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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dez. 2020

 

AULA INAUGURAL

 

Os veios de ouro da formação psicanalítica

 

The golden veins of psychoanalytic training

 

Las venas de oro de la educación psicoanalítica

 

Les veines d'or de la formation psychanalytique

 

 

Nilde J. Parada Franch

Analista didata e de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Chair do Comitê de Psicanálise de Crianças e Adolescentes da IPA. São Paulo / nildefranch@gmail.com

 

 


RESUMO

A autora conceitua o processo psicanalítico como aquele que se passa entre analista e analisando no encontro de duas mentes que se interpenetram buscando um vínculo de intimidade que propicie o desvelamento da singularidade do analisando. Essa singularidade é "garimpada", discriminando o que é genuíno de seu ser daquilo que é resultado de identificações introjetivas e daquilo a que é submetido pelas gerações anteriores. A autora enfatiza a análise pessoal como o "veio de ouro" da formação de um psicanalista.

Palavras-chave: singularidade, vínculo, transgeracionalidade, formação analítica, análise pessoal


ABSTRACT

The author conceptualizes the psychoanalytic process as one that takes place between analyst and analyzing in the encounter of two minds that interpenetrate themselves seeking a bond of intimacy that allows the unveiling of the analysand's singularity. This uniqueness is "mined", discriminating what is genuine in its being from what is the result of introjective identifications and from what it is submitted to by previous generations. The author emphasizes personal analysis as the "golden vein" of the formation of a psychoanalyst.

Keywords: singularity, bond, transgenerationality, analytical training, personal analysis


RESUMEN

El autor conceptualiza el proceso psicoanalítico como aquel que se da entre analista y analizando en el encuentro de dos mentes que se interpenetran buscando un vínculo de intimidad que permita develar la singularidad del analizando. Esta unicidad es "minada", discriminando lo genuino en su ser de lo que es el resultado de identificaciones introyectivas y de lo que está sometido por generaciones anteriores. El autor enfatiza el análisis personal como la "vena dorada" de la formación de un psicoanalista.

Palabras clave: singularidad, vínculo, transgeneracionalidad, formación analítica, análisis personal


RÉSUMÉ

L'auteur conceptualise le processus psychanalytique comme celui qui se déroule entre l'analyste et l'analyse dans la rencontre de deux esprits qui s'interpénètrent à la recherche d'un lien d'intimité qui permet le dévoilement de la singularité de l'analysant. Cette unicité est « minée », discriminant ce qui est authentique dans son être de ce qui est le résultat des identifications introjectives et de ce à quoi il est soumis par les générations précédentes. L'auteur met l'accent sur l'analyse personnelle comme « la veine dorée » de la formation d'un psychanalyste.

Mots-clés: singularité, lien, transgénérationnalité, formation analytique, analyse personnelle


 

 

Antes de entrar no tema proposto pela diretoria do Instituto, quero dirigir-me aos novos membros do Instituto que ora iniciam sua formação.

Talvez leve algum tempo para vocês se darem conta da influência que essa formação terá em suas vidas. Não apenas pelas horas investidas nas análises pessoais, supervisões, cursos, mas pela convivência com tantas e diferentes pessoas, pela experiência com diferentes grupos e suas distintas dinâmicas, e até mesmo pela possibilidade de participar da Associação de Membros Filiados ao Instituto (AMF). Terão oportunidade de fazer amigos, alguns que ficarão para toda a vida.

Esta é uma casa cordial, que sabe bem receber os que vão chegando.... Provavelmente vocês já tiveram uma amostra disso nos primeiros contatos com a secretaria executiva, com Adele, Suely e Fabiana, durante a inscrição e o processo de seleção. Já tiveram também uma reunião de recepção com a diretoria do Instituto.

A relação dos membros filiados com o Instituto mudou muito! Na época em que iniciei a formação, devido a razões conceituais e conjecturais, a diretoria do Instituto se mantinha bastante afastada dos então "candidatos", e quem fez o papel de anfitriã para meu grupo foi uma colega veterana, Sula Terepins, que nos convidou para um almoço em um dia de sábado na chácara de sua família, para nos conhecermos e também a outros colegas. Aproveito para agradecer publicamente sua disponibilidade e generosidade.

