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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo Jul./Dec. 2020

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

Só... Solidão...: Fronteiras entre a curva e a reta1

 

Alone... Loneliness: borders between curve and straight

 

Solo... soledad...: fronteras entre curva y recta

 

Seul... solitude... : limites entre la courbe et la ligne

 

 

Maria Cecília Pereira da Silva

Membro efetivo, docente, analista didata e de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Coordenadora da Clínica 0 a 3 - Intervenção nas relações iniciais pais-bebê e da Clínica Transcultural do Centro de Atendimento Psicanalítico da SBPSP. Membro do Departamento de Psicanálise com Crianças e professora do curso Relação Pais-Bebê: Da observação à intervenção do Instituto Sedes Sapientiae. Pós-doutora e doutora em Psicologia Clínica e mestre em Psicologia da Educação pela PUC-SP. São Paulo / mcpsilv@gmail.com

 

 


RESUMO

Com base no poema de Manoel de Barros "A reta é uma curva que não sonha", a autora descreve a capacidade de estar só, como uma série de curvas em espiral, e o sentimento de solidão, como uma reta sem curvas. Apoia-se em Winnicott, Bion e Klein. Ilustra com o caso de uma família haitiana atendida no setting da clínica transcultural e com o de um menino de 1 ano e 11 meses com indicadores de risco de desenvolvimento atendido no setting clássico de psicanálise com crianças. Assim, nas duas situações clínicas, apresenta como alternativa aos caminhos retilíneos, os caminhos sinuosos, pelos quais a construção de capacidade de estar só tem sido possível, sem que os elementos de angústia mais submersos e profundos sejam caçados ostensivamente, mas possam tomar corpo na sessão e, progressivamente, vir à tona, para serem transformados. Finaliza com uma história infantil que retrata o universo emocional da criança quando falha a relação de intimidade mãe-bebê. Nesta história a mãe reconhece suas falhas e repara os vínculos esgarçados, uma mamãe que tece as emoções promovendo um encontro emocional.

Palavras-chave: sentimento de solidão, psicanálise de criança, autismo, migração, capacidade de estar só


ABSTRACT

From "The line is a dream without curve", a Manoel de Barros' poem, the author describes the capacity to be alone as a series of spiral curves, and the feeling of loneliness as a straight line without curves. It relies on Winnicott, Bion and Klein. It illustrates with the attendance of a Haitian family attended in the setting of the transcultural clinic and the case of a boy (1 year and 11 months) with indicators of developmental risk attended in the psychoanalysis setting with children. Thus, in both clinical situations, it presents, as an alternative to the rectilinear paths, the winding paths, through which the building of being capacity has only been possible, without the most submerged and deep distress elements being hunted ostensibly, but can take shape and, progressively, have occasion to be transformed. It ends with a children's story that portrays the child's emotional universe when the mother-baby relationship fails. In this story the mother recognizes her flaws and repairs the broken bonds, a mother who weaves her emotions promoting an emotional encounter.

Keywords: feeling of loneliness, child psychoanalysis, autism, migration, capacity to be alone


RESUMEN

Del poema "La línea es una curva sin sueños", de Manoel de Barros, el autor describe la capacidad de estar solo como una serie de curvas en espiral, y el sentimento de soledad como una línea recta sin curvas. Se basa en Winnicott, Bion, Klein y Quinodoz. Ilustra con el cuidado de una familia haitiana atendida en el setting de la clínica transcultural y con el caso de un niño de 1 año y 11 meses con indicadores de riesgo de desarrollo atendido en el setting de psicoanálisis con niños. Por lo tanto, en ambas situaciones clínicas, presenta, como una alternativa a los caminos rectilíneos, los caminos sinuosos, a través de los cuales la construcción de la capacidad solo ha sido posible, sin que los elementos de busca más profundos y sumergidos sean cazados aparentemente, pero pueden tomar forma y, progressivamente, se destacan y tienen ocasión de transformarse. Termina con una historia infantil que retrata el universo emocional del niño cuando la relación madre-bebé falla. En esta historia, la madre reconoce sus defectos y repara los lazos rotos, una madre que teje sus emociones promoviendo un encuentro emocional.

