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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo jan./jun. 2020

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

Bacurau, “bacurando-me”, “bacurando-se”1

 

Bacurau, “bacurando-me”, “bacurando-se”

 

Bacurau, “bacurando-me”, “bacurando-se”

 

Bacurau, “bacurando-me”, “bacurando-se”

 

 

Amneris Maroni

Psicoterapeuta. Professora Doutora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH, Universidade de Campinas – UNICAMP. Autora de diversos livros, entre eles Vestígios: epifanias e individuações; Fotografando o invisível: ensaios de psicanálise, cinema e literatura; Jung: individuação e coletividade; Traces: epiphanies and individuations. São Paulo / amneris@plugnet.com.br

 

 


RESUMO

Você já viu Bacurau? Não? Você já reviu Bacurau? Essas perguntas continuarão sendo repetidas entre quem viu, nunca viu, reviu ou não reviu o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Alegoria, utopia, distopia, drama, suspense, ficção? Bacurau provoca perguntas, respostas, dúvidas e certezas. É o Brasil que dará certo um dia; é apenas um "western-rapadura" onde oprimidos se vingam de opressores; é um libelo de resistência, de reconstrução de uma comunidade e seus moradores; de um país e seus habitantes. Bacurau produz ecos e respostas presentes em fatos históricos e, também, no futuro, a luta contra a escravidão; é a guerra de Canudos com o Conselheiro e seus seguidores. É o Estado Novo de Vargas e a ditadura dos generais pós-1964. É a luta contra uma elite corrupta e secular. Bacurau é utopia, uma utopia diferente, pois o protagonismo é da comunidade: comunidade individuada-e-individuante.

Palavras-chave: indivíduo, grupos sociais, comunidade, individuação, metaestabilidade, distopia, utopia


ABSTRACT

Did you see Bacurau? No? Did you see Bacurau again? These questions will continue to be repeated among those who saw, never saw, saw again or did not see the movie by Kléber Mendonça Filho and Juliano Dornelles. Allegory, utopia, dystopia, drama, suspense, fiction? Bacurau elicits questions, answers, doubts and certainties. It is the Brazil that one day will succeed; is just a “western rapadura” where the oppressed take revenge of the oppressors; it is a lampoon of resistance, of reconstruction of a community and its residents, of a country and its inhabitants. Bacurau produces echoes and answers present in historical facts and also in the future; the struggle against slavery; it is the War of Canudos with Conselheiro and his followers. It is Vargas's Estado Novo and the Generals' dictatorship post 1964. It is the struggle with the corrupt and secular elite. Bacurau is utopia, a different utopia, because the antagonism is of the community: individuated community that individuates.

Keywords: social groups, individuation (psychology), communities, collective behavior


RESUMEN

¿Has visto Bacurau? ¿No? ¿Has analizado Bacurau? Estas preguntas continuarán repitiéndose entre aquellos que vieron, nunca vieron, analizaron o no la película de Kléber Mendonça Filho y Juliano Dornelles. ¿Alegoría, utopía, distopía, drama, suspenso, ficción? Bacurau causa preguntas, respuestas, dudas y certezas. Es el Brasil que funcionará algún día; es solo un “western-rapadura” donde las personas oprimidas se vengan de los opresores; es un libelo de resistencia, de reconstrucción de una comunidad y sus residentes; de un país y sus habitantes. Bacurau produce ecos y respuestas presentes en hechos históricos y también en el futuro; la lucha contra la esclavitud; Es la guerra de Canudos con el Consejero y sus seguidores. Es el Estado Nuevo de Vargas y la dictadura de los generales posteriores a 1964. Es la lucha contra una élite corrupta y secular. Bacurau es una utopía, una utopía diferente, porque el protagonismo es el de la comunidad: comunidad individuada e individuante.

Palabras clave: individuo, grupos sociales, comunidad, individuación, distopía, utopía.


