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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo ene./jun. 2020

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

Insulto e silêncio: reflexões sobre identificação com o agredido1

 

Insult and silence: reflections on identification with the assaultee

 

Insulto y silencio: reflexiones sobre la identificación con los agredidos

 

Insulte et silence : réflexions sur l'identification à l'agressé

 

 

Cláudia Amaral Mello Suannes

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes” da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / clausuannes@gmail.com

 

 


RESUMO

Tendo como pano de fundo episódios recentes da história do Brasil, este artigo pretende refletir sobre a passividade diante de situações de violência que ameaçam o pacto social. O trabalho parte da premissa de que determinados insultos a pessoas ou grupos específicos são insultos à comunidade e indaga em que medida a indiferença seria negação da constatação do desamparo original do ser humano. Para tanto, desenvolve reflexão em torno da noção de identificação e desidentificação.

Palavras-chave: identificação, violência, indiferença, pacto social


ABSTRACT

In the context of recent episodes in the history of Brazil, this article intends to reflect on the apparent passivity in the face of situations of violence that threaten the social pact. Based on the idea that certain insults to specific people or groups are insults to the community, this paper asks if indifference would be denial of the finding of the original helplessness of the human being. To this end, it develops reflection around the notion of identification and disidentification.

Keywords: identification, violence, indifference, social pact


RESUMEN

En el contexto de episodios recientes en la historia de Brasil, este artículo pretende reflexionar sobre la aparente pasividad frente a situaciones de violencia que amenazan el pacto social. El trabajo parte de la premisa de que ciertos insultos a personas o grupos específicos son insultos a la comunidad y pregunta si la indiferencia sería la negación de la percepción de la indefensión original del ser humano. Para ello, desarrolla la reflexión en torno a la noción de identificación y desidentificación.

Palabras clave: identificación, violencia, indiferencia, pacto social


RÉSUMÉ

Dans le contexte des épisodes récents de l'histoire du Brésil, cet article vise à réfléchir sur la passivité apparente face aux situations de violence qui menacent le pacte social. Le travail propose que certaines insultes à des personnes ou des groupes spécifiques sont des insultes à la communauté, interrogeant si l'indifférence serait une négation de la constatation de l'impuissance originelle de l'être humain. À cette fin, l'article développe une réflexion autour de la notion d'identification et de désidentification.

Mots clés: identification, violence, pacte social, indifférence


 

 

Nenhum leitor deste livro [de sua edição hebraica] poderá imaginar-se
facilmente na situação afetiva do autor, que não entende a língua
sagrada, que se afastou inteiramente da religião paterna - como de
qualquer outra -, que não consegue partilhar ideias nacionalistas e,
no entanto, jamais negou a vinculação a seu povo, sente sua particularidade
de judeu e não deseja que ela mude. Se lhe perguntarem "O
que ainda te resta de judeu, após renunciar a todos esses elementos
que tinhas em comum com seus patrícios?", ele responderá: "Muita
coisa ainda, talvez o principal".
SIGMUND FREUD

Corria o ano de 1973 e Jean-Claude Rolland, então psicanalista em formação na Association Phychanalytique de France (APF), instituição da qual veio a ser presidente anos depois, foi chamado pelos dominicanos para atender um de seus confrades, o brasileiro Tito de Alencar, que na ocasião estava exilado na França.

Ao receber seu paciente na emergência psiquiátrica, Rolland viu um homem num grau de sofrimento enorme. No primeiro encontro, no quarto do hospital, Tito encostou-se na parede e abriu os braços como se esperasse por um fuzilamento. Não pronunciou uma palavra, permaneceu mudo o tempo todo, e Rolland chegou a pensar que ele não falava francês, o que, evidentemente, não era o caso. O frade, que viria a suicidar-se meses depois, apresentava sinais que poderiam qualificar seu estado de delirante, porém, Rolland não compreendeu que se tratava de um caso psiquiátrico comum, mas que o paciente estava preso a uma tragédia que ultrapassava e esclarecia seu destino individual (Rolland, 2015a). Esta era a primeira vez que o psicanalista atendia uma vítima de tortura, e Tito passou a ser, de certo modo, um caso paradigmático. A partir dessa experiência, Rolland produziu uma série de reflexões, escreveu artigos e deu entrevistas sobre o tema, até mesmo para as biografas de Tito (Duarte-Plon & Meireles, 2014).