Essa experiência motivou-me, no momento em que assumi a diretoria do Instituto (2000), a pensar em um cerimonial de recepção aos novos membros do Instituto. Apresentei o projeto ao então presidente Marcio Giovannetti, que imediatamente o encampou, e, em fevereiro de 2002, tivemos a primeira Aula Inaugural, intitulada "Fernando Pessoa e a doença do Ocidente", proferida pela profa. Leila Perrone-Moysés.

Organizamos também a primeira reunião, em petit comité, com os novos membros filiados e a presença da presidente da AMF. Esse modelo tem se repetido até os dias de hoje.

 

Vamos ao tema proposto pela diretoria do Instituto

Ao tomar conhecimento do tema, eu li "O veio de ouro da formação psicanalítica", e pensei: sim, há um veio de ouro, a análise pessoal do analista. Tempos depois descobri meu ato falho; mas, embora eu reconheça o valor dos quatro eixos (análise pessoal, supervisão, teorias e participação institucional), penso que o veio de ouro é a análise do analista.

Julio Moreno (2016), analista da apdeba, em seu livro El psicoanálisis interrogado, se pergunta: o que buscamos em uma análise? Curar nossas neuroses? Tornar consciente o inconsciente? Uma explicação para nossos sofrimentos? Conhecer a si mesmo?

Com Moreno, eu diria: busca-se a singularidade do ser, aquilo que nos é próprio e singular. E por que essa singularidade deve ser procurada? Ela não é evidente por si só? Não vem em estado puro?

Não. Assim como o ouro, que precisa ser "garimpado", discriminado de outros metais, separado das impurezas e, para recuperá-lo, extraí-lo, é preciso que ele se apresente liberado, ou parcialmente liberado desses minerais, também a singularidade do ser necessita ser extraída de identificações espúrias.

Explico-me.

Especialmente desde a virada do milênio, tem havido crescente aceitação, por parte dos psicanalistas de diversas orientações teóricas, da noção de um psiquismo aberto para intercâmbio com o Outro, desde os inícios da vida. Com o Outro e seus Outros!

Esse Outro, que cuida da sobrevivência do bebê, que o protege do desamparo inicial, é também o Outro que o submete; submete-o a seus desejos, conscientes e inconscientes, a seus preconceitos, nele projeta seus conflitos, e o traumático transgeracional não elaborado. Assim, a mente do pequeno ser é constituída contando com as identificações introjetivas dos impactos resultantes das identificações projetivas daqueles Outros primordiais.

Desejos, angústias, medos, preconceitos, vivências traumáticas vão sendo projetados no recém-nascido, talvez até mesmo antes! Trata-se da transgeracionalidade, tema que tem sido objeto de estudos para a psicanálise. Citando Ana Rosa Trachtenberg et al. em seu livro Transgeracionalidade: de herdeiro a escravo:

A patologia nos defronta com uma espécie de legado transgeracional em que impera um funcionamento narcisista, sem respeito às diferenças e aos espaços subjetivos. Heranças arcaicas podem tornar-se poderosas, na forma de fantasmas que habitam um ou mais membros de um grupo, predominantemente o familiar, pela impossibilidade de elaborar um luto ou por falhas nas regras de filiação. (2013, p. 75)

Para ampliar a complexidade do processo de constituição psíquica, devemos levar em conta também a herança genética, os aspectos "animais" do humano e as condições socioeconômico-políticas. Não é difícil perceber as diferenças individuais desde o nascimento; basta observar os bebês de um berçário de maternidade! Daniel Stern trouxe grandes contribuições a esse respeito.

Assim constituído, aquele pequeno bebê, agora o "adulto" que nos procura para análise, vai começar uma nova experiência, que pode ser decisiva em sua vida. Como diz Isidoro Berenstein: "devenir otro, con otro". Uma nova parceria que pode levar a experiências transformadoras. Um trabalho de des-identificações se faz necessário para que o ouro da singularidade possa ser extraído das identificações introjetivas, daquilo que não lhe pertence originalmente.

Nesse processo, de sol a sol, realizado com coragem, alegria e sofrimento, vai-se procurando garimpar a singularidade. Aquele que busca conscientemente uma análise quer mudanças, quer deixar-se penetrar por um outro, que também será penetrado, pois todo analisando quer conhecer quem é esse outro, por dentro.