Palabras clave: sentimento de soledad, psicoanálisis niño, autismo, migración, capacidad de estar solo


RÉSUMÉ

À partir du poème de Manoel de Barros « La droite est une courbe qui ne rêve pas », l'auteur décrit la capacité d'être seul, comme une série de courbes en spirale, et le sentiment de solitude, comme une droite sans courbes. Il s'appuie sur Winnicott, Bion et Klein. Il illustre avec la prise en charge d'une famille haïtienne servie dans le cadre de la clinique interculturelle et le cas d'un garçon de 1 an et 11 mois avec des indicateurs de risque de développement assisté dans le cadre de la psychanalyse avec enfants. Ainsi, dans les deux situations cliniques, il se présente comme une alternative aux chemins rectilignes, les chemins sinueux, à travers lesquels la construction de la capacité à être n'a été que possible, sans que les éléments d'angoisse les plus submergés et profonds soient ostensiblement chassés, mais ils peuvent prendre forme dans le session et progressivement surface, à transformer. Il se termine par une histoire pour enfants qui dépeint l'univers émotionnel de l'enfant lorsque la relation mère-bébé échoue. Dans cette histoire, la mère reconnaît ses défauts et répare les liens brisés, une mère qui tisse les émotions favorisant une rencontre émotionnelle.

Mot-clés: sentiment de solitude, psychanalyse enfantine, autisme, migration, Capacité d'être seul


 

 

A reta é uma curva
que não sonha.

(Manoel de Barros, 2013)

Em nossa clínica com crianças buscamos criar possibilidades para que elas possam brincar, sonhar e construir um continente com objetos pensantes que acolhem e fazem companhia quando elas estão sós. Parafraseando Manoel de Barros, eu diria que a solidão é uma reta sem curva, sem sonhos, uma reta sem um continente preenchido por objetos internos acolhedores e pela capacidade de manter vivos os sentimentos de esperança e de fé.2 E, ao mesmo tempo, poderíamos dizer que a capacidade de estar só depende de uma curva, ou de várias curvas em espiral, condição indispensável para os sonhos, as fantasias e para conter os objetos continentes e pensantes, precursora de nossa capacidade criativa.

Todo nosso trabalho clínico, então, será primeiro o de construir e criar um continente para abrigar os objetos capazes de conter e pensar ao longo da vida, para depois nos ocuparmos dos conteúdos (Ferro, 1995).

Como compreendo e discrimino a capacidade de estar só e o sentimento de solidão?

Apresento a curva e a reta e depois ilustro com duas situações clínicas.

 

Só...

Tanto Klein e Winnicott quanto Bion consideram que a introjeção de um objeto bom é condição sine qua non para a capacidade de viver só e elaborar o sentimento de solidão.

Para Winnicott (1958/1990, pp. 195-202), existem duas formas de solidão ao longo do desenvolvimento. A solidão essencial, intocável e indizível, silenciosa, inscrita na origem da vida. E outra mais elaborada que implica estar só, na presença de alguém, em um estágio muito inicial do desenvolvimento, quando a imaturidade do ego é compensada de modo natural pelo suporte do ego proporcionado pela mãe.

Nesse sentido, esse autor aponta para a importância da regressão materna, o estado de preocupação materna, para que a mãe se identifique com o bebê e possa oferecer o holding necessário. Nessas condições, cria-se um campo de ilusão em que mãe e bebê vivem um estado em que são um só. No decorrer desse estado o bebê, ao ver a mãe, vê a si mesmo; por sua vez, a mãe, ao ver seu bebê, rememora (inconscientemente) seus primeiros dias e semanas de vida, identificando-se com as necessidades do bebê. Com o tempo, ao ser capaz de introjetar a mãe, suporte do ego, o bebê torna-se capaz de estar só, sem precisar recorrer a todo momento à mãe ou ao símbolo materno. Portanto, a capacidade de estar só se baseia no paradoxo de estar só na presença do outro e tem suas raízes na fase em que o bebê vive, de forma bem-sucedida, a dependência absoluta na relação inicial mãe-bebê, enquanto a mãe atravessa o estado de preocupação materna primária. É expressão de saúde e da possibilidade de alcançar a maturidade emocional.3 O indivíduo que desenvolveu a capacidade de estar só está capacitado para redescobrir o impulso pessoal, pois o estado de estar só (mesmo paradoxalmente) sempre implica que alguém esteja por perto (Winnicott, 1958/1990; Winnicott, 1967/1975, pp. 153-162; Winnicott, 1969/1994). Winnicott alerta para o fato de que a capacidade de estar só não deve ser confundida com o estado de separação nem com o estado de retraimento (Abram, 2000).

Bion (1962; Bion, 1962/1990, pp. 151-164) propõe a teoria da função-alfa que vai transformar os elementos beta e sensoriais em psíquicos. Um dos fatores da função-alfa é a capacidade de reverie4 da mãe, fundamental para que ela possa captar, elaborar, processar e desintoxicar o bebê da intensidade emocional das sensações e comunicações não-verbais do bebê. Sendo bem-sucedido, esse processo dá início à constituição do pensamento.

