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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dez. 2020

 

AULA INAUGURAL

 

Veios de ouro na formação psicanalítica

 

Golden veins in psychoanalytic training

 

Venas de oro en la educación psicoanalítica

 

Les veines d'or dans l'éducation psychanalytique

 

 

Izelinda Garcia de Barros

Membro efetivo, analista de crianças e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Médica formada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo / izebarros37@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste texto, escrito para a aula inaugural dos cursos de formação do Instituto de Psicanálise da SBPSP, a autora exemplifica o entrelaçamento entre os inícios da psicanálise e a infância através dos registros de algumas "crianças exemplares" daquela época. Com o caso do "Pequeno Hans" Freud inaugura uma dupla trilha na construção do conhecimento em psicanálise: a reconstrução com base no material clínico de adultos e a observação do desenvolvimento dessas mesmas configurações psíquicas nas crianças. Anos mais tarde, ao trazer o "infantil" para a sala de análise Melanie Klein tomou essa segunda escolha - a da observação iluminada pelos princípios da psicanálise - como seu projeto maior. A Sociedade de São Paulo oferece, ao lado da formação de adultos, o curso de formação em análise de crianças. Um convite aos colegas que iniciam sua jornada: não se esqueçam de olhar, quem sabe até levar as suas bateias para as bandas desse veio de ouro que nossa comunidade lhes oferece.

Palavras-chave: modelos de mente, psicanálise de adultos, análise de crianças, o infantil na sala de análise


ABSTRACT

In this text, written for the inaugural class of the training courses of the Institute of Psychoanalysis of the Brazilian Society of Psychoanalysis of São Paulo, the author exemplifies the intertwining between the beginning of Psychoanalysis and childhood through the records of some "exemplary children" of that time. With the case of "Little Hans" Freud inaugurates a double track in the construction of knowledge in Psychoanalysis: the reconstruction from the clinical material of adults and the observation of the development of these same psychic configurations in children. Years later, when Melanie Klein brought the "child" to the analysis room, she took this second choice - that of observation illuminated by the principles of Psychoanalysis - as her major project. The Society of São Paulo offers, alongside adult education, the training course in child analysis. An invitation to colleagues who start their journey: don't forget to look, who knows, maybe even take your batteries to the bands of this gold vein that our community offers them.

Keywords: mind models, psychoanalysis of adults, analysis of children, children in the analysis room


RESUMEN

En este texto, redactado para la clase inaugural de los cursos de formación del Instituto de Psicoanálisis de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de São Paulo, el autor ejemplifica el entrelazamiento entre el inicio del Psicoanálisis y la infancia a través de los registros de algunos "niños ejemplares" de esa época. Con el caso de "Juanito", Freud inaugura una doble vía en la construcción del conocimiento en psicoanálisis: la reconstrucción a partir del material clínico de los adultos y la observación del desarrollo de estas mismas configuraciones psíquicas en los niños. Años más tarde, cuando Melanie Klein llevó al "niño" a la sala de análisis, tomó esta segunda opción, la de la observación iluminada por los principios del psicoanálisis, como su proyecto principal. La Sociedad de São Paulo ofrece, junto a la educación de adultos, el curso de formación en análisis infantil. Una invitación a los compañeros que inician su camino: no se olviden de mirar, quién sabe, tal vez incluso llevarse las pilas a las bandas de esta vena dorada que les ofrece nuestra comunidad.

Palabras clave: modelos mentales, psicoanálisis de adultos, análisis de niños, niños en la sala de análisis


RÉSUMÉ

Dans ce texte, rédigé pour la classe inaugurale de l'Institut de Psychanalyse de la Société Brésilienne de Psychanalyse de São Paulo, l'auteur illustre l'entrelacement entre le début de la psychanalyse et l'enfance à travers les archives de quelques "enfants exemplaires"» de cette époque. Avec le cas du "Petit Hans", Freud inaugure une double voie dans la construction du savoir en psychanalyse: la reconstruction à partir du matériel clinique des adultes et l'observation du développement de ces mêmes configurations psychiques chez l'enfant. Des années plus tard, lorsque Melanie Klein a amené "l'enfant" dans la salle d'analyse, elle a pris ce second choix - celui de l'observation éclairée par les principes de la psychanalyse - comme son projet majeur. La Société de São Paulo propose, parallèlement à l'éducation des adultes, la formation de l'analyse de l'enfant. Une invitation aux collègues qui commencent leur voyage: n'oubliez pas de regarder, qui sait, peut-être même emmener vos batteries dans les bandes de cette veine dorée que notre communauté leur offre.

