos novos sentimentos e significados, por meio de um novo objeto introjetado.
4 Experiências sensoriais primitivas e caóticas que não puderam ser pensadas. Os elementos beta proliferam de forma caótica e constituem o que Bion chamou de "pantalha beta", não possibilitando uma diferenciação entre consciente e inconsciente, entre fantasia e realidade, e não permitindo a elaboração dos sonhos.
5 Se o indivíduo tiver capacidade de tolerar frustração, as primeiras impressões emocionais (prazer e dor) poderão ser transformadas, pela função alfa, em elementos alfa que abrirão passagem para os pensamentos oníricos, a produção de sonhos, a memória e funções do intelecto, fornecendo ao sujeito uma sensação de integração.

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