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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo Jan./June 2020

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

O psicanalista como ser político1

 

The psychoanalyst as a political being

 

El psicoanalista como ser político

 

Le psychanalyste en tant qu'être politique

 

 

Maria Luiza Salomão

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Franca / sm-salomao@uol.com.br

 

 


RESUMO

Inspirada em capítulos do livro Atenção e interpretação de Bion, e em considerações de Christopher Bollas sobre a mente fascista que nos habita, tento refletir sobre a política dentro da instituição psicanalítica.

Palavras-chave: criatividade, política institucional psicanalítica, o místico e o establishment, mente fascista


ABSTRACT

Inspired by chapters of the book Attention and interpretation, of Bion, and in considerations by Christopher Bollas, about the fascist mind that inhabits us, I try to reflect on politics within the psychoanalytic institution.

Keywords: creativity, psychoanalytic institutional policy, mystic and establishment, fascist mind


RESUMEN

Inspirado en los capítulos del libro Atención e interpretación, de Bion, y en consideraciones de Christopher Bollas, sobre la mente fascista que nos habita, trato de reflexionar sobre la política dentro de la institución psicoanalítica.

Palabras clave: creatividad, política institucional psicoanalítica, místico y establishment, mente fascista


RÉSUMÉ

Inspiré par les chapitres du livre Attention et interprétation, de Bion, et dans les considérations de Christopher Bollas, sur l'esprit fasciste qui nous habite, j'essaie de réfléchir sur la politique au sein de l'institution psychanalytique.

Mots-clés: créativité, politique institutionnelle psychanalytique, mystique et establishment, esprit fasciste


 

 

Não fazer nada é a
coisa mais violenta a fazer.
SLAVOJ ZIZEK

Nós analistas nos entendemos um ao outro.
Compreendemos um ao outro tão bem,
que já não mais entendemos nada.
ANDRÉ GREEN

Na medida em que as leis da matemática se referem à realidade,
elas não são certas, e, na medida em que são certas,
elas não se referem à realidade.
ALBERT EINSTEIN
(Discurso na Academia Prussiana de Ciências,
em janeiro de 1921)

talvez possamos nos familiarizar com a ideia de existirem
dificuldades ligadas à natureza da civilização,
que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma.
SIGMUND FREUD

Desde que entrei na Sociedade de São Paulo, eu me preocupei - de fato - com a "minha" institucionalização. Quinze anos de análise quatro vezes por semana, acompanhada por supervisões semanais, com analistas didatas experientes. Grupos de estudo. O que desejava, ao entrar para a Instituição psicanalítica? O que ela ofereceria a mais para mim? Qual a minha expectativa? Registrei o que me pareceu importante - não esquecer o que buscava na Instituição psicanalítica - em um trabalho que apresentei na ocal, dentro do Congresso da FEPAL - sobre Inércia e Criatividade, em 1998, na cidade de Cartagena, Colômbia. No texto, meus valores, ou o que me parecia ser uma atitude psicanalítica a ser preservada.

A formação me tomou doze anos viajando do Brasil profundo para a capital, dois dias ausente do consultório, psicanálise na veia - análise condensada, supervisão, cursos teóricos, seminários clínicos.

Na época lutei em conjunto com a então diretoria da Associação de Candidatos, sob a liderança da presidente, Marina Bilenky, para alterar a nomenclatura dos chamados candidatos para "membros filiados". Politicamente, candidato era inaceitável (candidato a quê?), se mantinha um consultório com lista de espera, que sustentava esse alto investimento econômico, fundamental para o meu desenvolvimento, trabalhando como psicoterapeuta em abordagem psicanalítica.

No Congresso da FEPAL-Cartagena, o então presidente da ipa, Otto Kernberg, tinha publicado pouco tempo antes um texto, "Trinta métodos para destruir a criatividade dos candidatos" (1996), do ponto de vista de analistas didatas. No meu texto, questionava o que os "candidatos" faziam para destruir sua criatividade. Até então, candidatos não tinham direito a voto, nem participação efetiva nos rumos da Sociedade. Politicamente essencial. Hoje a situação política dos membros filiados é bastante diferente, pelo menos na Sociedade de São Paulo.

Temia, ao ingressar no Instituto de Psicanálise, a perda da criatividade, temia o que chamei "institucionalização": o enrijecimento de uma atitude, dada a minha experiência emocional de quase vinte anos, que, de meu ponto de vista, poderia se tornar antipsicanalítica.