Mots-clés: modèles d'esprit, psychanalyse d'adultes, analyse d'enfants, enfants dans la salle d'analyse


 

 

À medida que juntava ideias e rascunhava notas em busca de um esboço que contivesse a miríade de associações que o título nos oferece, foram-se delineando, em um espelho projetivo, muitas imagens e lembranças do meu próprio caminhar pelas trilhas da psicanálise - e me vi cercada de crianças.

Mais do que uma escolha, foram as circunstâncias da vida que favo receram o meu encontro e a progressiva familiaridade com as crianças na sala de análise.

Quantas histórias, quantos episódios divertidos, tocantes, quantos momentos de profunda dor.

E, mais tarde, quantos encontros emocionantes quando meus pequenos, agora moças e rapazes garbosos, voltavam para me visitar, contar novidades, conversar sobre "aquele tempo" e, quase sempre, notar, admirados, que a mesma sala, "naquele tempo" lhes parecia muito maior...

E, assim, a esteira desse passado evocado com tanta alegria e luminosidade me encaminhou naturalmente para um verdadeiro veio d'ouro - a presença das crianças na história da psicanálise -, e, com ele, cintilou parelho outro veio d'ouro inesgotável na vida do psicanalista - a contação de casos clínicos.

A troca contínua das impressões e vivências ligadas a nosso trabalho diário cria um terreno comum que enriquece cada um de nós e o grupo como um todo. E tece fratrias que nos sustentam no exercício solitário e permanente de receber e conter as demandas do sofrimento humano.

A confluência dessas ideias - somando veios de ouro - me pareceu propícia para lhes oferecer algo que fosse mais próximo de uma conversa, uma contação da história, que ilumine o íntimo entrelaçamento entre os albores da psicanálise e a infância através dos registros de algumas "crianças exemplares" daquela época.

Comecemos pois, por Freud, ou melhor, por suas lembranças antigas, de quando ele ainda era Schlomo, um menino muito pequeno, resgatadas ao longo da análise de seus sonhos no período de 1896-1899.

Esse contínuo e exaustivo exercício de prospecção levaram-no a perceber a importância capital dos sonhos na vida psíquica, a valorizar o papel da sexualidade na sua própria infância e a formular as primeiras hipóteses sobre a universalidade do que conhecemos hoje como Complexo de Édipo.

Essas descobertas, que coincidiam com os achados que Freud também encontrava nas narrativas de seus pacientes, trouxeram-lhe a necessária convicção para tornar públicas suas descobertas.

Em 1900 foi lançada a primeira edição de A interpretação dos sonhos e, em 1901, uma versão mais enxuta do mesmo texto conhecida como Sobre os sonhos.

Nos anos seguintes continuou recolhendo material clínico e anotações que acabaram por lhe fornecer um mapa da estreita relação entre o desenvolvimento sexual do homem a partir da infância e a constituição do seu psiquismo.

Surgiu assim em 1905 o livro Os três ensaios sobre a sexualidade.

Nele Freud afirma que no trabalho com adultos pôde chegar, por reconstrução, a hipóteses sobre a sexualidade infantil em cujos componentes acreditava identificar as forças instintivas presentes em todos os sintomas neuróticos da vida posterior. E, como eixo organizador das operações psíquicas envolvidas, destacava a fundamental importância do Complexo de Édipo.

Postulava que a sexualidade humana evoluía, ao longo da primeira infância, por fases progressivas, da oralidade à genitalidade e que a evolução e resolução do Complexo de Édipo e seu corolário - o temor à castração - sustentavam a estrutura psíquica humana, garantindo seu funcionamento harmonioso. Mas, pensou Freud, como bom cientista que era, se esses processos acontecem na primeira infância, por que não buscar a sua confirmação através da observação direta das atividades das crianças em seu ambiente familiar?