RÉSUMÉ

Avez-vous déjà vu Bacurau ? Non ? Avez-vous déjà revu Bacurau ? Ces questions continueront à être répétées parmi ceux qui l'ont vu, ceux qui ne l'ont jamais vu, qui ont revu ou pas le film de Kléber Mendonça Filho et Juliano Dornelles. Allégorie, utopie, dystopie, drame, suspense, fiction ? Bacurau engendre des questions, des réponses, des doutes et des certitudes. C'est le Brésil qui réussira un jour ; c'est juste un « western-rapadura » où les opprimés se vengent des oppresseurs ; c'est un libéllé de résistance, de reconstruction d'une communauté et ses habitants ; d'un pays et ses citoyens. Bacurau produit des échos et des réponses présents aussi bien dans les faits historiques que dans le futur ; la lutte contre l'esclavage ; c'est la guerre de Canudos avec Conselheiro et ses partisans. C'est le «Estado Novo» de Vargas et la dictature des généraux post-1964. C'est la lutte contre une élite corrompue et séculaire. Bacurau est utopie, une utopie différente, puisque le protagonisme est celui de la communauté: communauté individuée-et-individuante.

Mots-clés: individu, groupes sociaux, communauté, individuation, métastabilité


 

 

Bacurau, filme aclamadíssimo e muito premiado, de Kleber Mendonça Filho e de Juliano Dornelles (2019), deu margem a um sem número de comentários, resenhas, debates, polêmicas. Um elogio à violência? Incógnita? Filme de resistência? Bacurau é pergunta ambulante, quer ganhar sentidos e mais sentidos, ele é fonte. Drama, suspense, ficção científica, western, ação...

Li muitas boas resenhas e comentários de grandes intelectuais, destaco duas em particular: Rodrigo Nunes (2019), em El País, e C. Dunker (2019), no seu canal no Youtube.

O professor Rodrigo Nunes nos confronta com uma abordagem algo sedutora: Bacurau encenaria para nós uma "fantasia vingativa", produzindo uma catarse naqueles que assistem ao filme e, então, essa emoção despertada daria conta de seu impacto e do porquê Bacurau (Mendonça Filho, 2019) nos arrasta inapelavelmente. É a vingança que ronda os "involuntários da pátria", para nos valermos de uma expressão de Eduardo Viveiros de Castro (2017): os indígenas, os camponeses, os favelados, os sem-teto, os sem-terra. Rodrigo Nunes traz muitos bons argumentos para sua tese: a atual fase do capitalismo produz uma gigantesca massa populacional sem direito algum, excluídos do sistema, quer do mercado, quer do Estado. A "fantasia vingativa", para Rodrigo Nunes, nutre-se da dissolução do pacto tácito entre governantes e governados que, desde o século XVII, estabelece que em troca de potencializar a vitalidade econômica dos governados, os governantes assumem o dever de fazer viver (através de políticas de saúde, políticas trabalhistas etc.). Bacurau aponta para uma virada abertamente necropolítica do capitalismo. Neoliberalismo na sua versão mais tenebrosa. Genocídio. Bacurau é um ensaio nessa direção, ao se transformar em um parque de caça humana para turistas. A resposta dos moradores de Bacurau é a "fantasia vingativa". Pura catarse. É o futuro.

 

 

Para Dunker, Bacurau é uma alegoria e então comporta várias temporalidades: é Canudos, é a escravidão, é o Estado Novo, a ditadura militar... Tudo acontece ao mesmo tempo, em uma espécie de transmissão silenciosa do trauma, aquilo do qual não se pode falar. Para Dunker, Bacurau é alegórico no sentido de Walter Benjamin, vale dizer: é uma maneira de olhar a história e com esse olhar compreender a gramática que a compôs e que já está a se completar. Apreender o que vem de longe no sentido benjaminiano: promessas não cumpridas, futuros soterrados: utopia de séculos atrás que foi enterrada, sonhos de futuro podendo ser retomados. Os diretores de Bacurau valeram-se da alegoria como uma estratégia para abordar o traumático em nosso país, o extermínio contínuo, sua gramática. E então nos convocam para a cura e o sonhar. Somos capazes de sonhar. É utopia.

Seriam essas interpretações tão indutivas a ponto de levar o leitor à compreensão fechada, definitiva, do filme? Comentários críticos apontam sempre numa determinada direção interpretativa, indicam caminhos, ao mesmo tempo em que podem nos fazer passar ao largo de outros, mesmo que não intencionalmente. Certo mesmo é que filme o exige mais de todos os críticos, daí as interrogações recorrentes sobre o "ver e o rever" Bacurau, uma obra viva, rebelde, ao olhar, aos olhares. Essa provocação constante da obra é que possibilita a escolha de outros caminhos interpretativos, como o que sigo aqui.