Estamos no ano de 2020, e a AMF convida seus membros para escrever sobre "psicanálise e política: escuta clínica e participação social". O convite é instigante, estimula a pensar em uma grande variedade de fenômenos, alguns deles mais diretamente ligados à clínica stricto sensu, outros ao que Fabio Herrmann chama de clínica extensa, chegando finalmente a fenômenos sociais e coletivos, que desafiam igualmente o psicanalista a pensar sobre eles. Volto ao tema da "psicanálise e política: escuta clínica e participação social", começo a brincar com o subtítulo do convite e vou procurando outros nexos entre as palavras: clínica e escuta do social, o social na clínica, a clínica do social, o social na escuta clínica, escuta clínica da participação social. Todas essas possibilidades de articulação teóricas e teórico-clínicas que foram se desenhando têm um eixo comum muito claro, que é a ideia freudiana de que não é possível pensar a psicologia individual e, portanto, a clínica de um paciente em análise, sem levar em consideração o laço social que sustenta o sujeito na relação consigo mesmo, com seus pares, com a comunidade a que pertence.

Lembro-me então de diversas situações clínicas nas quais os acontecimentos políticos e experiências vividas no coletivo são fonte de intenso sofrimento para os pacientes, tornando-se um tema na análise. Mas recordo-me também de situações inversas, em épocas de turbulência social e política, quando a mídia, as redes sociais, as rodas de conversa e demais espaços de circulação dão notícias de acontecimentos que confrontam o sujeito com a ameaça de perda de garantias constitucionais, e estes fatos não suscitam angústia e não se enlaçam com as questões levadas para análise. Refiro-me aqui a chacinas, extermínios, assassinatos, estupros e a diversas situações de violência, muitas delas praticadas por agentes do Estado, e, aparentemente, é como se esses acontecimentos dissessem respeito apenas à pessoa ou ao grupo atingido, não ao coletivo. Ou seja, como se a experiência de um não pudesse evocar naquele que assiste a algum desses fatos o temor de viver situação semelhante, como se a transgressão à lei observada em casos particulares não fosse ameaça à comunidade como um todo, muito mais do que à "bola da vez", isto é, às pessoas que foram violadas naquele episódio.

O que chama minha atenção, portanto, e se apresenta como tema de que gostaria de levantar pontos de discussão, é a passividade do coletivo diante de situações que ameaçam o pacto social.

Da sessão de votação de Impeachment da então presidente da República, em abril de 2016, na qual um deputado homenageou um torturador e o sentido de sua fala foi logo equiparado às demais declarações proferidas naquela data, já se desenha um curioso movimento de diluição do significado das palavras. Assim, na sessão em que parlamentares deveriam votar sim ou não pela cassação do mandato da presidente, os votos de sim em homenagem às criancinhas do Brasil, à família, à moral e aos bons costumes, aos corretores de imóveis, a Eurídice, que vem a ser tia de um deputado que cuidou dele na infância, e demais bizarrices desse jaez, ficam lado a lado com o voto, e aqui a frase é literal, "em homenagem à memória do coronel Carlos Brilhante Ustra, o pavor da Dilma".

A referência elogiosa ao coronel e ao órgão que ele comandou não provoca pavor ou afetos semelhantes somente em Dilma ou em quem esteve no DOI-CODI, mas a quem pode imaginar-se nesse lugar e a quem dá às palavras o significado que elas têm: como se sabe, Brilhante Ustra é o nome do primeiro brasileiro reconhecido e condenado pela Justiça como torturador. Foi chefe do DOI-CODI, em São Paulo, durante a ditadura militar e comandou sessões de tortura a presos políticos, entre os quais Dilma Rousseff. Trata-se, portanto, de inequívoco elogio à tortura por meio de homenagem a um reconhecido torturador. Houve reação negativa de parte significativa da população brasileira e da comunidade internacional, indagou-se o que teria acontecido a parlamentar alemão que homenageasse Mengele, mas o Brasil não é a Alemanha, Ustra não é Mengele, e assim, o elogio à tortura foi eclipsado pelo conjunto das falas tidas como cômicas e o fato não foi objeto de sanção.