Essa preocupação metodológica de Freud inaugurou uma dupla trilha na construção do conhecimento em psicanálise: a reconstrução com base no material clínico de pacientes adultos e a observação do desenvolvimento dessas mesmas configurações psíquicas nas crianças:

Amigos e colegas igualmente interessados nessas descobertas tão fascinantes acorreram com exemplos variados, e, em meio a essas contribuições, relatos referentes a crianças próximas ao círculo íntimo de Freud estão registrados nos anais da psicanálise.

Como ilustração clínica desse período selecionei dois desses casos: o pequeno Hans, um menino de 5 anos, e a menina Hilda, de 7 anos

A esperada confirmação de suas hipóteses a respeito do desenvolvimento da sexualidade humana e a importância capital do aparecimento progressivo da configuração do Complexo de Édipo na primeira infância, como Freud postulava, agora obtido pela observação do comportamento do pequeno Hans é o tema de Análise da fobia de um garoto de cinco anos (Freud, 1909/1915).

Não sei quem é mais encantador nesse relato: se Freud, entusiasmado com o sucesso de suas investigações, ou se a espontaneidade do pequeno Hans. Ambos fazem uma bela parceria!

Na verdade, o pequeno Hans já era um velho conhecido de Freud, pois seus pais pertenciam àquele círculo próximo de colegas interessados na investigação psicanalítica e em seu valor como técnica terapêutica.

Esses estudiosos estavam convencidos de que havia uma clara relação entre as neuroses e o tipo de formação cultural destinada às crianças. Curiosidade e imaginação, longe de serem valorizadas, eram vistas com preocupação e reprimidas em todas as suas manifestações.

Convencidos do valor de oferecer aos filhos uma educação mais saudável, os pais de Hans trataram-no, desde bebê, com bastante liberalidade, e ele tornou-se um "menino alegre, vivaz e de boa índole, mas em torno de 5 anos desenvolveu uma fobia aos cavalos, animais que até então apreciava e observava com grande interesse. Temia ser mordido ou derrubado por um deles.

Com a supervisão de Freud, seu pai assumiu a tarefa de tratá-lo analiticamente O registro minucioso do material clínico mostrou que o sofrimento do menino derivava do conflito edipiano. Essa constatação trouxe a prova muito esperada e desejada por Freud, pois ele viu ali confirmado tudo o que antecipara na Interpretação dos sonhos e nos Três ensaios, com base na análise de adultos.

Mas em um certo momento o tratamento de Hans estancou. Freud compreendeu que a conjunção do desejo incestuoso por sua mãe e um intolerável sentimento de culpa por odiar um pai tão amado desencadeou o temor da castração.

Então, em um único encontro presencial Freud pôde conversar com Hans sobre alguns detalhes da aparência dos cavalos que lembravam seu pai, e esse esclarecimento - uma verdadeira interpretação de material inconsciente - foi a guinada decisiva que abriu caminho para o desaparecimento do sintoma.

Aprecio particularmente a leitura das anotações dos diálogos analíticos entre pai e filho (Freud, 1909/2015) e, como uma mostra da vivacidade desse pequeno Édipo, transcrevo para vocês o trecho da conversa em que o menino confessa ao pai seu desgosto com o nascimento da irmã e seu desejo de que ela morresse. O pai, então, atalha que um bom menino não deseja isso, ao que Hans responde: "mas pode pensar isso"!

O pai insiste: mas isso não é bom.

A réplica espertíssima não se fez esperar, pois Hans logo ensina ao pai: "mas, quando ele pensa, é bom assim mesmo, para a gente escrever ao professor".

Em nota de rodapé, Freud comemora entusiasmado: "Bravo, Hans! Eu não esperaria de nenhum adulto uma compreensão melhor da psicanálise".

Passemos adiante.

Hilda, a única menina nesse grupo, era filha de Karl Abraham, um dos mais respeitados membros do círculo próximo de Freud e, como Hans, também foi ajudada por seu próprio pai, como psicanalista, na difícil elaboração das demandas edípicas próprias da idade.