A grande expectativa que lutava para manter, interna e externamente, era a de ampliar minha criatividade, minha capacidade de escuta psicanalítica, e fortalecer minha fé no método, no processo contínuo de investigação da alma humana, de manter a chama da dúvida perene. A chama simbólica da Olimpíada, a continuidade de um trabalho que iniciou com Freud, no crepúsculo do século XIX, e que poderia em maratona pegar o bastão de analistas de várias gerações e passar para outras que virão.

Freud forneceu um exemplo de coragem, foi realmente um "místico", no sentido dado por Bion (1991): foi capaz de manter o que considerava sua obra-prima, Interpretação dos sonhos, mas anexando a cada nova edição alterações de visões sobre os conceitos, a ampliação de sua escuta analítica e expandindo a complexidade do seu pensar/sentir os fenômenos clínicos.

Na época, e ainda hoje, vejo a necessidade de questionar a instituição psicanalítica, como ato político genuíno. E também como cidadã, privilegiada pela formação que tive, permanecer questionando - sempre no gerúndio -o que fazemos quando nos intitulamos psicanalistas.

A Instituição deveria, deve ser um meio para viabilizar a criatividade. Como guardiã supostamente do método psicanalítico, que é revolucionário."Parece absurdo o psicanalista ser incapaz de avaliar a qualidade de seu trabalho ... O outro, o único capaz de opinião, é o analisando" (Bion, 1991, p. 72). Bion conclui que os dois, analista/analisando, não são fidedignos para fundamentar suas opiniões. A intensidade "quase insuportável" dos fatos emocionais determina se a dupla está falando sobre a psicanálise ou fazendo psicanálise. Ou seja, experenciando ou fugindo da experiência emocional, íntima.

No capítulo 5 do livro Atenção e interpretação, "O continente e o contido", um modelo genial e útil criado pelo autor, leio um Bion provocador. Traz dois polos para pensar a relação instituição/psicanalista: o establishment e o místico.

Establishment, explica o autor citado, refere-se ao Estado, com normas e leis, e inclui as instituições psicanalíticas. E questiona: como a "casta dirigente" dos institutos se comporta com "aqueles que não se amoldam à experiência direta de ser tornado psicanalista"? (Bion, 1991, pp. 72-73). Como o establishment lida com o "místico", no sentido de usar as ideias deste para manter uma provisão que torne a instituição viva e dinâmica? O místico deve ser criativo e destrutivo, afirma.

Chamo de "místico", apropriando-me dessa reflexão bioniana, todo aquele que se torna capaz de usar do método psicanalítico. Que tem a ousadia de sustentar ideias que podem soar como novas e, portanto, ameaçadoras para o establishment. "A função do grupo é suscitar o místico; ao Establishment compete aceitá-lo e absorver seus efeitos de maneira que ele não destrua o grupo" (Bion, 1991, p. 92).

Há ressonâncias políticas e profundamente psicanalíticas nessas formulações do autor. Podemos ver a força da Instituição, quando ela permite que floresçam as ideias trazidas pelo místico, de maneira que não precise bani-lo; e sua fraqueza, quando ela possibilita que seja destruída por não assimilar a mudança suscitada pelo místico, como muitas vezes vemos em sociedades que se fraturam com as dissidências. É bom não esquecer que Freud mesmo provocou e sustentou dissidências no interior do movimento psicanalítico (Jung, Adler e outros). Bion, em plena Segunda Grande Guerra, no ano das Controvérsias, 1945, testemunhou a ruptura da Sociedade Britânica em três institutos - o de Anna Freud, o de Melanie Klein e o do Grupo Independente, do qual faziam parte Bollas, Winnicott, Symington e muitos outros. Há exemplos desse tipo no Brasil e em outros países.

No trânsito do relacionamento da dupla analítica, espera-se que aconteça uma mudança catastrófica, em um e outro da dupla; expressão apocalíptica bioniana, que remete à tendência humana a temer - sentindo como ameaçadora - qualquer mudança afetiva/efetiva.