 

Distopias e utopias

Todos concordam em um ponto: Bacurau é o futuro, tem algo de utópico, não se restringe à distopia como outros filmes que nesse ano fizeram-lhe companhia, entre eles, Coringa, de Todd Phillips (2019), que também mistura gêneros. Nesse filme, o principal personagem, Arthur Fleck (Joaquim Phoenix), é submetido a um permanente reality show de opressão e humilhação. O diretor deixa claro que o mal não reside em Arthur, mas no neoliberalismo, na divisão do mundo social em winners (vencedores) e losers (vencidos), tendo como cenário uma Gotham City decadente e cheia de lixo. E nela uma figura recente emerge, o "empreendedor de si mesmo", como palhaço, sem direitos, sem assistência médica psiquiátrica, excluído, pobre e convidado à sarjeta, ao crime. Tudo isso misturado a um claro culto às celebridades.

 

 

A loucura de Coringa é então a loucura do mundo em que vivemos. Real e imaginário confundem-se para Fleck e, claro, também para os espectadores obrigados a fazer revisões e correções, mantendo-se na incerteza até o final e mesmo depois do final. E Arthur delira em cenas de glória e de sucesso, desejando tornar-se uma celebridade junto a Murray Franklin (Robert de Niro). Uma vez convidado a participar de seu programa preferido, finalmente, Arthur Fleck transforma-se em Coringa e sua loucura torna-se contagiosa. Gotham City é incendiada por homens com máscaras de palhaço. Máscaras que não escondem uma verdade, mas tornam todos anônimos, sem identidades. Ninguém. É a revolta do humilhado "empreendedor de si mesmo", último achado subjetivo do capitalismo em colapso. Solitários, algo anárquicos, os mascarados palhaços espalham em sua revolta o que tem no coração: ressentimento, ódio, alienação, violência.

Temos ainda Parasita, do diretor Bong Joon-ho (2019), que é também francamente distópico e também crítico ao neoliberalismo, na sua faceta mais cruel, a da desigualdade social. A trama é tecida por espe-lhamento entre duas famílias: os Kim, pobres, habitantes de um subsolo, argutos, malandros e unidos; e os Park, abastados, habitantes de uma luxuosa mansão, ingênuos e desatentos. Comédia, sátira social, suspense e terror, esse filme nos captura pela mágica de Bong: quem de nós - pobres, classe média baixa, classe média "média" - não têm uma parte de si que mora no porão, no subsolo? Identificação feita, vamos soçobrando nas mãos do hábil diretor.

Como os Kim, certas partes nossas - moradoras do subsolo - invejam, ressentem e querem algum tipo de vingança contra os muito ricos. Muitos de nós ultrapassam essa fase e percebem que por aí não há saída, não há ação política. Os Kim quase perceberam que por meio desses afetos não haveria saída. A tempestade foi esse momento de reflexão. Se o filme tivesse parado na chuva que despenca do céu coreano, com efeitos diferentes para os habitantes do subsolo e para os que habitam a luxuosa mansão, o filme imporia a todos uma contundente reflexão. Sairíamos do cinema com um pensamento não pensado, que exigiria de todos nós, moradores do subsolo, ser pensado e que assim resumimos: inveja, ressentimento e vingança não propiciam saídas políticas.

 

 

Planos com esse tipo de afeto não produzem uma verdadeira ação. Bong, porém, nesse exato instante, apresenta uma reviravolta no roteiro e, nessa viravolta, em vez de herdarmos juntos com a família Kim, um pensamento não pensado sobre a inveja, o ressentimento e a vingança, somos repostos no drama sem saída do neoliberalismo, com seus sonhos não sonhados, que nos transformam em mercadorias. Caímos de novo na inveja, no ressentimento e na vingança. Mas, ainda assim, Parasita mantêm-se crítico, e crítico por trazer à tona a distopia em que vive a Coreia do Sul e, por extensão, o capitalismo. Ambos os filmes são distópicos e nos agradam por flagrar a distopia em nós mesmos e globalmente. Bacurau não é assim: o futuro e a utopia são a sua marca, e são elas que nos convocam.

