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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dez. 2020

 

EDITORIAL

 

Os veios de ouro da formação psicanalítica

 

 

Ana Clara Duarte Gavião

Editora / jornaldepsicanalise@sbpsp.org.br

 

 

Nesta edição de número 99 concluímos o ciclo da gestão de 2017 a 2020, com o tema da formação psicanalítica mais uma vez em pauta, particularmente em seus "veios de ouro", metáfora inspiradora das aulas inaugurais mais recentes do Instituto da SBPSP.

A complexidade do tema justifica a vitalidade deste Jornal, concebido nos anos 1960 pelos pioneiros na expansão do pensamento psicanalítico na América do Sul e no Brasil e que, desde então, nos presentearam com este espaço científico que olha para as peculiaridades da transmissão de um corpo de conhecimentos cujo objeto não é sensorial, contando com analistas em formação em seu corpo editorial e também como autores de artigos publicados.

Na abertura da seção temática, vale acompanhar as proposições de Vera Regina J. R. M. Fonseca, com sensíveis elaborações sobre as funções institucionais exercidas na diretoria científica e, mais recentemente, como diretora do Instituto da SBPSP. No artigo "Como se cria uma casa?", é interessante observar como o "fantasma do autoritarismo", geralmente associado ao argumento da "infantilização" dos membros filiados pela diretoria, pode desviar o foco da responsabilidade institucional pela qualidade da formação, em seu compromisso ético voltado à prática clínica.

Sabemos que os determinantes inconscientes das ações humanas não podem ser percebidos sem abertura e grande disponibilidade para o contato com fenômenos desconhecidos, principalmente dentro de si mesmo, na rela-ção com o outro. A imersão no modelo de treinamento psicanalítico que privilegia a análise pessoal quase que diária é uma decisão pessoal tomada livremente, em que o regulamento institucional pode ser compreendido como facilitador do processo de desenvolvimento da função psicanalítica, à medida que o torna operativo, dinâmico e intensivo. Podemos indagar se a infantilização não estaria mais relacionada à desconsideração pela escolha de um modelo de formação, feita por livre e espontânea vontade.

Vera Fonseca pergunta: "Há falta de crença no método analítico, ou resistência a ele? ... Qual o grau de confiança da própria instituição no método analítico?" (p. 37).

As contribuições de Mario L. P. Corrêa em "Solilóquios com um fósforo queimado" e de Wilson de A. C. Franco e Daniel Kupermann em "Um lugar para pensar", na seção dedicada à formação, enriquecem o debate que seguirá de maneira aprofundada nos outros artigos e seções.

Agradeço a colaboração criteriosa e criativa da equipe editorial, nesta última e em todas as edições desta gestão, o que permitiu que a concepção de cada tema, ao longo desses anos, fosse vivenciada como uma espécie de "jogo psicanalítico" ou "brincadeira científica", em que a metapsicologia brota espontaneamente mediante o estímulo de experiências clínicas, artísticas e da vida em geral, compartilhadas em clima de cooperação e reflexão.

No exemplo deste número, como pode ser visto na Carta-convite, o jogo associativo grupal suscitou um curioso contraponto à imagem dos "veios de ouro" - fenômeno geológico em que o metal precioso pode ser visto e extraído das rochas em seu estado bruto; noutra perspectiva, surge o kintsugi, técnica japonesa de restauração de peças de cerâmica, que utiliza o ouro derretido para ligar os fragmentos.

Pelos canais preciosos da formação psicanalítica obtemos acesso a nossa própria mente e não apenas a teorias, conhecendo em nós mesmos a constante interferência do sistema emocional inconsciente: impulsos, desejos, sonhos e pesadelos... Por outro lado, como no kintsugi, desenvolvemos a função reparadora do ouro líquido, da preciosidade do conhecimento advindo da autopercepção intersubjetiva, instrumentalizado psicanaliticamente para integrar partes cindidas da mente, muitas vezes estilhaçadas por traumas típicos da clínica borderline e das psicoses, em que partes psíquicas desintegradas se apresentam como verdadeiros projéteis, impactando a função psicanalítica.

Em evento comemorativo dos 50 anos da AMF, Marcelo Viñar nos convida a oportunas ponderações acerca da clínica contemporânea, caracterizada pela substituição crescente da queixa neurótica clássica pelas "patologias do ato", o que implica estratégias técnicas inovadoras. Como pontua Viñar, os psicanalistas em formação pressionam a instituição por flexibilização do setting de sua análise pessoal, ao mesmo tempo que se sentem pressionados por demandas desconcertantes de seus próprios pacientes.

Patricio de Almeida e Alfredo Naffah Neto manifestam seu basta, em artigo que retoma a temática do tempo proposta no número anterior, agora pelo vértice da população idosa brasileira. E na sequência de questões sociais relacionadas à exclusão/inclusão, Helga S. M. Quagliatto et al. relatam uma experiência com modelos estéticos no espaço escolar. Para finalizar esta rica seção cultural, Maria Beatriz Bueno Domingues e Ada Morgenstern discutem a histeria numa perspectiva abrangente, enquanto traço da cultura contemporânea saturada de aprisionamentos narcísicos, potencializados pelas tecnologias das redes sociais.

Na seção "Temas livres" o olhar sobre a cultura continua instigante, passando pela literatura e pelos mitos, como em "Ciúme, o inferno do amante ferido", de Eva Maria Migliavacca e "Decameron", de Berta Hoffmann Azevedo, com articulações clínicas bastante instrutivas. A clínica segue viva nas colaborações de Daniel Schor e Nelson Ernesto Coelho Junior e ampliações de Maria Regina Cocco e Rosa Maria Tosta.

Com a contribuição de Marisa Pelella Mélega, a seção "Tradução" apresenta o capítulo "O impacto das ideias de Bion na forma de pensar de Donald Meltzer", do livro Studies in extended metapsychology. Clinical applications of Bion's ideas. Os comentários de Darcy Portolese e Celso Vieira de Camargo repercutem a estimulante discussão mobilizada pelo capítulo traduzido.

Não poderia faltar aqui a gratidão especial à querida Lidia Maria Chacon de Freitas, que nos deixou na etapa final de conclusão desta edição, transmitindo serenidade e sabedoria na elaboração da despedida... Seu amor pela psicanálise e sua parceria generosa permanecem inesquecíveis.

Desejando sucesso à nova equipe e à talentosa dupla de editores, Berta Hoffmann Azevedo e Ricardo Trapé Trinca, estamos certos de que o Jornal de Psicanálise se renova em benefício da pluralidade de pensamento, tão salutar a nossa comunidade. Bem-vindos, colegas, a esta gratificante função editorial!

Uma proveitosa leitura e um grande abraço.

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