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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo ene./jun. 2020

 

AULA INAUGURAL

 

Pedra de Bolonha1

 

The Bologna stone

 

Piedra de Bolonia

 

Pierre de Bologne

 

 

Ester Hadassa Sandler

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / estersandler@gmail.com

 

 


RESUMO

Transcrevo aqui a minha contribuição à abertura das atividades de mais um semestre do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes", da SBPSP, a cerimônia de boas-vindas a uma nova turma que inicia aqui a sua formação. Trago reflexões com base na minha própria experiência inaugural e de todos os anos em que participei desta instituição em várias de suas funções. Essa reflexão é uma aula apenas no sentido de propiciar um espaço aberto e arejado para promover as trocas internas. O que é psicanálise? O que faz um psicanalista? Quais seriam os veios de ouro da formação de um psicanalista? Para mim, mais uma questão de alquimia do que de garimpo. Alquimia representada pela pedra de Bolonha, que reflete à noite, como luz, a energia que armazenou durante o dia. Essa cerimônia ocorreu no dia 29/2/2020, uma quinzena antes do fechamento das instalações físicas de nossa sociedade, motivada pela pandemia da covid-19, a que faço breve menção sob forma de um pós-escrito.

Palavras-chave: abertura, psicanálise, psicanalista, tempo, fechamento


ABSTRACT

I present here the transcription of the contribution to the opening of a new semester at the Durval Marcondes Institute of Psychoanalysis of the Brazilian Society of Psychoanalysis of São Paulo (SBPSP). This ceremony welcomed a new cohort at the beginning of psychoanalytical training. My reflections draw from my own experience with such an inaugural event, and also from my many years participating in the various activities and functions of this institution. If my reflection can be considered a lecture or a class, it is only in the sense of fostering a free and open-minded space for mutual internal exchanges. What is psychoanalysis? What makes a psychoanalyst? What would be the gold veins for the education of a psychoanalyst? To me, it's more about alchemy than gold mining – a kind of alchemy represented by the Bologna stone, which at night glowed with the light from the energy it had stored during the day. The kickoff session transcribed here took place on February 29, 2020, two weeks before the physical spaces of our Society had to be closed due to the covid-19 pandemic, to which I allude briefly in the form of a postscript.

Keywords: opening, psychoanalysis, psychoanalyst, time, closure


RESUMEN

Transcribo aquí mi contribución a la apertura de las actividades de otro semestre del Instituto de Psicoanálisis Durval Marcondes (SBPSP) la ceremonia de bienvenida a una nueva clase que comienza su formación aquí. Traigo reflexiones basadas en mi propia experiencia inaugural y de todos los años que participé en esta institución en varias de sus funciones. Esta reflexión es una lección solo en el sentido de proporcionar un espacio abierto y aireado para promover los intercambios internos. ¿Qué es el psicoanálisis? ¿Qué hace un psicoanalista? ¿Cuáles serían las venas doradas de la formación de un psicoanalista? Para mí, es más una cuestión de alquimia que de minería. La alquimia representada por la piedra de Bolonia, que refleja en la noche, como luz, la energía que almacena durante el día. Esta ceremonia se celebró en 29/2/2020, una quincena antes del cierre de las instalaciones físicas de nuestra sociedad, motivada por la pandemia de covid-19, que menciono brevemente en forma de posdata.

Palabras clave: apertura, psicoanálisis, psicoanalista, tiempo, cierre


RÉSUMÉ

Je retranscrit ici ma contribution à l'ouverture des activités d'un autre semestre de l'Institut de Psychanalyse Durval Marcondes (SBPSP), la cérémonie d'accueil à une nouvelle classe qui commence sa formation ici. J'apporte des réflexions basées sur ma propre expérience inaugurale et sur toutes les années où j'ai participé à cette institution dans plusieurs de ses fonctions. Cette réflexion n'est une leçon que dans le sens de fournir un espace ouvert et aéré pour favoriser les échanges internes. Qu'est-ce que la psychanalyse? Que fait un psychanalyste? Quelles seraient les veines dorées de la formation d'un psychanalyste? Pour moi, c'est plus une question d'alchimie que d'exploitation minière. Alchimie représentée par la pierre de Bologne, qui réfléchit la nuit, sous forme de lumière, l'énergie qu'elle emmagasine pendant la journée. Cette cérémonie a eu lieu le 29/2/2020, quinze jours avant la fermeture des installations physiques de notre société, motivée par la pandémie de covid-19, que je mentionne brièvement sous forme de post-scriptum.