 

Bacurau, "bacurando-me", "bacurando-nos"

Ninguém duvida também que Bacurau está estranhamente falando de Brasil; não há quem não se reconheça nele, sendo brasileiro. Mas, por quê? Pelas muitas pistas deixadas pelos diretores do filme? Referências e mais referências teriam o poder de gerar esse reconhecimento maciço? Fatos históricos são rememorados em Bacurau, vestígios de estilos passados. Me deliciei, rememorando a Tropicália, o moderno e o muito antigo, o chique e o cafona juntos. E o Glauber Rocha, também não estava lá presente? E Macunaíma, o herói sem nenhum caráter? A trilha musical, com certeza, ajuda a construção do clima e da atmosfera Brasil: Sérgio Ricardo (Bichos da Noite); John Carpenter (Night); Geraldo Vandré (Réquiem para Matraga) e Gal Costa, entre outras canções.

Corro a recolher mais indícios, sinais largados como iscas pelos diretores. Se alinhavar todos esses detalhes, sinais, iscas, consigo explicar/ compreender Bacurau. Em vez disso, depois desse trabalho de recolhimento, sinto que o perdi de vez. Qual foi a mágica para gerar tamanha proximidade, quiçá, reconhecimento? Matutando, tive um insight: talvez o nome correto não seja identificação. Não nos identificamos com nenhum personagem, nem com a matança, nem com a violência. Se Bacurau nos "pegou", não foi por identificação.

Vencida, descanso e penso: foi outro o processo. Bacurau pede outra dança, um movimento diferente: é preciso "bacurar-se" com Bacurau. Nem explicação, nem compreensão, mas atravessamentos; é preciso que nos deixemos atravessar, tocar por Bacurau.

O filme conta com uma atmosfera emocional que sim, dizemos, é Brasil. E essa atmosfera emocional evoca e convoca a diferenciação. Bacurau fez-se presente e me habita, não por identificação, mas por diferenciação. Quando diferenciamos algo de nós mesmos, somos também parte dessa diferenciação e, ao diferenciar e nos diferenciarmos, criamos uma nova possibilidade interpretativa-existencial. Por meio da diferenciação, criamos, inventamos, individuamos algo. "Bacurando-me": individuando-me com Bacurau.

Uma cidadezinha no Nordeste, chamada Bacurau - nome de um pássaro, ave com hábitos noturnos e comum nos sertões brasileiros chamado pelos tupis de wakura'wa - essa cidadezinha desapareceu do mapa! Já não está mais lá, no virtual: o virtual venceu o real e esse é o primeiro aviso que temos. Adentramos a essa cidadezinha desaparecida, pelas mãos de Teresa (Bárbara Colen), uma das netas da líder espiritual, Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), matriarca idosa que faleceu. A senhora morreu, com muitos parentes pelo mundo, e a cidadezinha perdeu sua força espiritual, sua líder ancestral, corrente de infinitas gerações, corrente da própria vida, feminina, tecedora de gerações. Matriarcalismo. O elo afetivo de Bacurau arrebentou. Esta morte e este enterro já nos sinalizam que a cidadezinha ameaça colapsar sem sua unidade afetiva, que a líder representa, sem os seus afetos que ela, a líder, guarda.

Nós expectadores vamos com Teresa e assim passamos a ter contato com a cidadezinha do sertão, com seus moradores. Essa apresentação é longa, e o intuito dos diretores parece-me claro agora: quer que nos sintamos parte de Bacurau, um de seus moradores. Sim, porque uma comunidade -esse é o melhor nome para Bacurau - é constituída por afetos, hábitos, costumes e mitos. Vive deles. Ainda que esta comunidade, a de Bacurau, seja algo atípica: como já dissemos, evoca e convoca diferenciações. Atmosfera emocional singular: Brasil. Bacurau é fictícia, ela não existe, é lugar nenhum, é utopia - cujo significado etimológico é exatamente "lugar nenhum". Um mundo possível. E se dá em um futuro recente, tempo possível para além do presente. Utopia.