Segundo as anotações de Abraham, desde o nascimento de seu irmão, quando Hilda tinha 3 anos, sua principal dificuldade era uma tendência irreprimível ao devaneio, o que, tendo se acentuado, passou a interferir nas suas atividades escolares

Naquela época os devaneios eram entendidos como fantasias masturbatórias, e assim, quando tinha 7 anos, embora não exibisse sinais de angústia, seu pai associava suas dificuldades em manter a concentração - seja nos deveres escolares, seja na realização de outras tarefas - como um sintoma ligado à masturbação e passou a entreter conversas quase que diárias com ela sobre suas fantasias antes de dormir.

Segundo Hilda contou ao pai, ela tinha muitos sonhos acordada quando ia se deitar; alguns agradáveis, em que apareciam, por exemplo, presentes para seu aniversário, mas também outros que eram feios, logo se misturavam neles. Eram ligados a um macaco que iria invadir seu quarto ou o aparecimento de uma fogueira perto da sua cama.

Às vezes chegava a pensar nessas fantasias com prazer, mas nem sempre. Numa dessas ocasiões foi surpreendida masturbando-se

A uma dolorosa operação de garganta realizada nessa época seguiram-se fantasias de um rato que poderia entrar na sua cama e mordê-la na barriga e também de um homem mau que poderia levá-la para a prisão.

Hoje em dia não teríamos dificuldade em associar essa fantasia a te- mores ligados à castração, a qual, com frequência, nas meninas toma a forma de um ataque aos preciosos conteúdos contidos no interior do corpo feminino. Naquele momento, entretanto, do desenvolvimento da psicanálise, em que as investigações giravam em torno da psicologia do sexo masculino, essa hipótese não poderia ter ocorrido ao pai, pois se acreditava que o correspondente ao complexo de castração nas mulheres estava ligado à ausência anatômica do pênis - a famosa inveja do pênis.

Mais tarde, Hilda, já psicanalista, pôde explicitar sua mágoa de não ter sido compreendida e acolhida naquela vivência psíquica tão marcante e assustadora da sua infância.

Ela comenta:

ele (o pai) não foi capaz de entender que (seus sintomas no pós-operatório) eram a revivência do terror que eu havia vivido nem pôde avaliar a ansiedade de castração que foi despertada. E continua... O conceito de ansiedade de castração já tinha sido descrito por Freud em trabalhos anteriores, mas era aplicado somente aos meninos, ainda que já se soubesse que as meninas tinham inveja do pênis. (Abraham, 1974, p. 87)

Nesse momento da minha história estamos em torno de 1912-1913.

Lentamente, nos anos seguintes, ao defender as vantagens do esclarecimento sexual das crianças e ao trazer à luz as interessantes fantasias sexuais das crianças, a psicanálise mostrou a presença dessas vivências pulsando no íntimo dos mais respeitáveis adultos, contribuindo para questionar as rígidas normas educacionais da época.

Muitas famílias, pedagogos e escolas passaram a buscar métodos mais condizentes com esses conhecimentos, os quais valorizavam a curiosidade, a investigação, a operosidade dos seres humanos.

Uma educação "psicanaliticamente informada" e seus desenvolvimentos trazem agora ao nosso convívio o pequeno Fritz, um menino de 5 anos, que hoje sabemos tratar-se de Eric, filho caçula de Melanie Klein.

O registro dessa modesta experiência educacional foi sua porta de entrada como membro da Sociedade Psicanalítica de Budapeste em 1919.

Posteriormente ampliado e publicado em 1920, esse artigo, intitulado "O desenvolvimento de uma criança", traz ao leitor uma dupla tão cativante quanto Freud/Hans em Análise da fobia de um garoto de cinco anos, publicado dez anos antes.

Na primeira parte do livro de Klein, intitulada "A influência do esclarecimento sexual e do relaxamento da autoridade no desenvolvimento intelectual das crianças" (1921/1996), a autora ilustra, por meio de anotações detalhadas, como a instrução simples, verdadeira e sem subterfúgios, correspondendo com verdade às perguntas das crianças sobre os fatos da vida, cria um ambiente propício para o desenvolvimento harmonioso na infância.

Ao contrário, uma educação repressiva constrange e deforma o interesse natural e a alegria das descobertas da infância. Melanie Klein descreve essa primeira parte como um "caso de educação com feições analíticas".