De lá para cá, têm sido fartas as homenagens que um grupo político presta ao torturador, seja estampando seu rosto em camiseta, seja entrevistando sua viúva para programa em rede social ou convidando-a para almoço de cortesia em nome do heroísmo de seu falecido marido, seja deixando-se fotografar em reunião de trabalho, ostentando displicentemente o livro desse mesmo torturador.

Por fim, nesse contexto em que se tenta alçar torturador à categoria de herói nacional, assistimos também a situações nas quais a memória de desaparecidos políticos é aviltada diante de familiares que não puderam enterrar seus mortos: do cartaz que diz "quem procura osso é cachorro" (referindo-se àqueles que buscam os restos mortais dos desaparecidos), passando pelo cuspe no busto de um morto, diante de amigos e parentes que nunca puderam fazer um funeral porque o corpo não lhes foi entregue, chegando finalmente à situação que talvez nem seja a mais recente, mas é a última que pretendo mencionar. Um homem que exerce uma função pública, é presidente da OAB, tem, como todos nós, uma vida privada. Seu pai é um dos desaparecidos políticos do Brasil, foi visto pela última vez quando o filho tinha 2 anos de idade, e sua avó, que falecera depois de ter vivido mais de um século, lutou até os últimos dias para ter notícias do paradeiro do filho, cujos restos mortais nunca foram encontrados. Pois bem, em uma atividade pública, esse homem que não pôde sepultar o pai ouve o presidente da República de seu país dizer: "eu sei como seu pai morreu, e você não vai gostar nada de saber".

Faço um intervalo na escrita do artigo, releio os parágrafos anteriores, e o tom com que descrevo os fatos me parece excessivamente marcado pela minha concepção dos acontecimentos políticos. Dialogo com interlocutores internos que me pedem discriminação entre política e militância e me fazem lembrar que os leitores de noticiários estamos fartos de saber desses acontecimentos. Referir-se a eles mais uma vez serviria apenas para aumentar a indignação dos já indignados e para desencorajar a leitura dos que não se deixam tocar pelo tema e/ou daqueles que estão excessivamente tocados e querem distanciar-se da crueza dos fatos para poder pensar sobre eles com base no vértice da psicanálise. Decido reescrever os parágrafos anteriores.

Antes de apagar o que havia escrito, interrompo o trabalho e tento ler alguma coisa que me aponte outra direção para o texto. Leio "Pedro ou a demolição: um olhar sobre a tortura", de Marcelo Viñar, que começa assim:

Este texto trata da vida e do destino de um militante político latino-americano. Um amigo me disse: "lendo o seu texto, a gente nunca sabe se você fala de psicanálise ou de política". Escutei essa crítica como elogio: é sobre a maneira pela qual se enlaçam estes dois registros que quis esboçar algumas notas para suscitar uma reflexão. (Viñar, 1992, p. 35)

Na sequência, conta a história de Pedro, um homem singular e que, justamente por ser singular, evoca tantos outros Pedros, ao mesmo tempo em que faz com que nos imaginemos em seu lugar. Viñar ancora uma experiência particular em uma dimensão coletiva para tornar públicas, por meio de uma história concreta, as interações entre um processo sociopolítico e um destino individual, que é o propósito de seu texto. Penso que, além disso, a descrição de quem era Pedro e do que aconteceu com ele oferece ao leitor a oportunidade de perceber que aquilo tudo que foi narrado aconteceu com Pedro, mas poderia ter sido comigo, com você, com aqueles que amamos e com qualquer um de nós. A narrativa, portanto, permite experimentar a condição de vulnerabilidade a que todos estamos expostos.

Retorno ao trabalho de escrita sentindo-me bem acompanhada. Lembro que não é possível observar o cenário e descrevê-lo como se eu não fizesse parte dele e volto atrás na decisão de apagar a referência aos acontecimentos recentes do Brasil. Opto por manter a menção ao torturador, à mulher torturada e ao filho do desaparecido com o propósito de tomar esses acontecimentos singulares como algo que ultrapassa o destino individual de cada um deles, já que são eventos que dizem respeito à história do país e, portanto, a uma experiência que nos afeta coletivamente. Assim, falar de novo sobre o que já sabemos, mas não sabemos, pode ser uma maneira de socorrermo-nos das palavras para conferir estatuto de verdade a algo que insiste em se apresentar como uma novela bizarra, obra de ficção distópica ou efeito de alucinação coletiva.