No trânsito entre o establishment e o místico, observa-se (como em uma sessão de análise) que o místico pode trazer algo novo, e o perigo - a ameaça - é destruir crenças e equívocos, por um lado, e, por outro, algo que vai demandar esforço e coragem por inaugurar (fazer nascer) novas possibilidades no edifício da instituição (ou na dupla analítica - considerando que o analista também se transforma com a novidade).

O analista se descobre analista no momento em que o analisando se descobre mutante, simultaneamente. A instituição se confirma na formação do analista capaz de "sofrer" esse tipo de mutação catastrófica.

Mudança, esboço em rápida pincelada, é a disposição para o "estranho", egodistônico, para o que abala o establishment do Eu, na relação do Eu com o Outro. Abala a Instituição psicanalítica a criação de novas técnicas, teorias, novos modos de se fazer psicanálise. E é sempre uma covardia escutar "isto não é psicanálise", como se houvesse alguém passível de deter uma "revelação" sagrada, indiscutível, reveladora de postura religiosa, ou no mínimo autoritária, incompatível com a atitude psicanalítica de abertura à investigação.

Considerando outro contexto, recorro a Maren Viñar e Marcelo Viñar, no livro Exílio e tortura (1992), e penso que me senti por vezes exilada, durante o período de formação, que por vezes se assemelha a uma espécie de provação, e também de iniciação, no tornar-se psicanalista. Dizem Viñar e Viñar, em uma mesa-redonda intitulada "O Terror, o Lugar do Psicanalista":

Pode-se passar mil e uma horas discutindo ideologias ou estratégias. As diferenças são ínfimas e levam à exaltação e à arrogância. Não obstante, não é o conteúdo dos propósitos que conta. A linha de divisão é muito mais radical. Passa pelo fato de se estar ou não concernido. É com esta nuança que a injunção ética de ser concernido comporta nela mesma um certo grau de terror e de perigo. (1992, p. 101)

As experiências emocionais por que passei em busca da "minha" psicanálise concernem a mim. Quem as pode ouvir? Além do analista, além do supervisor, quem ouve? Freud já falava, em Psicologia das massas e análise do eu, de 1921, sobre o "narcisismo das pequenas diferenças".

Quem pode reconhecer o indizível que é estar em análise, e viver simultaneamente um bombardeio de teorias que vêm recheadas de juízos, de pré-conceitos, e também de saberes incensados (os "messias"?) daqueles que representam a Instituição, entidade que surge impessoal, sem rosto e sem carne. Alguns desses saberes a contrariar a vivência íntima e intransferível, pessoal e significativa.

A atmosfera - por vezes efervescente, por vezes humilhante, por vezes narcisizante - vivida na Instituição é parte do que constitui o psicanalista: há que vivenciar a travessia.

O título de psicanalista, ao fim e ao cabo, é muito pobre e pouco ambicioso. Se o intuito é galvanizar dimensões do ser, há que ter maior investimento em todos os planos.

Galvanizar é, no dicionário etimológico de Francisco Silveira Bueno (1974), no sentido figurado, "animar, estimular, dar energia, eletrizar".

A Instituição pode fomentar a aparição de uma força pessoal criativa no membro filiado, ou criar a necessidade de mais formação. Ou, violentamente, formatá-lo, apagando sua chama criativa, pessoal e significativa. Não há como medir o quanto se ganha (ou se perde, a depender do vértice usado) nesse processo, o quanto pode ser destrutivo ou, ao contrário, permitir uma evolução pessoal/grupal.

A psicanálise não promete cura - não se cura a gente da gente mesmo. Também é idealização imaginar uma instituição porosa e aberta ao novo, ou relações harmônicas entre os seus membros, permanente e continuamente. Há um constante fluxo, atenta Bion, em pensamento que percorre toda a sua obra, entre fragmentação e integração, supostos básicos; acasalamento (à espera de um Messias, sempre negado, sempre procurado); luta e fuga (a criar inimigos a quem atacar ou de quem fugir); dependência (a ambivalência entre confiança cega - religiosa - e a perda do espírito crítico-científico).

Temos, todos, um compromisso de descobrir em que regime político está o self do paciente e o nosso, na posição de analista. E o regime político do establishment, a Instituição. Como Bion frisa em vários momentos de sua obra, é uma fronteira móvel esse regime político - individual e grupal.

