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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo Jan./June 2020

 

AULA INAUGURAL

 

O veio de ouro da formação psicanalítica1

 

The golden vein of psychoanalytic training

 

La vena dorada de la educación psicoanalítica

 

La veine dorée de la formation psychanalytique

 

 

José Martins Canelas Neto

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / josecanelas@uol.com.br

 

 


RESUMO

O autor situa sua trajetória de formação psicanalítica, realizada na França por treze anos. Observa que a palavra "formação" remete a uma aprendizagem, que não é a essência da psicanálise. A análise pessoal do analista é o eixo central da formação, complementada pelas supervisões (escuta da contratransferência) e pelos seminários teóricos. Também é discutido o papel da instituição, a qual tem a responsabilidade de habilitar o psicanalista.

Palavras-chave: formação psicanalítica, análise pessoal, papel da instituição


ABSTRACT

The author presents his trajectory of psychoanalytic training, carried out in France for thirteen years. He observes that the word formation refers to learning, which is not the essence of psychoanalysis. The analyst's personal analysis is the central axis of the training, complemented by supervisions (listening to counter-transference) and theoretical seminars. It also approaches the role of the institution, which has the responsibility to enable the psychoanalyst.

Keyword: psychoanalytic training, personal analysis, role of the institution


RESUMEN

El autor sitúa su trayectoria de formación psicoanalítica, realizada en Francia durante trece años. Él observa que la palabra formación se refiere al aprendizaje, que no es la esencia del psicoanálisis. El análisis personal del analista es el eje central de la capacitación, complementado con supervisiones (escucha de la contratransferencia) y seminarios teóricos. También se discute el papel de la institución, que tiene la responsabilidad de habilitar al psicoanalista.

Palabras clave: formación psicoanalítica, análisis personal, función de la institución


RÉSUMÉ

L'auteur parle de son chemin personnel de formation, réalisée en France, pendant treize années. Il rappelle que le mot formation vise un apprentissage, ce qui n'est pas l'essence de la psychanalyse. L'analyse personnelle de l'analyste est le centre de la formation, complétée par les supervisions (écoute du contretransfert) e par les séminaires théoriques. Il discute aussi le rôle de l'Institution de formation, laquelle est responsable pour habiliter l'analyste.

Mots-clés: formation psychanalytique, analyse personnelle, rôle de l'institution


 

 

Não poderia iniciar minha fala hoje sem agradecer a Vera Regina Fonseca e toda a equipe da diretoria do Instituto pelo honroso convite que me foi feito para esta aula inaugural, a qual considero como uma acolhida de boas-vindas aos novos membros filiados, que começam hoje seu percurso de formação no Instituto. Nesse sentido, minha intenção não é ministrar uma aula, mas poder estimular uma boa conversa entre nós. Também agradeço a presença de todos os outros colegas que aqui estão. Sinto-me contente de ter a meu lado Esther Sandler, com quem pude compartilhar um pouco mais de perto as dinâmicas do Instituto e aprender um pouco sobre a vida institucional, durante a direção de Miriam Brambila Altimari.

Minha fala sobre formação psicanalítica terá um viés diferente para muitos colegas da Sociedade, uma vez que fiz a maior parte de minha formação em outra Sociedade e outro Instituto. Após realizar minha formação como psiquiatra, decidi concretizar um sonho que tinha desde jovem, que era morar por um tempo num país mais desenvolvido e que não tivesse um regime político ditatorial, como foi o caso do Brasil durante toda minha formação escolar e universitária. Assim, no início dos anos 1980 obtive uma bolsa de estudos para me especializar em psiquiatria da criança e do adolescente em Paris. Desde a faculdade de Medicina e na residência em psiquiatria já me interessava bastante pela psicanálise. Por isso, procurei o Centre Alfred Binet, em Paris, que pertencia à Associação de Saúde Mental do 13º. Distrito daquela cidade. Essa Associação era responsável por todo o atendimento em saúde mental, do bebê ao idoso, de um bairro de Paris, que contava cerca de 220.000 habitantes. Sua peculiaridade era que fora criada por psiquiatras que também eram psicanalistas, entre eles, René Diatkine, Serge Lebovici, Evelyne Kestemberg e muitos outros psicanalistas de renome, quase todos da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP). Nesse verdadeiro caldo de cultura psicanalítico meu interesse e entusiasmo pela psicanálise só aumentaram, e alguns anos depois comecei uma análise pessoal, tendo após três anos iniciado a formação na SPP, na qual fiquei até voltar ao Brasil. Para não me alongar muito, não vou explicar como era essa formação quanto à seleção do candidato, às supervisões e aos seminários. A análise pessoal, porém, foi para mim fundamental na minha decisão de me tornar psicanalista. Após situar meu percurso de formação, retorno ao tema que me foi proposto.