Em trabalho já citado sobre tortura, Rolland (2015b) faz reflexões importantes sobre a palavra, o silêncio, o sofrimento incomunicável, o sintoma-testemunho e sobre o que chamou de "exílio da linguagem". Referindo-se a Tito, Rolland diz que este não era um paciente que seria preciso tratar, no sentido estrito do termo, mas uma vítima que viveu uma tirania que era preciso decodificar. Mais do que tratar, era preciso testemunhar e reconstituir a história do homem e do país que o conduziram até o ponto em que ele estava.

Rolland retoma, então, a ideia freudiana de desamparo original do ser humano e consequente dependência em relação àquele que cuida, para dizer que na situação de tortura, o torturador faz a vítima retroceder a esse estado arcaico de dependência, porém, de forma diametralmente oposta àquela vivida na situação primária. Se, na situação primária, o cuidador é aquele que experimenta a dependência absoluta do outro para conduzi-lo à independência e à igualdade, na situação de tortura a condição de passividade e dependência do outro é reinstalada para fazer dele objeto absoluto de sua vontade e de seu desejo. Neste sentido, a tortura seria o negativo radical daquilo que Freud reconhece como a própria condição da vida e do desenvolvimento do psiquismo.

Retornando à ideia segundo a qual o insulto público à mulher torturada e ao filho do homem assassinado por agentes do Estado são ofensas ao coletivo, em que medida a reflexão de Rolland poderia contribuir para se pensar na passividade que se abateu sobre os brasileiros diante dessas manifestações? Em que medida a apatia, indiferença ou passividade ante o insulto a um compatriota pode ser pensada com base no vértice da identificação?

No artigo "O ressentimento chegou ao poder?" Maria Rita Kehl (2020) também se indaga sobre a passividade. Apoiada na proposição de Espinosa sobre paixões alegres e paixões tristes, ela toma o ressentimento como uma das paixões tristes e que, como tal, diminui a potência do agir. No ressentimento, que também pode se tornar paixão coletiva, o sujeito percebe-se mais como indivíduo do que como sujeito, isto é, como alguém que não se dá conta de suas divisões internas, do jogo de forças que opera em si e do preço a ser pago pelas escolhas. Ao deparar com sua infelicidade, o ressentido elege alguém ou, no caso de fenômenos coletivos, um grupo a quem atribui sua infelicidade, desimplicando-se, desse modo, de suas escolhas. Tomando a Alemanha nazista como exemplo, a autora prossegue sua análise retomando a ideia de narcisismo das pequenas diferenças, abordando, assim, a desidentificação com aquele que é semelhante e desigual.

Chegamos, então, ao ponto que me interessa para prosseguir as reflexões deste artigo, que é o movimento de identificação e desidentificação com aquele que está em condição de vulnerabilidade.

Se a noção de identificação com o agressor é cara à psicanálise, o que poderíamos pensar em termos de identificação com o agredido, quando deparamos com episódios de insultos como os mencionados acima? Em que medida a indiferença poderia ser fruto de identificação massiva com o estado de vulnerabilidade do outro, seguida de negação dessa constatação? Dito de outro modo, ao ver-se passível de ocupar o lugar de agredido, a solução seria a de negar ao outro sua condição de semelhante, isto é, aquele que, mesmo não sendo idêntico, também não é radicalmente diferente. Neste sentido, a categorização em grupos em função de etnia, classe social, gênero, viés ideológico etc. funcionaria como proteção contra a ideia de semelhança, salvaguardando a ilusão de uma clara e absoluta diferenciação entre si mesmo e o outro, entre nós e eles, aplacando, desse modo, a angústia de se ver dependente, passivo e vulnerável.

Poderíamos pensar também no gozo sádico contido no silêncio diante do insulto, mas meu propósito neste artigo consiste em levantar pontos de discussão sobre uma faceta do fenômeno, a identificação com o agredido, com a expectativa de deixar para outra oportunidade o desenvolvimento de questões ligadas à ideia de que o silêncio e descaso também podem ser um meio de expressão do sadismo e da violência. Neste momento, estou mais próxima da noção de banalidade do mal, de Hannah Arendt, e é nesta perspectiva que pretendo continuar.