É um processo de interpenetração que vai encontrar muitas defesas, de parte a parte. Defesas se erguem para evitar uma possível intrusão desse Outro, desse Unheimlich, esse estranho estrangeiro, o inquietante!

É um trabalho longo que exige paciência, capacidade de espera e respeito pela dor psíquica, para que a análise não se transforme naquilo que Freud chamou de "análise selvagem".

Dessa interpenetração algo novo poderá surgir; essa parceria pode gerar algo novo, transformando o que fora anteriormente constituído, e nesse momento seria possível a criação de um vínculo. Para J. Moreno,

a palavra vínculo não expressa somente o que sucede quando dois aparelhos mentais trocam informações ou se reconhecem, mas afirma que no "entre eles", entre um e outro surgem encontros que geram produções vinculares capazes de transformações. (2016, pp. 106-107)

Esse encontro é diferente de uma relação social, ou contratual (Meltzer) decorrente do contrato social, em que mais reagimos ao Outro do que o conhecemos "de verdade". Esse é um grande diferencial na relação analítica, ou seja, buscamos o contato com a intimidade e humanidade do Outro.

Podemos viver uma vida toda ao lado de alguém, sem verdadeiramente conhecê-lo, sem saber o que vai em sua alma.

Para ilustrar essa questão relativa ao "conhecer" o outro, trago a citação feita por Julio Moreno no livro acima referido:

No Ato IV de A cantora calva, peça escrita por Eugène Ionesco (considerado mestre do teatro do absurdo), o autor mostra como as

absurdidades podem ser uma forma privilegiada de revelar profundas verdades. O absurdo implica um trânsito indireto que resulta na produção de sentido, outro modo de apresentação do ir e vir... Há ocasiões em que para chegar a um destino não é conveniente tomar o caminho direto, nem o que acreditamos ser o mais curto... (Moreno, 2016, 99-100)

Nesse Ato IV, dois personagens que Ionesco chama de Sr. e Sra. Martin sentam-se um frente ao outro, sem falar, no living da casa dos Smiths, seus amigos. Sorriem timidamente. Com voz lânguida e monótona, o Sr. Martin diz à Sra. Martin:

- Desculpe-me, senhora, mas me parece, se não me engano, que já a encontrei em algum lugar.

A Sra. Martin responde que também lhe parece tê-lo encontrado antes.

- Em Manchester, por acaso?, diz ele.

- É bem possível. Nasci em Manchester, mas não me lembro muito bem, senhor, não poderia afirmar.

- Deus meu, que curioso! Também sou originário de Manchester!

Ficam ainda mais surpresos quando sabem que ambos deixaram a cidade há mais ou menos cinco semanas em um trem, na segunda classe (reforçando o clima absurdo, Ionesco esclarece que na Inglaterra não há vagões de segunda classe nos trens). Descobrem, também, que viajaram no mesmo vagão e no mesmo compartimento. Ela expressa sua surpresa, mas ainda assim não se recorda dele.

Conferindo o número das poltronas, percebem que se sentaram um de frente ao outro.

O clima de estranheza aumenta quando se dão conta de que ambos moram na Rua Bronfield, em Londres, e no mesmo edifício! O Sr. Martin informa que mora no número 8, no quinto andar, ao que a Sra. Martin assombrada, comenta:

- Que curioso! Que estranho! Que coincidência! Eu também vivo no quinto andar, no apartamento 8, estimado senhor!

Comentam a disposição dos quartos, dos móveis, que é a mesma, mas mesmo assim, apesar de todas as coincidências, não se reconhecem, nem se recordam em que situação, se é que houve, podem ter se conhecido!

- Então, moramos na mesma casa, e dormimos no mesmo quarto, estimada senhora! Talvez seja aí que nos tenhamos visto, insiste o Sr. Martin. E continua: - Eu tenho uma filha que vive comigo. Tem 2 anos, é loira e linda, com um olho branco e outro vermelho. Chama-se Alicia.

A Sra. Martin diz que também tem uma filha de 2 anos, com um olho branco e um vermelho, e também se chama Alicia.

Segue-se um longo silêncio. O relógio, diz o libreto teatral, bate 29 vezes (outro absurdo: não há relógio que dê 29 badaladas!).