Mots-clés: ouverture, psychanalyse, psychanalyste, temps, fermeture


 

 

Bom dia a todos!

Agradecer é preciso. À Vera Regina, diretora do Instituto, à sua equipe. Muito obrigada pela oportunidade e o privilégio. Ao Canelas, pela parceria. Aos novos colegas membros filiados, a quem hoje damos as boas-vindas, e que desde agora nos ajudam a sustentar a vitalidade da psicanálise nesta instituição, tecendo conosco esta manhã e o nosso amanhã.

Se eu fosse nomear todas as pessoas que me ajudaram a chegar aqui e ter algo a dizer o tempo não bastaria. O sentimento de gratidão imbui aquilo que vou tentar comunicar, uma rede de pensamentos e evocações originada em uma multiplicidade de experiências. Somos parte de uma cadeia de transmissão e expansão de conhecimento; portanto, perguntas e questionamentos são bem-vindos.

Adianto à maneira de Magritte que isto não é uma aula, especialmente uma "aula inaugural", aquela que um dicionário define como "oração de sapiência" (Ferreira, 1986, p. 200). Ao mesmo tempo, isto é uma aula, de acordo com a origem grega da palavra, que outro dicionário define como "moradia, área livre descoberta, interna a um ou mais edifícios para iluminar e ventilar os ambientes internos" (Zingarelli, 2001, pp. 119, 287). Sei que para cada um este encontro resultará um sentido diferente, sedimentado e transformado pela passagem do tempo e pelas artimanhas da memória; talvez se apague na insignificância. Espero que vocês ajudem a transformá-lo em mais do que uma cerimônia de passagem, o início de um novo semestre de atividades do Instituto, o primeiro de vocês. Falo por experiência própria; no meu caso, as lembranças da reunião de que participei ao chegar nesta mesma instituição, cheia de inquietações e expectativas, não só persistiram como se intrometem com insistência em meus pensamentos; portanto, vou seguir o caminho que me apontam.

Era uma vez uma noite, quarenta anos atrás, em um auditório como este, mas na Rua Sergipe; muitas coisas são faladas, parte das quais consigo escutar, parte dessa parte, esqueço. Sobra reverberante apenas a sentença de encerramento, algo que ouço como uma advertência: "se, no fim das contas, surgir de todos vocês um único psicanalista, vou ficar muito feliz". Tempos outros, outras maneiras; o silêncio impera, uma mistura de respeito e temor reverencial; ou seria o terror reverencial de estar sendo admitida para formação no Instituto Durval Marcondes? Estarei aquém ou além dessa formação?

Na área descoberta para ventilar e iluminar os espaços internos todos prendem a respiração, o silêncio protege, ninguém se manifesta. No momento em que nós recém-chegados, inda estranhos uns aos outros, deixamos o auditório e recuperamos a voz no saguão, nas escadas, na calçada, percebo que alguns estão indignados; outros, cabisbaixos, desapontados; outros, indiferentes e ativamente ocupados com questões de ordem prática: matrícula, escolha de cursos, coordenadores, grupos, horários. Parecido com o que é atualmente, com a dona Adele sempre à frente, mas ainda sem a Suely e sem a Fabiana, sem computadores e sem Internet. Grandes filas físicas começam na madrugada, junto com as primeiras discussões: é importante fazer esse seminário com este coordenador, com aquele não... Será que dessas circunstâncias e escolhas arbitrárias irá depender meu aprendizado, êxito ou fracasso? Como se aprende a ser psicanalista?