Há um adensamento do fluxo de transferências/contratransferências nos corredores da Instituição. Posicionamentos e controvérsias, relação de jogos de poder, em tudo semelhantes ao que vivemos em qualquer esfera de relacionamento, em qualquer tipo de instituição, na política com P minúsculo e na Política com P maiúsculo. Incluída aí nossa inserção como psicanalistas no país e no mundo, na qualidade de cidadãos.

Bollas (1998), no Capítulo 9, "O estado da mente fascista", do livro Sendo um personagem, me fez pensar nesse fluxo contínuo que nos constitui e nos faz perder a posição de psicanalista - ou a função psicanalítica. Ele toma o "estado da mente fascista" como metáfora de um movimento político historicamente determinado, o fascismo, como a "personificação do mal".

"Há um fascista em cada um de nós - um perfil reconhecível por este estado pessoal" (Bollas, 1998, p. 158).

No self, diz, é possível observar um tipo de organização parlamentar em que se pode perder a função egoica mais integrada (leio "democrática") e passar-se a assistir ao evoluir da mente no sentido da ditadura de um "ego de plantão" - expressão que uso para pensar na cisão que o Eu sofre, e que vemos comparecer fracionado em diferentes momentos das sessões analíticas, ou em diferentes sessões de análise.

Com a perda dessa organização parlamentar, diz Bollas (1998), perde-se a capacidade humana do self - de empatia, perdão e reparação.

Bollas nos ajuda a entender nesse capítulo que, ao desculpar o comportamento destrutivo de alguém, fazendo uma cisão de aspectos humanos e aspectos destrutivos da mesma pessoa, cometemos um crime contra a condição humana. Passamos a amar os "monstros" medonhos, em vez de nos opor a eles (Bollas, 1998).

Arendt (citada em Bollas, 1998, p. 159) afirma que "o terror se torna total quando independe de toda oposição. Reina de modo supremo quando ninguém impede o seu caminho", citação retirada de sua obra Origens do totalitarismo.

Trocando em miúdos, Bollas (1998) conclui que há sementes do Estado fascista quando nos assentamos em certezas e convicções; quando eliminamos a dúvida, o autoquestionamento.

Freud começa estranhando os sonhos, os chistes. Estranha a normalidade, borrando as fronteiras entre neurose/normalidade/perversão/psicose. Vai estranhando seus próprios conceitos, até o final, permitindo-se ser o "místico", e também o "establishment". Era bastante político na articulação com seus seguidores e adversários. Dizia que, para escrever, tinha de encontrar pelo menos um mal-estar em si mesmo. Também habitualmente encontrava algum interlocutor, ou mesmo um opositor - externo (sendo o seu interlocutor interno onipresente).

Vejo na estranheza a atitude política no ser analista, quando cuida do seu eterno tornar-se. Na sessão com seu paciente; na vida.

É preciso estranhar nossas crenças, nossos vértices, nossos pacientes. Assim leio Bion, percorrendo sua obra, reconhecendo sua sabedoria. A maneira pela qual apresentamos nossos relatos, a seleção de nossas lentes teóricas, as publicações, em cada gesto e ação, estamos nos apresentando -com um self "parlamentar" ou "fascista".

O método psicanalítico precisa estar entranhado em nós, a permitir o flutuar entre contradições, pavores, seduções de vários tipos (a teorização é uma delas); a suspensão de julgamento; a condição de tolerância e espera. Assim leio a obra de Bion, como que a nos advertir para desconfiar do que chamo "céus de brigadeiro".

Estranhar é necessário para entranhar o método psicanalítico.

Colegas psicanalistas nem sempre são condescendentes com nossas realizações. São como irmãos, e, como em toda família, não temos os mesmos pais. Aquela que é mãe protetora para um nos parece madrasta cruel. Aquele pai modelo para outro nos parece líder autoritário.

Procuramos turmas afins, e nos distanciamos daqueles que nos opõem. O que é um equívoco. Vemos isso nos algoritmos usados no Facebook, e, agora, muito mais perigosamente, em fake news, e em eleições de presidentes dos países e em plebiscitos que decidem rumos políticos com consequências para milhões de vidas (por exemplo, o chamado Brexit, na Inglaterra, quando da saída da União Europeia).

Vivendo longe da sede da SBPSP, tinha curiosidade em conhecer os vértices dos analistas que conhecia por escrito, vorazmente. Procurei muitos que contrariavam os meus, e tive de elaborar situações críticas, que me foram desagradáveis, catastróficas. Estranhei e fui estranhada.