Depois de refletir longamente, Martin levanta-se com lentidão e, sem pressa, dirige-se à Sra. Martin, surpresa com o ar solene dele, e diz:

- Estimada senhora, creio que não cabem dúvidas, já nos vimos, e a senhora é minha própria esposa... Isabel! Voltei a te encontrar!

A Sra. Martin se aproxima do Sr. Martin, sem pressa, e se abraçam sem expressão. O relógio bate uma vez, fortemente (a badalada do relógio deve ser suficientemente forte para sobressaltar os espectadores), mas, ainda assim, os esposos não o escutam.

Nesse momento, Isabel exclama:

- Donald, é você, darling!

Sentam-se no mesmo sofá, abraçados e dormem.

Termina a cena IV.

Na cena seguinte, eles continuam abraçados em silêncio. Outra mulher, Mary, que trabalha na casa dos Smith, entra na cena lentamente, na ponta dos pés, e com um dedo nos lábios dirige-se ao público:

- Isabel e Donald estão agora demasiado contentes para poderem me ouvir. Portanto, posso revelar-lhes um segredo. Isabel não é Isabel, e Donald não é Donald. A prova é que a menina de que Donald fala, não é filha de Isabel, pois a filhinha de Donald tem um olho branco à direita e o vermelho à esquerda. A filha de Isabel tem um olho vermelho à direita e o branco à esquerda. Assim, todo o esquema de argumentação de Donald desmorona.

Na cena seguinte, a Senhora e o Senhor Martin separam-se e voltam a ocupar as poltronas do começo da cena IV.

Então, ele diz:

- Esqueçamos tudo o que aconteceu entre nós, e, agora que voltamos a nos encontrar, tratemos de não nos perdermos mais e vivamos como antes!

J. Moreno comenta:

O absurdo da situação que o Sr. e a Sra. Martin vivem - ou Isabel e Donald - somente pode ser compreendido como cada um não é quem pretende ser e que a insistência em ser um, imutável, é uma maneira de acalmar as incertezas das mudanças e ao mesmo tempo evitar novos acontecimentos, assim como de colapsar a possiblidade de gerar possíveis encontros. Um vínculo deve transitar por aquela mescla de apropriação e expropriação que Derrida chamou de exapropriação. A reiteração cotidiana do "mesmo" pode impedir a possibilidade de um encontro. E, ainda pior, não notar os encontros possíveis que não puderam acontecer. (2016, p. 102)

Podemos conjecturar que Ionesco, ao trazer a personagem Mary, está introduzindo a figura do terceiro, aquele que está suficientemente próximo dos acontecimentos para poder percebê-los, e suficientemente distante para poder dar significado a eles. Ela enfatiza a ideia de que o encontro não basta para eliminar as diferenças, não pode ser reduzido a uma questão de aparências; as diferenças persistem, e o conhecer ou reconhecer não explica o outro, nem transita por rotas conhecidas. Para tudo "continuar como antes", nada deve mudar, pois mudanças geram turbulência, e, então, melhor esquecer e escamotear as diferenças seguindo as normas contratuais dos encontros sociais e se afastando daquilo que poderia ser construído como uma relação íntima.

Para terminar, ressalto a especificidade da relação analítica, que, além de poder ser uma relação de intimidade com a humanidade de cada um, pode propiciar um verdadeiro encontro consigo mesmo, na presença de um Outro que é diferente, mas que tem condições de deixar emergir o singular, o próprio, contando com sua condição de continência, tolerância, respeito, de suportar a interpenetração, experiência transformadora com base em uma vivência vincular.

Eis por que considero a análise pessoal o veio de ouro da formação de um psicanalista.

 

Referências

Moreno, J. (2010). Ser humano: la inconsistencia, los vínculos, la crianza (3.ª ed.). Letra Viva.         [ Links ]

Moreno, J. (2016). El psicoanálisis interrogado: de las causas al devenir. Lugar.         [ Links ]

Sapisochin, G. (2019). Enactment: listening to psychic gestures. International Journal of Psychoanalysis, 100 (5),877-897.         [ Links ]

Trachtenberg, A. R. et al. (2013). Transgeracionalidade - de herdeiro a escravo: um destino entre gerações. Sulina.         [ Links ]

 

 

Agradeço a Vera Regina Marcondes Fonseca, diretora do Instituto, pelo convite e oportunidade de pensar sobre o tema.

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