A metáfora usada no título que nos foi proposto, do "veio de ouro", uma marca na rocha pela qual se chega ao ouro, a indicação de um caminho para se atingir algo valioso, aponta para a seguinte questão: qual marca ou caminho nos leva a esse algo valioso na formação de uma pessoa em psicanálise? Reparem que isso é bem diferente de se perguntar sobre o veio de ouro da própria psicanálise; questão que também é importante. Vou me ater então, como um bom aluno, ao que é pedido. Trata-se de nos perguntarmos: qual marca ou caminho leva ao que é mais valioso na formação psicanalítica?

Para tanto, temos que apontar inicialmente, seguindo a concepção de André Green (Froté, 1998, p. 163), uma contradição intrínseca à expressão "formação psicanalítica". A palavra "formação" remete a uma aprendizagem, enquanto uma psicanálise, em sua essência, não é uma aprendizagem. Esses dois polos da contradição devem ser bem diferenciados, para que não se confundam. Por outro lado, a formação psicanalítica é também uma transmissão, não só de um saber teórico, mas, sobretudo, daquilo de que o saber teórico não pode dar conta e que só se vivencia na análise pessoal. Trata-se da experiência singular do choque do contato com o inconsciente em nós ou, na expressão de Fédida, com a estranha inquietude (o estranho) da transferência. Pontalis, falando dessa transmissão que passa pela análise do analista, disse: "um bom mestre é aquele que vos transmite uma porção suficiente do fogo sagrado, para que nasça em você o desejo de ensinar, é aquele que saberá desencadear em você um movimento, e não fornecer respostas" (Froté, 1998, p. 536).

A instituição de formação deve levar rigorosamente em conta essa distinção entre análise pessoal, de um lado, e formação/aprendizagem/ensino, do outro. Sabemos que a análise pessoal é essencial para se tornar analista. Nesse sentido é ela, e não a formação, o veio de ouro da própria formação psicanalítica. Como consequência, a instituição deve tudo fazer para preservar a total privacidade e inviolabilidade da análise pessoal do analista em formação. Esta não é tarefa fácil para a Instituição e não deve ser esquecida. Isto porque as instituições psicanalíticas são compostas de homens e mulheres, seres humanos, que formam um grupo, e tendem a se comportar em função da luta pelo poder. Daí ser fundamental que a instituição tenha um caráter democrático quanto às crenças e verdades de seus membros. A convivência do grupo com a diversidade de opiniões e posições em relação à psicanálise é um fator importante para a qualidade não só da formação, como da análise do analista.

Outro ponto importante é o fato de que a transmissão passa por uma série de transferências ao longo do percurso de cada analista em formação. A análise pessoal deve favorecer ao analista em formação a possibilidade de um trabalho de desidealização de algumas transferências, e acima de tudo da idealização transferencial em relação ao analista. Tudo isso me parece fácil de dizer, mas muito difícil na prática, talvez porque seja da essência da transferência essa relação passional criada pela demanda de amor diante de um sujeito suposto saber.

Já do lado da instituição, é importante lembrar que a formação é também um processo de habilitação, de atestar que tal indivíduo está habilitado a exercer a psicanálise. Essa responsabilidade sobre a formação que a instituição oferece é fundamental, a meu ver. Hoje, no Brasil, vivemos um momento de ataque à cultura e ao saber. Ataque institucional, religioso e político às instituições psicanalíticas sérias e responsáveis. Há projetos de lei e movimentos de universidades para regulamentar a profissão de psicanalista, assim como criar cursos de graduação em psicanálise. Aconselho a todos que não estão cientes desses problemas, que se informem. A Febrapsi tem um grupo de trabalho sobre o tema.