Ao leitor, Fritz parece mesmo uma criança alegre e curiosa; graças a essa educação mais liberal a espontaneidade de seus desejos aparece com clareza. Um exemplo bem divertido é relatado no texto: desapontado com a afirmação de que nem Papai Noel nem mesmo o coelho da Páscoa existiam, declarou que pensava em se mudar para a casa das crianças vizinhas, porque ele, Fritz, tinha visto o coelho da Páscoa correndo naquela direção.

Ainda com relação às coisas que existem "de verdade" e aquelas tão atraentes, mas que não existem, Fritz voltou com uma nova pergunta: mamãe, mas o serralheiro existe, não é mesmo?

Outro exemplo encantador diz respeito à sua surpresa diante da diferença de opinião dos seus pais a respeito da existência de Deus,

Enquanto o pai acreditava na sua existência, a mãe afirmava o contrário.

Fritz ficou bastante confuso e atrapalhado com essa divergência entre seus amados pais, como se nota no seguinte episódio:

Durante um passeio a irmã pediu ao menino que fosse perguntar as horas para alguém. Um homem ou uma mulher?, ele perguntou. Ela respondeu que não fazia diferença. Mas, replica ele, e se o homem disser que é meio-dia e a mulher disser que é uma e quinze? (Klein, 1921/1996, p. 29)

Apesar dos evidentes benefícios que esclarecimento sexual e o relaxamento da autoridade traziam para o desenvolvimento saudável e harmonioso dos seus filhos, Klein logo se deu conta de que a mente da criança já possui, por si só, fortes tendências à repressão relacionada, como nos casos anteriores mencionados, ao desenvolvimento do Complexo de Édipo.

Na segunda parte do artigo, intitulada "A resistência ao esclarecimento", avaliando o sofrimento do menino devido à intensidade das angústias associadas à complexidade da elaboração do Complexo de Édipo, Klein assume o tratamento psicanalítico de seu filho.

Como mulher e como mãe, descreve, como ninguém ainda tinha feito, as minúcias das interações entre ela-analista-observadora e Fritz-paciente-filho.

O texto final mantém as duas partes originais, certamente ampliadas e revistas. Mas a escolha de apresentar as observações sobre uma única criança oferece a continuidade para o esboço de um modelo do desenvolvimento que incluía, pela primeira vez, importantes achados sobre "o infantil", isto é, a descrição da economia psíquica no período que antecede o aparecimento do Complexo de Édipo. E esse foi o início da trajetória sem paralelos de Melanie Klein entre os seguidores de Freud.

Assim, devemos ao gesto comum de uma mulher e mãe interessada em oferecer a melhor educação para seus filhos o ponto de partida para a transformadora contribuição do pensamento kleiniano à teoria e técnica psicanalítica. Lá atrás enfatizei que uma dupla trilha converge para os aportes do conhecimento em psicanálise: a reconstrução com base no material clínico de pacientes adultos e a observação do desenvolvimento dessas mesmas configurações psíquicas nas crianças.

Ao trazer o "infantil" para a sala de análise fazendo a equivalência do brincar à atividade do sonho, "via régia" para o inconsciente, Klein tomou essa segunda escolha - a da observação iluminada pelos princípios da psicanálise como seu projeto maior (Barros, 2019).

O fato de ser mulher, mãe e uma psicanalista permitiu-lhe também fazer a leitura inaugural das questões ligadas às diferenças dos sexos, ao Édipo e às angústias de castração levando em conta a especificidade do feminino; como interpretar, por exemplo, a importância das diferenças dos sexos do ponto de vista do psiquismo da menina ou por que vias e como se configuram na mulher as ansiedades de castração.

A partir de Melanie Klein, as pequenas Hildas puderam sentir-se mais cômodas nos recintos da psicanálise.

Aliás, pensando bem, somos todos beneficiários de convergência desses dois caminhos presentes (reconstrução/observação) no modelo de mente Freud/Klein que preside a psicanálise tal como a conhecemos.

Nesse momento os grandes temas da psicanálise avançam em duas direções correlatas: o estudo da microscopia dos modos mais arcaicos da formação do psiquismo e a incidência de traumas precocíssimos que aí incidem, interferindo poderosamente com as operações ligadas à simbolização.