Sou grata a essa estranheza, que, paradoxalmente, me constitui. Adesão cega, obediência e fidelidade cegas são atitudes antipsicanalíticas, afinal. Agradecida por viver em uma Sociedade plural, que sustenta uma diversidade de lentes teóricas psicanalíticas. Mas confesso que sobrevivi às mudanças catastróficas, necessárias a uma boa formação.

Bollas (1998) destaca que, no estado de mente fascista, em seu cerne, predomina a ideologia. Em termos psicanalíticos, predomina ali a crença, que leva ao uso de mecanismos rígidos para eliminar qualquer oposição. Uma verdade secreta, psicótica, a unir "eleitos da seita". Observamos o fenômeno na religião, na teologia, e, infelizmente, também nas instituições psicanalíticas.

Conceitos tornam-se "chavões". Teorias tornam-se dogmas. Pensamentos tornam-se signos, ligações vazias de significados, simplificações. Ao conferir uma pseudossegurança, pode restringir o espaço de abertura para questionamentos.

Freud adverte para a função patológica da certeza, em O futuro de uma ilusão (1927). A minha leitura de Freud permite que estenda sua inquietação não só com as religiões, mas com a própria "religiosidade" que poderia estar contida no futuro da psicanálise. Sua obra expande-se muito além do vivido pelo homem Freud.

Estranhar é "cegar-se artificialmente" (Freud, em carta a Salomé). É lançar um "facho de escuridão", título usado por Grotstein (2010), para comentar a obra de Bion, e destacar a importância de suspender memória, desejo, compreensão para encontrar o infamiliar, o sinistro, o inquietante, o borderline de nossa ignorância e conhecimento.

Talvez não haja melhor treino de observação do que aquele que nos permite ver em ângulos diferentes - de olfato, de toque, de audição, de visão. Bion (1974), em Conferências brasileiras, diz que o psicanalista deve saber usar a "compreensão distorcida". E o que é uma compreensão distorcida, se não o que Freud chama de "infamiliar"?

Na psicanálise, na instituição, como nas salas de análise, vemos estratégias de sobrevivência. As patologias são estratégias de sobrevivência, esta é a nossa com-paixão e empatia que devemos aos pacientes, que sofrem e nos procuram por não vislumbrar saída para as prisões que eles - ao longo de suas complexas e difíceis trajetórias - construíram, consciente e inconscientemente.

Distinguir o regime político entre o que promove vida e o que leva à destruição é tarefa e função do psicanalista. Procuro me comprometer com minha formação interminável, pressentindo meu desejo de estendê-la ao infinito, com a parceria dos analisandos.

Um parêntese a respeito da epígrafe, a citação de Zizek. Uma frase que me permite pensar na ambiguidade do fazer política e a omissão, também política. Penso que há maneiras de se fazer política - reveladoras em como me visto, falo, decoro minha sala de atendimento e de espera, como atendo a demanda de tratamento pelo paciente, como me relaciono com colegas e com o estudo da psicanálise. Há maneiras de omitir-se, tão violentas quanto pode ser minha forma ativa de me situar como psicanalista na Instituição, no consultório e no meio em que vivo.

Calar-se quando é preciso indignar-se, por exemplo. Em relação a questões da sociedade em que vivo, como cidadã. E tantas outras, na Instituição psicanalítica e nos valores que professo e que podem chocar-se com ela.

Um exemplo é o valor dos honorários cobrados dos analisandos e dos que estão em formação na Instituição, que é bastante onerosa e não nos possibilita tornar os honorários acessíveis aos pacientes de menor poder aquisitivo. Um efeito dominó.

Por que é tão difícil pensar na desigualdade social, econômica e cultural de nossos pacientes (e dos aspirantes à formação psicanalítica) no seio da Instituição psicanalítica? Com a pandemia que enfrentamos, desde dezembro de 2019, em nível mundial, e desde fevereiro, no Brasil, temos de aprender a pensar nisso, finalmente. Pensar também na questão étnica. Na mesa-redonda de que participei, pudemos refletir sobre essa mancha histórica, social, que é a ausência de negros nas instituições psicanalíticas.

Freud, em meados da primeira década do século passado, nos primeiros congressos de psicanálise, junto com Ferenczi e outros psicanalistas, inaugurou clínicas populares, facilitando o atendimento aos que não tinham meios de pagar o tratamento psicanalítico.

