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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo ene./jun. 2020

 

RESENHA

 

Anotando a China: viagem psicanalítica ao Oriente

 

 

Sandra Lorenzon Schaffa

Membro efetivo e analsta didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) / sandralorens@gmail.com

 

 

 

Edição crítica: Fernanda Sofio
Editora: Editora Unifesp, 2019
Resenhado por: Sandra Lorenzon Schaffa

Último livro escrito por Fabio Herrmann, Anotando a China. Viagem psicanalítica ao Oriente poderia ser reconhecido como a realização mais audaciosa do projeto de ir à procura da psicanálise onde não parece estar. Esta frase, aqui sublinhada, é o subtítulo de outro livro de Fabio Herrmann, O divã a passeio, 1992.

Em O divã a passeio, o autor nos fazia abandonar o terreno conhecido do consultorio, conduzindo-nos em viagem, através de quatro ensaios psicanalíticos, por terrenos conceituais e geográficos não familiares: "pelo Norte da Índia, por alguma ilha do Pacífico - que é quase nenhum lugar e tempo algum - e ainda pelas margens do mar Báltico e pelas cercanias de Troia, conquanto esses dois últimos lugares apenas os visitemos através da literatura" (Herrmann, 1992, p. 7).

A trilogia Andaimes do real, primeiros livros, fundamentos do pensamento de Fabio Herrmann, corresponde a um trabalho de recuperação da unidade essencial da disciplina psicanalítica, em uma depuração, de um ponto de vista epistemológico, do pensamento freudiano, na qual o autor busca evidenciar a forma essencial do saber e da eficácia da clínica, de onde nasceu a ideia de ruptura de campo. O divã a passeio e os livros que vieram a seguir, A psique e o eu (1999) e A infância de Adão (2002), "dialogam com uma certa orla interior da invenção freudiana, onde ciência e literatura andam juntas" (Herrmann, 2002, p. 7). Encontram progressivamente os fundamentos da disciplina psicanalítica na ficção.

Anotando a China. Viagem psicanalítica ao Oriente apresenta essa mesma vocação de conquista extraterritorial do psicanalista. Mas aqui já não apenas propõe ao leitor o labor de deslindar a escrita extremamente refinada, irônica, aforística, que marca o estilo do autor, que assim se esquiva à assimilação ao discurso das escolas e doutrinas psicanalíticas correntes. Anotando a China introduz recurso novo à imagem, à sensação. Abandonando toda intenção textual explicativa, convida o leitor a aproximar-se do domínio das artes visuais. Mas um leitor menos atento terá meios de se deixar tocar pelo alcance psicanalítico-estético dessas notas poéticas fotográficas?

Fernanda Sofio apresenta algo que é mais que uma introdução. Aceita o desafio de situar a presente obra no contexto da perspectiva psicanalítica crítica do método da psicanálise tal como o autor o concebeu. Para abordar sua obra extensa, complexa, recorre a uma estratégia particularmente feliz. Percorre três teses acadêmicas de grande fôlego voltadas para a elucidação do projeto do autor sob ângulos distintos: a tese de Marilsa Taffarel, a de Leda Herrmann e a da própria Fernanda Sofio.

A tese de Marilsa Taffarel mostra que a análise funciona, apesar do uso dogmático das escolas, pelo efeito de ruptura, não pelo seu caráter explicativo. A interpretação trabalha buscando a ampliação das brechas, das falhas de sentido, até seu completo eclipse, com a subsequente desarticulação da estrutura que sustenta uma dada trama de sentido. Fernanda estende essa definição de interpretação ao domínio da fotografia, ao explorar o entrelaçamento da psicanálise e da arte.

Sofio refere-se à análise de Leda Herrmann, que postula, como central no pensamento de Fabio Herrmann, a ideia de dupla face método/absurdo fundamentando metodologicamente o fazer clínico, e caracterizando-o como um sistema crítico-heurístico, ou seja, correspondente ao desvelamento do método psicanalítico criado por Freud. Na teoria dos campos, destaca Leda Herrmann, o desvendamento do absurdo, operado pelo método interpretativo, corresponde a revelar/abalar as regras constituintes dos diferentes campos que sustentam as representações constitutivas da realidade e identidade que condicionam o sentido humano.

Para alcançar a virada em direção à arte que Anotando a China realiza, Sofio recorre a sua própria tese, Literacura, em que evidencia o "papel da literatura de ficção no engendramento das construções teórico-clínicas psicanalíticas" (Sofio, 2015, p. 27).

Pavimentadas assim as bases da apresentação do pensamento de Fabio Herrmann, lança sua nova proposição:

A questão em Anotando a China deixa de ser exclusivamente se a psicanálise pode ser pensada como literária, como literatura - ou como literacura -, e passa a ser apresentada também visualmente. No livro que temos em mãos, o leitor se depara com séries de imagens, nem sempre evidentes de imediato, em que o narrador não pretende convencer com argumentos, mas expressar por um meio artístico o que foi, e o que é no texto, sua relação com seu outro, neste caso, com a China e o Oriente. (Sofio, 2015, p. 12)

Apoiada no que teoriza como "fotografia psicanalítica", responde à questão "O que esse livro diz sobre a relação deste autor com a fotografia?" Observa que as imagens, principalmente em diálogo com o texto, revelam o oposto do que ele [Fabio Herrmann] chamou de "fotos de viagem", aquelas "tiradas quando se dá as costas ao real". Reconhece uma dimensão interpretante nas imagens oferecidas pelo autor: a fotografia tem em si algo do documento, mas com função interpretativa enquanto textos e imagens interpretantes -tramas entrelaçadas - que se interrogam e interrogam o receptor/leitor.

O livro de Fabio Herrmann, com a grande força poética de seu texto e suas imagens, propõe uma experiência inédita ao leitor: ruptura e extensão do alcance de uma obra psicanalítica. Viagem psicanalítica ao Oriente vem a público graças à edição crítica proposta por Fernanda Sofio. Sua análise guia o leitor por um entendimento em profundidade dessa obra em particular e de seu autor, Fabio Herrmann. O texto é fluente, sem deixar de ser complexo, exigindo um leitor preparado e interessado no universo da psicanálise e da arte. A edicão primorosa conta ainda com um prefácio de Leda Herrmann e posfácios de Renato Tardivo, Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro, que dialogam, olhando de perspectivas diversas, com a obra.

 

Referências

Herrmann, F. (1992). O divã a passeio. Brasiliense.         [ Links ]

Herrmann, F. (2002). A infância de Adão. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, L. (2007). Andaimes do real: a construção de um pensamento. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Sofio, F. (2015). Literacura. Psicanálise como forma literária. FapUnifesp.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 12/2/2020
Aceito em: 22/4/2020

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