Algumas vezes comentei essa lembrança com alguns de meus colegas de turma. A força da impressão, tão peculiar que já a duvidei como sonho, parece ter sido só minha. No decorrer dos anos, os colegas tornam-se quase sem exceção grandes amigos, parceiros de vida dentro e fora do Instituto. Acho que isso também vai acontecer com vocês. Por que será? Pelas horas que passamos juntos ano após ano, trabalhando em cooperação ou desentendimento, dividindo angústias, enfrentando desafios? Pela necessidade de pluralizar experiências tão irredutivelmente singulares? Só sei que os laços aqui se tornam muito fortes, profundos. Entre as pessoas, e entre elas e a instituição. Instituição da qual a maior parte das pessoas não deixa de participar quando se "forma", mudando apenas a forma de pertencimento. O que neste momento estou chamando de instituição é uma espécie de tecido conjuntivo de sustentação, constituído por pessoas, muitas pessoas entrelaçadas, em momentos e funções diversas; com tensões e inervações políticas e tudo o mais que a mentalidade grupal convoca: dinâmicas primitivas, pressupostos básicos, a revolta que a criatura instituição nutre pelos seus criadores. Mas isso já é uma outra história. Percebo estar encadeando um pouco de um passado com um pedaço de futuro, sem pretensões proféticas.

Bom, naquela noite volto para casa tumultuada, e isso vai se repetir a cada noite de seminário, ano a ano (os seminários aconteciam sempre nas noites de segunda e terça-feira, ficando as quartas-feiras reservadas para as reuniões científicas, na tradição das reuniões de Viena). Demoro para conciliar o sono. Estou assombrada, bem assombrada é bom dizer. Paradoxalmente, menos ansiosa e menos aflita com os custos materiais e pessoais da formação, com as noites longe dos filhos pequenos e com o luto pela medicina da qual me afasto mais e mais.

Resignada - o que tiver de ser será -, farei a minha parte da melhor forma possível enquanto tiver o fôlego que sempre aumenta com o exercício: análises, supervisões, cursos, grupos de estudo, estudo e mais estudo; trabalho, trabalho e mais trabalho. Debates e mais debates. Sempre rodeada por certa angústia, ressonâncias da minha experiência inaugural sob forma de renúncia a certezas, ilusões e garantias no caminho que escolhi e escolho a cada dia, até hoje. Com o tempo, percebo que aquela frase persistiu viva em minha memória não só pelo tom trágico de augúrio, pela anedota, mas apesar desses; pois à frase talvez tenha faltado a ênfase na transitoriedade - era uma oração de sapiência -, conjugava assuntos essenciais para manter em mente: psicanálise, psicanalista, vir a ser um psicanalista, trabalho, tempo, dúvida. Até hoje fico satisfeita quando em algum momento do meu longo dia de trabalho sinto que fui psicanalista, eterno vir a ser. Pena não ter havido naquela noite, coragem e liberdade para cortar as amarras do silêncio e liberar uma conversa. Faço isso agora, com quarenta anos de atraso; esses são alguns dos elementos que vou abordar para me aproximar do tema do nosso encontro, os veios de ouro da formação psicanalítica - para mim, mais uma questão de alquimia do que de garimpo ou ourivesaria. Alquimia da qual não espero a criação de uma pedra filosofal que transmute cobre em ouro, mas a descoberta de uma pedra de Bolonha, aquela "que irradia de noite o que aprovisionou durante o dia e que por esse fulgor indireto ilumina o novo dia que chega" (Barthes, 1977, pp. 17-18).

 

Sobre psicanálise e psicanalistas

Como explicar para um leigo o que é psicanálise, para que serve e o que faz um psicanalista? Por exemplo, quando nos procuram os pais de uma criança pequena que morde os amiguinhos, não dorme, não aprende ou não controla os esfíncteres? Eles pedem orientação: como vou explicar para meu filho que vou trazê-lo aqui? E se ele perguntar por quê? Desde o princípio, observo uma maneira diferente de tratar as coisas da mente, uma segregação entre as coisas do mundo emocional em relação às coisas do mundo físico, do senso comum, da racionalidade. Pais não costumam perguntar como devem falar ao filho quando decidem que esse vai para a escola, para o dentista ou ser vacinado. Na maior parte das vezes, simplesmente e como bons pais levam. Temos aqui também um encontro ou embate com a questão da franqueza, do preconceito quanto a se falar a verdade. Usamos o fato de crianças serem crianças para justificar o próprio mal-estar. A avó de um pacientezinho morre repentinamente. Era relativamente jovem e muito querida na família em que desempenhava um papel agregador. Especialmente querida pelo meu paciente, que aguardava ansiosamente as visitas que essa avó que morava em outro estado lhe fazia. A morte acontece em nosso período de férias, os planos de viagem da família, que meu paciente contara em detalhes em várias sessões, são cancelados. Sou avisada desses eventos poucos minutos antes de reencontrá-lo após as férias; no recado, um aviso: as crianças não sabem! Durante várias sessões, meu pacientezinho parece estar completamente psicótico, uma criança muito diferente da que se despedira de mim poucas semanas atrás. Sem avó, sem viagem e sem entender nada, sem poder fazer perguntas. Deixo o resto para vocês imaginarem.