Levando em frente essa expansão da contradição psicanálise pessoal/formação psicanalítica, que já levou a muitas cisões no movimento psicanalítico, gostaria de falar um pouco da análise pessoal. Mais acima, disse que na análise pessoal tratamos daquilo de que a teoria não dá conta. Falo da transmissão da intransmissibilidade da teoria, isto é, do hiato teórico-prático. A análise não deve ser uma aplicação da teoria.

Freud, num texto de 1890, escrito para uma obra de vulgarização médica, define tratamento psíquico como um tratamento da alma (Seele, em alemão). Várias vezes em sua obra ele usa a expressão "vida da alma" como substituto de psíquico ou psique. E ele vai então, nesse texto, definir o que é esse tratamento da alma:

Poderíamos estimar que com esse termo compreendemos: tratamento dos fenômenos mórbidos da vida da alma. Mas essa não é a significação dessa palavra. Tratamento psíquico quer dizer, antes de mais nada: tratamento da alma, tratamento - dos distúrbios anímicos ou corporais - por meios que agem inicial e imediatamente sobre o anímico do ser humano.

Tal meio, é antes de tudo a palavra, e as palavras são também o instrumento essencial do tratamento da alma. (Freud, 1890/2015, p. 155)

A situação analítica, nos mostra Freud nesse texto, está ligada a uma restituição de uma antiga força mágica das palavras, enquanto fala plena (Lacan).

Pois é, a entrada numa análise é comparável para mim à entrada numa aventura desconhecida, e não sem riscos, para ambas as partes. Não creiam que com a idade, o passar dos anos, a experiência, um dia vamos conseguir entender o paciente, não ficar angustiados e adquirir um saber que nos dê garantias de segurança. Trata-se de trabalho árduo, renovado a cada sessão, no qual é necessário manter o que nosso colega Leopold Nosek chamou de "disposição para o assombro".

A estranheza de certos afetos que surgem, as regressões aos aspectos infantis e mesmo arcaicos do analisando (mas também do analista), as vivências transferenciais negativas, o amor de transferência, fazem de cada análise um processo singular, prática para a qual a teoria deve ser deixada em segundo plano. Não que a teoria não seja de extrema importância, mas, em minha opinião, ela vem sempre depois da prática e se articula ao patrimônio de conhecimento da literatura psicanalítica, segundo influências de certos autores e com a referência fundamental da metapsicologia freudiana como fundamento de base para a expansão das outras teorias.

A experiência pessoal da situação analítica, para que tenha validade, deve ser uma aventura livremente assumida. O sujeito vai engajar nesse processo o mais íntimo de seu ser. Por isso, penso que na conversa analítica estabelece-se uma relação de intimidade e liberdade únicas. Trata-se de uma forma diferente de relação humana. Outro aspecto que se dá nessa transmissão é uma dimensão ética, na qual o reconhecimento, o respeito e a responsabilidade com o outro são essenciais.

Um ponto sensível da análise de formação para o analista está ligado ao fato de ele estar sempre atento ao enorme poder que pode exercer sobre o analisando dentro da transferência. Nesse sentido penso que a instituição também pode exercer um papel de terceiro, dando um limite à sedução exercida pelo analista. Essa limitação do poder excessivo da transferência tem relação direta com a diversidade democrática das ideias que a instituição permite. Estou convencido de que vocês, novos membros filiados, poderão encontrar em nossa Sociedade essa convivência democrática de ideias.

A experiência da análise pessoal, tensionada pela transferência, pretende produzir uma modificação dos destinos pulsionais, pressionados com o encontro do aspecto traumático da sexualidade, os quais são sempre excessivos e inadequados. A regressão imposta pela situação analítica propõe uma dissolução das soluções de compromisso neuróticas e de suas formas na fantasia.

A formação também desenvolve, ou deve desenvolver, uma maneira de pensar, uma maneira de ver as coisas tanto no plano do indivíduo quanto no da vida coletiva e da cultura. A necessária participação da vida coletiva, trazendo suas reflexões e uma escuta diferente em diversos contextos sociais e políticos, também faz parte da formação psicanalítica, uma vez que somos todos seres no mundo. A cultura está presente em cada paciente em nossos consultórios. Esses aspectos se desenvolveram bastante nas diferentes atividades coordenados pela DAC nos últimos anos em nossa Sociedade.