Depois do enterro, continuamos a conhecer Bacurau dando as mãos para Teresa e nos familiarizamos com a moça da venda, o tocador de viola, as prostitutas, a médica, o protetor, um líder que não manda nada, recomenda apenas. Não raro, os moradores chupam uma espécie de bala, uma droga, que só eles conhecem, e a droga funciona, ela mesma, como um elo de ligação entre os membros da comunidade. Todos os comentadores de Bacurau concordam em um ponto: o protagonista é a comunidade e não as pessoas, os indivíduos. Uma comunidade singular que patrocina diferenciações.

Íntimos já de Bacurau, fazendo a experiência de sua atmosfera emocional, nós expectadores vamos nos dando conta que Bacurau, o filme, é uma incógnita; seu vir a ser é mistério, pois não conseguimos imaginar e prever o roteiro. Estamos nas mãos dos diretores e dos roteiristas - que, aliás, são os mesmos - já citados. Não é possível antecipar o que acontecerá. Já somos Bacurau como expectadores-moradores e já nos tornamos o alvo do mistério. Nossa atenção e tensão aumentam muito, pois tudo pode acontecer e acontecerá à nossa revelia, à revelia dos moradores de Bacurau. Faremos a experiência de um acontecimento inaudito, não previsto, que permitirá um renascimento da pequena Bacurau.

Chegam os turistas paulistas (Karine Teles e Antônio Sabóia) que, estranhamente, não querem conhecer a pequena Bacurau! Vieram fazer o que ali? Perderam-se na trilha inaugurada pelos gringos, os imperialistas aliados dos paulistas, que caçam e matam os habitantes de Bacurau. Seu líder é Michael (Udo Kier). Bacurau é escolhida pelos imperialistas aliados da elite de São Paulo, e também aliados à elite local do sertão pernambucano, como parque de caça humano. Essa elite local ressoa e traz consigo os estrangeiros com muitas armas, tecnologia e menosprezo por qualquer afeto que una e mantenha a solidariedade entre as pessoas. Bacurau é um parque de caça humana, numa grotesca distopia. Por um momento.

A comunidade conta com um prefeito da elite local, Tony Júnior (Thardelly Lima), típico político moderno, filho do latifundiário local, que angaria votos em troca de migalhas - livros, remédios vencidos etc. - para os moradores. A elite local é corrupta e enganadora e, claro, aliada aos estrangeiros. Passivamente os moradores de Bacurau dividem as migalhas trazidas pelo candidato a prefeito que parece não adivinhar que tipo de comunidade é esta que pretende gerir. Eis que vamos nos dando conta, nós expectadores e já agora moradores de Bacurau, que essa comunidade conta com uma base de afetos-emoção e de mitos, elementos centrais da qualidade do interindividual que a constitui. Para Gilbert Simondon, Jung descobre, em sua análise do inconsciente (ou do subconsciente), os temas afetivos-emotivos que estão na base dos mitos.

Se é possível falar, em certo sentido, da individualidade de um grupo ou daquela de um povo, não é em virtude de uma comunidade de ação, descontínua demais para ser uma base sólida, nem de uma identidade de representações conscientes, amplas demais e contínuas demais para permitir a segregação dos grupos; é no nível dos temas afetivo-emotivos, mistos de representação e ação, que se constituem os agrupamentos coletivos. A participação interindividual é possível quando as expressões afetivo-emotivos são as mesmas. Os veículos dessa comunidade afetiva são, então, os elementos não somente simbólicos, mas eficazes da vida dos grupos: regime das sanções e das recompensas, símbolos, artes, objetos coletivamente valorizados e desvalorizados. (Simondon, 2020, p. 368)

Esse trecho de Simondon é muito pertinente para Bacurau: pode-se sentir esses temas e expressões afetivos-emotivos vendo o filme. Como uma/ um das expectadoras-moradoras, de repente, em um salto involuntário, partilhamos as mesmas expressões afetivas-emotivas, os mesmos símbolos, o mesmo amor pelo museu, pelo líder que não lidera, pelo gaiato tocador de viola, pela médica compassiva e alcoólatra. De repente somos uma das moradoras e também queremos defender Bacurau dos gringos, dos neolibe-rais armados até os dentes e portadores de muita tecnologia. Como sugerem Jung e Simondon, essas expressões afetivas-emotivas são uma espécie de chão do grupo ou da comunidade; é dela e através dela que podemos falar do interindividual.