Mas o que faz mesmo um psicanalista? Sou entrevistada a esse respeito para uma pesquisa. A lição de casa da entrevistadora, 8 anos de idade, inclui explicar para a classe o que fazem os avós. Um é engenheiro, outra faz trabalhos sociais. E você, vovó? Excelente exercício esse, tentar falar para ela o que eu faço. Uma tarefa de tradução e publicação para nós duas. Aparentemente, ela não dá muita bola, termina a lição, despede-se e pronto. Alguns dias depois me mostra outra lição, uma autoavaliação em que precisa descrever suas características pessoais, pontos fortes e fracos. Ela diz ter facilidade para entender os sentimentos das pessoas, que é uma boa ouvinte, tem paciência de escutar e dá bons conselhos. Os amigos parecem ficar melhor com isso. Assisto ao intuir de uma vocação?

Vale lembrar que leigo ou criança não é apenas o outro, somos nós mesmos; ou pelo menos uma parte nossa que tanto se apega ao estabelecido e resiste ao incógnito como também abriga uma reserva natural de ingenuidade, naïveté, de boa vontade para o novo. Por isso, acho bom quando me perguntam o que é mesmo que estou fazendo.

Agora, peço permissão para conversar com vocês em termos mais conceituais, e faço isso para ganhar fôlego.

Sempre apreciei a forma tríplice como Freud, em mais de uma ocasião, define a psicanálise: "o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica" (Freud, 1923/1969).

A dimensão da psicanálise como disciplina científica e teórica é acessível a qualquer um que o queira. Não é necessário ser um psicanalista para acessar e "entender" o que a extensa literatura disponibiliza; desde os primórdios de sua existência, a psicanálise impactou e modificou a cultura em que se insere, concorrendo ao pensamento de várias disciplinas das ciências humanas, especialmente medicina e psicologia com as quais dialogou, às quais contestou e pelas quais foi contestada ou refutada. Faz-se presente nas artes, pintura, cinema, teatro e literatura. Torna-se falada à boca pequena, popularesca, consumida e banalizada em estereótipos como "Freud explica". Esse mesmo Freud que reage com surpresa e alguma ingenuidade à aclamação com que é recebido em 1909 nos Estados Unidos, pois, se os americanos não sabiam que ele "lhes estava trazendo a peste" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 587), ele mesmo não percebeu o quanto a potencial "virulência" da psicanálise poderia ser atenuada pela sua aclamação.

Freud traz também uma boa definição de teoria em psicanálise: uma coleção de informações obtidas com base na investigação e nos achados clínicos, um acervo de que todos podem se beneficiar. É uma definição simples, amigável e que nem por isso deixa de ser verdadeira. Se acrescentarmos as variações introduzidas por sucessivos graus de abstração, por diferentes pontos de vista trazidos por diferentes autores, e pelo que decorre da inserção de novos fatos clínicos, chegaremos em algumas décadas à selva de teorias e publicações que caracteriza a psicanálise contemporânea (Manfredi, 1998, p. 9), na qual lutamos para nos orientar e para encontrar as ferramentas conceituais de que precisamos na clínica e nas pontes a construir para transpor vãos ou abismos no conhecimento; algumas vezes, simplesmente para criarmos mais teorias, nem sempre genuinamente inovadoras. Às quais, outras vezes, aderimos por modismo, sem o perceber. Por isso, André Green (2001, pp. 477-491) fala em crise de entendimento na psicanálise contemporânea. A teoria psicanalítica inclui a marca de um vértice epistemológico, autocrítico, impressa desde o início pelo seu criador, Freud. Com o tempo, cada um encontra a importância e a utilidade que o conhecimento teórico tem ou não para si mesmo.