Sendo assim, mais do que marcar sua expressão, destacaria o movimento de apagar os traços da violência que comparece em dois tipos de manifestações: nas falas que diluem o sentido das palavras com justificativas tais como não é bem assim, foi uma frase infeliz, é preciso analisar o contexto, há radicalismo dos dois lados etc., e aquelas nas quais o reconhecimento do traço da violência opera tão somente por meio de compreensão intelectual das regras de conduta social e, portanto, dissociada da vivência afetiva correspondente. Nesta última vertente, encontramos manifestações de repúdio à violência e de solidariedade aos ofendidos desvinculadas da indignação que adviria da noção de pertencimento ao grupo ofendido. Ou seja, há reconhecimento da agressão sofrida pelo outro, mas não há reconhecimento do perigo de vir a sofrer essa mesma agressão. Lamenta-se o insulto como se este não fosse resultado de transgressão do pacto social, com consequente perda de garantias coletivas, que, em última análise, são garantias individuais de cada um dos integrantes da comunidade.

Se, porém, a divisão da comunidade em função categorias como etnia, classe social etc. permite, por um lado, uma provisória delimitação entre eu e não eu, entre nós e eles, e um temporário alívio da angústia, por outro, essa delimitação não resiste muito tempo às provas da realidade: a referência à tortura e ao assassinato nos lembra que os seres vivos somos mortais, que os animais temos um corpo que sente dor e que os humanos somos seres sociais, afetamo-nos com o que vem do outro e podemos estar inteiramente à mercê da tirania desse outro. Parece-me, então, que nesses acontecimentos o que se impõe, mais cedo ou mais tarde, é a constatação da finitude, da dor, da dependência e da morte.

No caso que estamos analisando, contudo, não se trata da constatação de fenômenos da natureza ou dos reveses da vida (acidente, adoeci-mento ou envelhecimento) em relação aos quais somos impotentes, mas de constatação do sofrimento que advém da violência que, por sua vez, resulta da quebra do pacto estabelecido para regular as relações entre as pessoas. Nos episódios específicos de ofensa aos desaparecidos, a agressão atinge um ponto nevrálgico da vida em sociedade, que são os rituais que todos os grupos têm para lidar com a morte. Temos no mito de Antígona a referência à tragédia provocada pelo impedimento do luto do morto que não pode ser sepultado. E, como sabemos desde Totem e tabu, em que Freud marca a passagem de estado de natureza para o de cultura, não existe organização social sem tabu e a consequente certeza interna de que a transgressão ocasionará intolerável desgraça. Entre as prescrições incluídas nas práticas do tabu estão o tratamento aos inimigos e o tabu dos mortos. O insulto ao corpo insepulto, portanto, chega muito perto de uma linha demarcatória entre civilização e barbárie.

Recusar-se a perceber-se fazendo parte de um coletivo por meio da divisão do grupo e a consequente indiferença ao outro pode ser, como mencionamos acima, uma negação da vulnerabilidade. Paradoxalmente, porém, a desidentificação torna os laços sociais mais frouxos e faz o sujeito mais vulnerável à tirania. Estaríamos diante de uma face mortífera do narcisismo?

 

Referências

Duarte-Plon, L. & Meireles, C. (2014). Um homem torturado: nos passos de frei Tito de Alencar. José Olímpio.         [ Links ]

Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., vol. 11). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Kehl, M. R. (2020). O ressentimento chegou ao poder? Serrote, 33. Recuperado em 27 de janeiro de 2020 de https://www.revistaserrote.com.br/2020/1/o-ressentimento-chegou-ao-poder-por-maria-rita-kehl/.         [ Links ]

Rolland, J.-C. (2015a). Entrevista com os analistas em formação da SBPSP. Jornal de Psicanálise, 48(88),187-189.         [ Links ]

Rolland, J-C. (2015b). Os fundamentos da tortura, uma fusão de violência e de sexualidade. Jornal de Psicanálise, 48(88),191-200.         [ Links ]

Viñar, M. (1992). Pedro ou a demolição: um olhar sobre a tortura. In M. Viñar & M. Viñar, Exílio e tortura. Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 3/6/2020
Aceito em: 5/6/2020

 

 

1 Prêmio científico da AMF.

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