Ratificando os diversos pontos que levantei, fica claro que a diversidade na formação é um aspecto necessário. Num cenário ideal, a diversidade necessita não de passagens ao ato (cisões), mas de promover um debate e um discurso serenos. Outro ponto importante, a meu ver, é tentar não burocratizar demais a formação, para não inibir a criatividade e a paixão dos analistas em formação.

O modelo dos três pilares da formação me parece o menos ruim: análise pessoal, supervisões e seminários teóricos. Penso ser importante a constante discussão e aperfeiçoamento de detalhes desse modelo. Vocês terão a possibilidade de nos ensinarem com suas contribuições e críticas a aperfeiçoar os muitos aspectos desse modelo. A formação analítica não está num espaço-tempo sem superego, no qual o analista em formação somente encontraria seus conflitos internos. Como disse Jean Luc Donnet: "A formação deve ser concebida mais sobre o ângulo do trabalho de diferenciação Ego-Superego, com o apoio na Instituição, necessário e inevitável substituto do Superego-Ideal pessoal" (Froté, 1998, p. 372).

O segundo pilar da formação é constituído pelas supervisões. Essas são, na minha opinião, quase tão importantes quanto a própria análise. A supervisão é o paradigma do espaço interanalítico. É nela que a contratransferência é um instrumento da fala que tem o mesmo estatuto que a fala na transferência da análise pessoal. É importante que o analista em formação saiba utilizar a situação de supervisão sem que ela tenha para ele um papel de habilitação. Muitas vezes esse é o principal fator, além das questões que concernem à análise pessoal, que inibe a escrita do relatório. O contato com dois supervisores diferentes também é enriquecedor, sobretudo pelo fato de que nenhum supervisor detém a "verdade" a respeito da psicanálise. Cada um vai mostrar ao analista em formação sua maneira singular de pensar e teorizar sobre a clínica.

O terceiro pilar, a teoria, deve evitar a ideia de idealizar um "mestre vivo", uma única referência teórica. Para evitar isso, creio ser fundamental a referência central à obra de Freud não só por ser o inventor da psicanálise, mas pela extensão e profundidade de seu pensamento. Para tanto, é preciso dialogarmos com essa obra não a pondo num lugar estático de verdade estabelecida.

Acho muito útil a distinção que fez André Green entre teoria psicanalítica e pensamento clínico, que ele define assim: "Eu defendo a ideia de que existe em psicanálise não somente uma teoria da clínica, mas um pensamento clínico, isto é, um modo original e específico de racionalidade proveniente da prática" (Green, 2002, p. 11).

Esse pensamento clínico, mesmo se ele não descreve uma situação clínica específica, evoca para a maioria dos analistas um paciente específico ou um grupo de pacientes. Esse pensamento clínico é o modo de funcionamento mental do analista numa determinada sessão com um determinado paciente. Por exemplo, com pacientes que apresentam um empobrecimento da simbolização e do mundo de fantasias e sonhos, é necessário às vezes que o analista ofereça seu próprio inconsciente para possibilitar o processo analítico, por meio de sonhos, lapsos etc. Se o analista em formação estiver em análise pessoal, esta poderá ser útil para criar ligações que possam fazê-lo entender o porquê de certo paciente aparecer de algum modo num sonho seu.

Para terminar, penso que podemos dizer que os veios de ouro da formação são muitos (a cultura, as artes, as supervisões, o estudo da teoria e suas interdisciplinaridades), mas que, sem a análise pessoal, sem aquilo que a teoria não pode transmitir, como disse no início, não podemos habilitar enquanto analista uma pessoa. Mas também sabemos que não há garantias quanto à análise pessoal.

 

Referências

Freud, S. (2015). Traitement psychique (traitement de l'âme). In S. Freud, S. Œuvres complètes (Vol. 1, pp. 153-175). PUF. (Trabalho original publicado em 1890)

Froté, P. (1998). Cent ans après. Gallimard.         [ Links ]

Green, A. (2002). La pensée clinique. Odile Jacob.         [ Links ]

 

 

1 Aula inaugural no Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da SBPSP, ministrada em 29/2/2020.

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