A segunda dimensão, a de pesquisa e investigação de processos mentais, pode também ser exercida em separado, como nas pesquisas antropológicas de Geza Roheim, Margareth Mead e Bronislaw Malinovsky com povos de cultura primitiva, nas primeiras décadas do século passado. Mais recentemente, podemos encontrar essa conjunção em algumas pesquisas da neurociência. É no laboratório central da clínica, porém, que a investigação psicanalítica encontra seu hábitat natural. O vínculo K, conhecer, é para o psicanalista o vínculo eletivo no trabalho psicanalítico (Bion, 1961, pp. 89-94). Essa disposição para investigar fica tão entranhada no funcionamento mental do analista que muitas vezes não nos apercebemos disso. Assim, não me surpreendo quando um pequeno analisando com quem trabalho há alguns anos reclama: Ester, por que você sempre quer saber de tudo? Eu digo: não te fiz nenhuma pergunta. Ele retruca, não precisa, é o seu jeito, o jeito que você olha. E prossegue, brincando de detetive e cientista com sua lupa, tentando enxergar aquilo que é invisível a olho nu, concentrar um raio de sol para ver se incendeia um pedaço de papel. Penso, mas não falo: que bom, você também é curioso!

A dimensão clínica, finalmente, é aquela da qual apenas se pode mesmo saber experimentando. Nenhum indivíduo precisa saber nada de psicanálise para apreciar uma análise, ao contrário. O "saber" muitas vezes interfere com o saborear, o estar totalmente presente na experiência, como interfere em outras áreas de fruição na vida. Essa condição, a experiência pessoal de se submeter a uma análise, confere à psicanálise, segundo alguns, um caráter de culto esotérico. Objeção que as crianças não têm, especialmente as menorzinhas, pois já parecem intuitivamente saber do que se trata, mal entram em uma sala de análise, como comenta espantada a mãe de uma menininha de 4 anos que acompanhou com respeito e sensibilidade uma parte das sessões de avaliação: fiquei muito surpresa ao ver como ela ficou à vontade aqui, com as coisas que ela falou, com o modo com que se expressou. Ela não é assim normalmente, costuma ser bastante retraída. Temos então uma produtiva conversa, disparada por uma provocação minha: e, se ela for exatamente assim, o que poderia estar interferindo para ela não ser assim o tempo todo, em qualquer lugar? Responde a mãe: ela gostou de vir aqui, na doutora legal. Talvez não seja só isso, eu digo; o que mais você observou? Autorizada, a mãe passa a relatar vários detalhes do brincar e da interação que presenciou. Começa a indagar, pensar e fazer correlações.

O analisando, seja ele quem for, um analista ou alguém que aspira a sê-lo, um adulto ou uma criança, busca sempre uma análise em função de uma situação dolorosa cuja saída não vislumbra. Este é sempre o ponto de partida, pois o de chegada é desconhecido. No intervalo, algum desenvolvimento pode acontecer. E, falando em ponto de chegada, as metas de uma análise variam ao longo da história da psicanálise. Os progressos introduzidos pela expansão da clínica ao universo além da neurose são conceitualizados, transformam-se gradativamente em paradigmas e algumas vezes, não poucas, em estereótipos que precisam ser revistos e abandonados. Para que, então, estudamos tanto?

O conhecimento teórico que o analista acumula não pode impedi-lo de estar disponível a cada momento para viver uma experiência que é inédita, em um estado mental correlato ao que Freud descreve como neutralidade benevolente e atenção flutuante, Bion como abstenção de memória e desejo e Ogden como o "estar preparado para destruir e ser destruído pela alteridade da subjetividade do analisando e para escutar um som que emerge dessa colisão, algo que é familiar e ao mesmo tempo diferente de qualquer coisa antes escutada" (Ogden, 1996, p. 3). Essas três formulações dialogam entre si, mas não são coincidentes e não se sobrepõem. Essa é apenas uma menção, pois é um assunto, como os anteriores, para muita prosa.