Danto nos conta:

Na Viena da década de 1920 e início da de 1930, médicos que estavam muito ocupados, como Sigmund Freud, podiam emitir um Erlagschein (algo como um vale) para um paciente atual ou em perspectiva, que mais tarde o usaria como forma de pagamento para outro médico. Os Erlagscheine eram, em geral, elegantemente impressos em papel laranja claro, escritos à mão, sem uma numeração própria, feitos para uma combinação especialmente versátil de comprovante de deposito bancário e cheque pessoal. Os vales eram atrativos para praticamente todos os membros da comunidade psicanalítica da cidade, já que médicos particulares poderiam endossar um Erlagschein para uma clínica como uma espécie de garantia, para resgatar (em dinheiro ou em tempo) as horas de tratamento que, via de regra, doariam pessoalmente. Sigmund Freud endossava com regularidade Erlascheine de dois a quatrocentos xelins para a clínica gratuita dos psicanalistas em Viena, conhecida como o Ambulatorium. (2019, p. XXX)

Danto (2019) relata que dois meses antes do armistício que sacramenta o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, Freud, no V Congresso Internacional em Budapeste, convoca os psicanalistas a dar início àquelas "instituições ou clínicas ambulatoriais nas quais o tratamento será gratuito. O pobre deve ter tanto direito à assistência para sua mente quanto dispõe agora do auxílio oferecido pela cirurgia a fim de salvar a sua vida".

Por que temos tão pouca informação sobre esse Freud político? O que houve com as instituições que ficaram décadas fechadas para a comunidade mais carente de recursos para pagar uma análise?

Permaneço atenta aos métodos possíveis usados na destruição de minha criatividade, e assim pensar nessas questões e em outras para as quais faltou espaço aqui.

No Congresso Brasileiro em Belo Horizonte a sala foi pequena para o número de pessoas interessadas em conversar sobre o "psicanalista como ser político". A participação foi ativa e intensa de quem lá esteve. E nem estávamos diante de uma perspectiva tão sombria como esta que vivemos agora, com crises extremadas na Saúde, com a pandemia, e na política nacional.

Diante de tantas incertezas, no Brasil e no mundo, temos que redobrar as questões que realmente importam para a expansão da psicanálise. Entre o trabalho - como membro filiado - até este esboço provisório, já membro associado, continuo desejando não esquecer que foram muitos fogos, muitos territórios conquistados ao meu mar de dúvidas, que não se esgota. Paradoxalmente, não conseguiria aquilatar a aventura infinita neste eterno tornar-me analista, sem me provar e sem me iniciar na Instituição. E é esta chama de inquietude que me interessa manter acesa.

Valho-me constantemente da estranheza como manutenção da chama simbólica que anima a fé na psicanálise.

Da inquietação que nos ajuda a plantar dúvidas e cuidar bem para que delas emerja um novo e robusto porvir.

 

Referências

Bion, W. R. (1974). Conferências brasileiras 1. Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (1991). A atenção e interpretação: o acesso científico à intuição em psicanálise e grupos (P. D. Corrêa, Trad.). Imago.         [ Links ]

Bollas, C. (1998). Sendo um personagem. Revinter.         [ Links ]

Bueno, F. S. (1974). Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa. Brasília. [o nome da editora é Brasília, e é ou era de São Paulo]         [ Links ]

Danto, E. A. (2019). As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social, 1918-1938 (M. Golstajn, Trad.). Perspectiva. (Coleção Estudos)        [ Links ]

Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização (P. C. de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Grotstein, J. (2010). Um facho de escuridão. Artmed.         [ Links ]

Kernberg, O. (1996). Trinta métodos para destruir a criatividade dos candidatos a psicanalistas. Livro Anual de Psicanálise, 12,151. Escuta.         [ Links ]

Salomão, M. L. (1998). Talento e sorte: vicissitudes da formação psicanalítica. In Anais do Pré-congresso da OCAL, 1998. (não foi publicado)        [ Links ]

Viñar, M. & Viñar, M. (1992). Exílio e tortura. Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 2/6/2020
Aceito em: 30/6/2020

 

 

1 Texto baseado na mesa-redonda "O psicanalista como ser político", que fez parte do XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Belo Horizonte em 2019.

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