Os moradores de Bacurau vivem também do espírito da velha senhora que morreu, a matriarca; vivem dos seus mitos; vivem do precioso Museu Histórico de Bacurau que conta a história do Norte e do Nordeste, dos cangaceiros, de Lampião e Maria Bonita. A comunidade de Bacurau conta com uma memória ancestral e é isto que faz dela "Um", ainda que por um momento, por um instante.

 

Individuação do social, alquimia generalizada

Aterrorizados com a presença estrangeira, com os paulistas, o povo de Bacurau rebela-se e chama Lunga (Silvero Pereira), unhas e olhos pintados, tatuagens, escondido e achado por Pacote/Acácio (Thomas Aquino). Uma troca de olhares longa e sedutora entre Lunga e Pacote. Diz Lunga: "estamos aqui como uma bicha do Che Guevara, passando fome nesta merda". Lunga, "cangaceiro queer de Bacurau", um transgênero, bandido e benfeitor ao mesmo tempo, chamado para defender Bacurau, o povo de Bacurau, dos atiradores genocidas (ressentidos/as, amargurados/as, fracas-sados/as) que nem sabem porque estão matando. Os moradores de Bacurau parecem não se importar com a sexualidade de Lunga2. Aliás, os demais moradores são também pouco ortodoxos: a médica Domingas (Sonia Braga) tem por companheira uma mulher que aparece trepando com outros homens em pelo menos duas cenas do filme. Pacote não disfarça a sedução e o tesão por Lunga e vice-versa, muito embora Pacote esteja "ficando" com Teresa, que o convoca: "vamos dormir juntos essa noite?" É esse espírito, é essa a atmosfera emocional, que talvez seja bem brasileira, e que nos convide também à liberdade e à diferenciação.

Lunga e seus amigos vão à cidade e a população de Bacurau arma-se, ela é Um, melhor dizendo, transforma-se no Um provisoriamente - em breve irão se diferenciar, mas, por um instante são Um, liderados pelo bem e pelo mal, por todos os gêneros, por todos os tempos: Lunga, portador da violência ancestral.

A comunidade de Bacurau mergulha na dissolução, deixa de ser Um; torna-se Nenhum, Ninguém. A violência corre solta, particularmente nas mãos de Lunga, o xamã matador. Os caçadores de homens, no parque de caça, chamado Bacurau, caem assassinados um a um. Impiedosamente, suas cabeças rolam. Um banho de sangue, sangue vermelho molhando o chão. Violência sagrada, que refunda a comunidade de Bacurau.

Ao pensar sobre a individuação de uma comunidade, de um grupo social, de Bacurau, a ideia de que o interindividual entre os moradores de Bacurau tem por base os afetos, as emoções, os usos, os hábitos, os costumes, o coração, é uma construção romântica e já está anunciada, de alguma forma, em Jean-Jacques Rousseau em Do contrato social (1762/1987). Contra a guerra de todos contra todos que percorre séculos, enunciada por Thomas Hobbes em Leviatã (1651/1974), passando por Margareth Thatcher que, cheia de si, afirmava "não existe isso que vocês chamam de sociedade, só existem indivíduos", até chegar ao momento atual: o do "empreendedor de si mesmo", abandonado pelo Estado, sem direitos, sem previdência, e em guerra, no mercado, contra outros "empreendedores", mascarados, anônimos, ainda que não usem máscaras. Contra Hobbes contra os que estão na guerra de todos contra todos, os românticos nunca abriram mão dos afetos, dos mitos. Jung (1953) não acompanhou nem Hobbes nem o pensamento liberal, mantendo-se fiel ao romantismo e ao espinosismo. Sua compreensão do social, do grupo, da comunidade, é afetiva e essa chave está presente em Gilbert Simondon. Ao individuar o conhecimento de Jung, Simondon propõe generalizar o esquema da alquimia (Chabot, 2002, p. 112), e nela e com ela, os grupos sociais, comunidades e sociedades também se individuam. Essa ideia implícita na obra de Jung, explode com Simondon.