Retomando a questão da formação analítica, os três componentes integraram a formação que tive, o tripé ou modelo Eitingon, modelo que continua vigente neste Instituto. Um modelo que se tornou padrão quase exclusivo em quase todos os institutos vinculados à IPA durante décadas. Até o ponto que sei, nasceu meio que improvisado na policlínica de Berlim, fundada há exatos 100 anos, um projeto social para atender a população a baixo preço. Com a grande demanda por psicanálise no pós-Primeira Guerra Mundial, surge a necessidade de se formarem muitos analistas, e em pouco tempo. Vale a pena ler o artigo de Freud sobre análise leiga (Freud, 1926/1990, pp. 179-183; Sandler, 2019, pp. 24-26), para termos noção das condições pessoais que ele considerava necessárias e das concepções a respeito de uma formação analítica naquela época. Vale a pena sempre conhecer a história do pensamento psicanalíti-co, do movimento psicanalítico, de nossa instituição. Isto é um convite. No cadinho da alquimia misturei vocação, trabalho, experiência pessoal, estudo, curiosidade, liberdade, parcerias, paixão, publicação. E tempo. Tempo como referência histórica, com intervalo de duração, tempo como época, expressão de uma mentalidade. O tempo é o grande escultor, como diz Marguerite Yourcenar no ensaio do mesmo nome (1983, pp. 49-53), esculpe e aprimora, mas também corrói e desgasta. A formação deve, em algum momento, terminar formalmente. Deve fazê-lo para poder continuar sob outras formas, como a continuidade da minha própria formação através do estímulo para falar aqui. O tempo da formação é sempre e ao mesmo tempo longo e curto demais. Que seja infinita enquanto dure.

A alquimia a que me é aquela que conheço e acontece na trama deste Instituto, com pessoas, muitas pessoas, entrelaçadas. Imagino que aconteça parecido em tantos outros lugares, talvez com temperos diferentes. Sei que essa não é uma definição sociológica, política, precisa, profunda. É apenas a minha visão afetiva deste lugar que se corporifica nos rostos que reconheço na plateia e naqueles que em algum momento espero vir a conhecer. Um lugar aonde às segundas-feiras é difícil abrir caminho, tanta gente que se amontoa; pois, como diz o poeta, um galo sozinho não tece uma manhã, ele precisará sempre de outros galos (Melo Neto, 1962-1965/1997, p. 15).

Sejam bem-vindos

 

Pós-escrito (27/3/2020)

Pouco mais de duas semanas após ter apresentado este texto em uma deliciosa manhã de sábado, fui buscar na biblioteca cópias de alguns artigos; entrei e saí o mais rapidamente possível. O espaço era o mesmo que descrevera como quase intransitável no dia 29/2/2020. Os funcionários estão lá e fazem seu trabalho sem a perturbação habitual de nossas intensas demandas. O espaço, agora deserto e silencioso, é fechado nesta mesma tarde. No momento em que finalizo a revisão deste texto, boa parte do povo brasileiro, como tantos outros no mundo inteiro, limita-se disciplinadamente a ficar resguardado em suas casas, na esperança de preservar a vida e de conter a ameaça para cuja erradicação ainda não se encontraram respostas. Um mundo de fronteiras agora cerradas, em doloroso isolamento; sem saber, como o pacientezinho que descrevi, quem, o quê e o quanto perdemos e perderemos. Com muitas explicações e sem nenhuma. Até o momento, percebo predominar solidariedade e cooperação mescladas ao desamparo e à dor. Nós psicanalistas continuamos tentando trabalhar de outras maneiras, com outros recursos e limitações. O que é mesmo um psicanalista? Para que serve um psicanalista em um tempo como esse? E daqui a um tempo, quando este texto for publicado, como estará esse tempo?

Cabe, como esperança, transcrever a primeira estrofe do poema de João Cabral de Melo Neto?

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

 

Referências

Barthes, R. (1977). Aula. Cultrix.         [ Links ]

Bion, W. R. (1961). Learning from experience. Heinemann.         [ Links ]

Ferreira, A. B. de H. (1986). Novo dicionário da língua portuguesa. Nova Fronteira.         [ Links ]

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Manfredi, S. T. (1998). As certezas perdidas da psicanálise clínica. Imago.         [ Links ]

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Ogden, T. H. (1996). Os sujeitos da psicanálise. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Roudinesco, E. & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1997)        [ Links ]

Sandler, E. H. (2019). Wayward psychoanalysis. In P. C. Sandler; G. P. Costa (Eds.). On Freud's The question of lay analysis. Routledge.         [ Links ]

Yourcenar, M. (1983). O tempo, esse grande escultor. Difel.         [ Links ]

Zingarelli, N. (2001). Lo Zingarelli minore. Vocabbolario della lingua italiana. Zanichelli.         [ Links ]

 

 

1 O presente texto contém mínimas diferenças, resultantes de revisão, em relação ao apresentado no dia 29/2/2020. Também inclui um pós-escrito.

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