Do meu ponto de vista, enquanto a psicanálise de adultos, através da reflexão teórico-clínica sobre estados borderline em adultos, nos oferece hipóteses sobre esses estágios precoces da simbolização por meio da reconstrução; a psicanálise de crianças identificou-os pelo registro desses modos de funcionamento arcaico da mente ao vivo, pulsante, na análise de crianças com transtornos precoces do desenvolvimento.

Penso que esses dois caminhos concorrem agora para uma expansão interessantíssima da psicanálise ao nos fornecer cada vez mais instrumentos que possibilitam ir além na compreensão, tratamento e pesquisa dos distúrbios não-neuróticos, digamos assim, em adultos, adolescentes e crianças, que nos desafiam na psicanálise contemporânea.

Os estudos do casal Botella são um um belo exemplo da investigação combinada desses dois campos; recentemente Regine Prat trouxe aspectos interessantíssimos ligados às modificações técnicas sustentadas por esses avanços teóricos e clínicos.

Entre nós não posso deixar de lembrar a vitalidade, competência e operosidade do Grupo de Estudos sobre Autismo, o qual, com esse título inicial (agora, tea = transtornos do espectro autístico), existe há cerca de quarenta anos.1

Certamente é um dos grupos de estudos mais antigos da SBPSP e nos enriquece com um grande número de trabalhos publicados e premiados em congressos nacionais e internacionais.

Pelo empenho e qualidade de suas contribuições, tem garantida sua presença nos inúmeros encontros multiprofissionais de diferentes orientações teóricas sobre o assunto pelo mundo afora.

Já Ogden, Roussillon e mesmo Green, embora partindo das demandas da clínica, fornecem aportes no campo da reconstrução que permitiriam, a meu critério, uma interlocução bem mais produtiva com os achados da análise de crianças, já que o objeto último de estudo é o mesmo - traumas precocíssimos que interferem poderosamente nas operações ligadas à simbolização.

Vai aqui, a título de encerramento, um comentário bem-humorado e afetuoso.

A psicanálise de crianças chegou um pouco mais tarde às fileiras psicanalíticas, trazida por mulheres e crianças, crianças e mulheres, em uma algazarra inesperada, quem sabe perturbando assim a hegemonia masculina no campo.

Talvez por isso, ela ainda fique um pouco como a "segunda melhor escolha" mesmo aqui, na Sociedade de São Paulo, que já oferece, há muitos anos, ao lado da formação de adultos, o curso de formação em análise de crianças, trabalhando agora arduamente e de modo integrado nessas duas formações.

Não deixem de lado, não se esqueçam de olhar, quem sabe até levar as suas bateias para as bandas desse veio de ouro.

Espero que minha escolha tenha sido leve, atravessada por um sopro de esperança, nessa época especialmente sombria para nós, brasileiros.

E por fim, o convite de Vera Regina Marcondes Fonseca para que eu participasse da abertura do ano letivo do Instituto, ao lado da Nilde Parada Franch, reúne, em um só abraço, três grandes amigas, três analistas formadas nesta Sociedade, três entusiasmadas praticantes da psicanálise de crianças, desde sempre empenhadas em zelar pela integridade do legado de Freud.

Que esse abraço, como parte das nossas boas-vindas, se estenda a todos vocês!

 

Referências

Abraham, H. C. .(1974) Karl Abraham: An unfinished biography. Int. Rev. Psycho-Anal., 1,17-72.         [ Links ]

Barros, I. G. (2019). Melanie Klein - Autobiografia comentada. In A. Socha (Org.), Melanie Klein mulher, mãe, psicanalista (pp. 167-184). Blucher.         [ Links ]

Freud, S. (2015). Análise da fobia de um garoto de cinco anos (O pequeno Hans). In S. Freud, Obras completas (Vol. 8, pp. 123-284). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1909)        [ Links ]

Klein, M. (1996). O desenvolvimento de uma criança. In M. Klein, Amor, culpa e reparação (pp. 21-75). Imago. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

 

 

1 A busca de um protocolo para avaliar a evolução do tratamento psicanalítico de crianças com autismo (Prisma) está em andamento sob a responsabilidade de oito participantes desse grupo.

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