Da mesma forma que os indivíduos em suas individuações, os grupos sociais e comunidades fazem também a experiência da dissolução de suas funções e estruturas e também experiencia o renascimento com novas funções e novas estruturas. De acordo com Simondon:

o que há de mais importante na vida dos grupos sociais não é somente o fato de eles serem estáveis, é que em certos momentos eles não podem conservar sua estrutura: eles devêm incompatíveis relativamente a si mesmos, eles se des-diferenciam e se supersaturam; esses grupos, exatamente como a criança que não pode mais ficar num estado de adaptação, se desadaptam. Na colonização, por exemplo, durante um certo tempo, há coabitação possível entre colonos e colonizados, e depois, de repente, isso não é mais possível, porque nasceram potenciais e é preciso que uma nova estrutura irrompa. E é necessária uma verdadeira estrutura, isto é, saindo verdadeiramente de uma invenção, um surgimento de forma para que se cristalize esse estado. (2020, p. 605)

Mas não é exatamente isso que Bacurau nos mostrou? Bacurau, utopia de outros mundos possíveis. Aliás, não estamos vivendo essa individuação no Brasil e no mundo? Claro que com bolsões petrificados, representados pelos terraplanistas, meninos vestem azul e meninas que vestem rosa, pelas bananas que o presidente dos mortos-vivos nos oferece todos os dias. Ao lado dos petrificados, a comunidade-mundo dissolve-se aos nossos olhos e é preciso, urgente, redescobrir outras categorias de pensamento que nos ajudem a pensar o que está em curso. Simondon clamava por uma "ciência humana", fundada sobre uma "energética" e não somente sobre uma morfologia.

De acordo com Simondon, "uma morfologia é muito importante, mas uma energética é necessária; seria preciso se perguntar porque as sociedades se transformam, porque os grupos se modificam em função das condições de metaestabilidade" [itálico do autor] (2020, p. 605). Lembremo-nos que a energia, para Simondon, não é estável, nem instável; é metaestável/pré-individual. Dito com outras palavras, resgatando os pré-socráticos, os chamados filósofos da natureza e, em particular, Anaximandro com a noção de apeiron,3 Simondon propõe uma filosofia genética; o que lhe interessa é a gênese dos indivíduos em geral. O filósofo francês articula três regimes de individuação (físico/vital/psíquico-coletivo-transindividual), que brotam do campo pré-individual/metaestável. Todos os indivíduos daí devêm, e devêm com os seus meios associados (pré-individual/metaestável) alimentando, a partir do vivo, individuações permanentes. Brotam do pré-individual e individuam-se sem cessar.

Os grupos, as comunidades, as sociedades transformam-se a partir da energética, pois como indivíduos carregam consigo esse pré-individual, essa metaestabilidade (excesso de potência, de tensão, de desmesura/desmedido, supersaturado) e, então, quando entram em discrepância consigo mesmos, individuam-se.

Simondon sugere uma "alquimia generalizada":

a Obra Magna começava por dissolver tudo no mercúrio, ou reduzir tudo ao estado de carvão - em que nada mais se distingue, as substâncias perdem seu limite sua individualidade, seu isolamento, após esta crise e este sacrifício advém uma diferenciação nova é o "Albefactio", e então a "Cauda Pavonis" que faz os objetos saírem da noite confusa, como a aurora que os distingue por sua cor. Jung descobre na aspiração dos alquimistas, a tradução da operação da individuação, e de todas as formas de sacrifício, que supõem retorno a um estado comparável àquele do nascimento, isto é, um retorno a um estado ricamente potencializado, ainda não determinado, domínio para a propagação nova da Vida (Simondon, 2020, p. 607).

É desse esquema generalizado de alquimia que, supomos, Bacurau deu uma bela mostra como grupo social, como comunidade de afetos-emoções e, por isso, é utopia do futuro recente de lugar nenhum, como aliás toda a utopia é.

A dobradinha Jung-Simondon - a partir das individuações - pode ser essa redescoberta de um conhecer, de um pensar "para além" da modernidade, para além do indivíduo moderno; para além da revolta de Coringa e da violência de Gotham City; para além da inveja, ressentimento e vingança da família Kim contra a família Park. Precisamos compreender o esquema de alquimia generalizada - individuações - que está em curso, as infinitas Bacuraus em movimento. Precisamos desesperadamente de novas categorias de pensamento. Simondon é uma chave importante, entre outros motivos, porque nos convoca para uma ciência humana, uma nova ciência humana que tem como base, não a forma desde sempre dada - o hylemorfismo aristotélico, que Simondon critica -, mas uma "energética metaestável"; energética que daria conta dos "processos de tomada de forma e que tentaria reunir num só princípio o aspecto arquetípico, com a noção de germe estrutural, e o aspecto de relação entre matéria e forma" (Simondon, 2020, p. 606).

Individuação é expansão da vida em vida! Essa expansão depende, todavia, da morte das velhas estruturas e das funções, para, já insistimos, renascer. Nesse processo encavalado de morte e renascimento (Pelbart, 2015), novas percepções e novas ações. Lunga e a comunidade de Bacurau deixaram isso muito claro. Não expandimos a vida, alargando o velho; expandimos a vida, morrendo e renascendo. A individuação traz consigo um novo mundo e, então, uma nova adaptação. Essa é a chave junguiana/ simondoniana, chave que também dá conta, para ambos, da espiritualidade.

Aprisionados vivos em uma espécie de porão de Bacurau, construído para esse fim, o chefe, matador neoliberal afirma "isso foi só o começo". Os matadores neoliberais, caçadores, no parque de caça humano, pretendem voltar, voltar uma vez mais, duas vezes, quiçá, muitas vezes. E, também, Bacurau há de se individuar vezes sem conta, diferenciando-se, singularizando-se, tomando uma nova forma, adaptando-se uma vez mais.

Bacurau depois da matança está de pé e volta a fazer o enterro de seus mortos, chamados pelos seus nomes: Mariza Leticia, Marielle... O prefeito Tony Junior teve um triste e merecido destino: mascarado, com a máscara do diabo, e cegado pela máscara, amarrado a um jegue, de trás para frente na montaria, adentra o sertão. Bacurau de pé, tendo ganhado a guerra, volta a compor-se, criar novos sentidos, novas estruturas e novas funções. Bacurau renasceu. Individuou-se como uma nova comunidade de afetos, depois de ter se dissolvido, e guardará na sua memória existencial, no Museu Histórico de Bacurau, mais um episódio de história e de batalhas.

Suponho que seja essa a utopia de Kleber Mendonça e Juliano Dorneles: a dissolução e a recomposição - que Jung-Simondon chamam de individuação - da comunidade afetiva/emocional chamada de Bacurau. Individuação do social, alquimia generalizada. Morte e renascimento. Bacurau está aqui no Nordeste brasileiro; está ali, no exterior; está em São Paulo; está no mundo. Bacurau é o futuro, é o amanhã, é utopia. E nós que assistimos Bacurau, "bacuremo-nos", vale dizer, aceitemos o mesmo processo de dissolução da nossa energia, das nossas forças, e uma nova recomposição das energias e das forças. Diferenciando-nos como comunidade de afeto e emoção, e como indivíduos, vamos nos individuando. Experiência do devir, aliás, já em curso, vaticinamos "essa terra ainda vai tornar-se um imenso Bacurau". Essa é a utopia!

 

Referências

Bong Joon-ho (Diretor). (2019). Parasita [DVD]. Pandora Filmes.         [ Links ]

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Recebido em: 31/5/2020
Aceito em: 27/6/2020

 

 

1 Origem do texto Bacurau: Grupo de Estudos Chistopher Bollas, orientado pela autora.
2 Em uma entrevista ao jornal El País, 27/9/2019, "Há uma revolução LGBT + no sertão", Silvero Pereira (Lunga) conta que, chamado pela Câmara Municipal de Fortaleza para receber o título de cidadão fortalezense, não preparou discurso e simplesmente disse: "Sou de escola pública, sou pobre. Sou a caricatura do Nordeste que passou fome e sede. Sou bicha, drag queen e artista. E eu acho que sou Brasil justamente por tudo isso" (Jucá, 2019).
3 Para Anaxímandro (610 a.C. - 546 a.C.), esse elemento primevo é o Ilimitado/Apeiron: matéria-prima, a partir da qual engendram-se seres limitados. Carregamos em nós mesmos o Ilimitado, do qual proviemos, e o Ilimitado nos permite "possíveis porvires". Trata-se então de uma redefinição do que compreendemos por Ser.

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