A noção de continente-contido é complementar à teoria de reverie na formulação da teoria do pensar (Bion, 1962). O bom funcionamento da relação continente-contido, entre a mãe e a criança, permite ao bebê que se atenuem as angústias primitivas, na medida em que as projeta na mente materna, que as acolhe, as transforma e as devolve ao bebê, destituídas de sua carga ameaçadora. Dessa forma possibilita ao bebê introjetar experiências angustiantes agora modificadas e tornadas toleráveis e, além disso, apreender a função continente materna. A introjeção do objeto continente fornece um envoltório para as partes do self, favorecendo sua integração. O bom funcionamento da relação continente-contido, entre a mãe e a criança, permite ao bebê internalizar as boas experiências, tolerar situações de frustração e estabelecer identificações introjetivas com o casal parental, formado por uma mãe cuja função continente constitui o receptáculo dinâmico das relações da criança (contido). Estão dadas as condições para o desenvolvimento dos elementos-alfa, que darão origem ao aparelho para pensar os pensamentos (Bion, 1962; Bion, 1962/1990, pp. 151-164) e a possibilidade de lidar com as perdas e frustrações da vida.

Gostaria de destacar aqui que a função de reverie e de continência do analista, desenvolvida em sua análise pessoal, pode ser ampliada pela experiência de observação de bebês, segundo o método proposto por Esther Bick (1964, pp. 558-66). A observação de bebês é uma experiência ímpar para entrarmos em contato com nossos estados primitivos de mente, no aqui e agora, e para desenvolvermos uma escuta continente e descentrada (sem julgamentos morais e preconceitos), com base no contato com a dupla mãe-bebê, desde seus primórdios.

Klein (1971, pp. 133-156) propõe que a identificação com o objeto bom só é possível por intermédio do relaxamento das defesas contra a separação5 e a perda do objeto. No início, uma das defesas mais importantes é a identificação com o objeto idealizado e onipotente. Depois, a percepção do objeto total e real desperta angústias características da posição depressiva infantil com afetos de tristeza e luto pelos objetos externos e internos que os acompanham. Apenas as experiências positivas são capazes de contrabalançar essas crenças internas de que o objeto está perdido, devido às fantasias de destruição. Com base na síntese do amor e do ódio na ambivalência em relação ao objeto percebido como total, um objeto pode ser instaurado dentro do ego, e se instala um sentimento de segurança, que se constitui em seguida no núcleo de um ego, que adquire unidade e força, graças à confiança investida nas partes boas do self. Essa identificação introjetiva com o objeto bom é o encontro com algo de bom em si que proporciona amparo e acolhimento.

O estabelecimento de um objeto bom dentro do ego marca então a aquisição de uma força do ego suficiente para tolerar a ausência do objeto sem angústia excessiva, o que permitirá, posteriormente, superar a tristeza diante das inevitáveis perdas que ocorrem na realidade externa.

E como pensar o sentimento de solidão?

 

Solidão...

Winnicott diferencia a capacidade de estar só do estado de retraimento e de separação. Para esse autor, o isolamento é reflexo de fortes impactos

 

vividos logo no início da vida como uma forma de preservar o núcleo do self de uma violação. O retraimento estabelece uma relação com os objetos subjetivos que vêm a facilitar o sentir-se real. O retraimento, entretanto, também é uma separação que, como o estado autista, não concorre para o enriquecimento nem para o desenvolvimento do sentimento de self, mesmo que o sentir-se real esteja presente. Enquanto o indivíduo que consome grande parte do seu tempo sozinho pode vir a alcançar a capacidade de estar só, o estado de retraimento demonstra uma incapacidade de estar só.

Já o sentimento de solidão aponta para uma falha na experiência de estar só na presença da mãe/outro fundamental. Winnicott assinala que o indivíduo que experimenta uma intensa solidão pode ter vivido o impacto da falha da experiência de intimidade inicial com a mãe, de um tempo em que a mãe deveria estar presente e identificada com seu bebê (Abram, 2000).

Nesse sentido, Bion (1962/1990, pp. 151-164) também destaca que as falhas na capacidade de reverie e de continência maternas, juntamente com os ataques aos vínculos (L, H, K) emocionais, podem impedir o estabelecimento da função-alfa, que, na sua visão, é fundamental para a constituição do pensamento. Sem a capacidade de pensar, as angústias de toda ordem invadem a mente humana, até mesmo o sentimento de solidão.

Nas situações em que existem falhas na função de continência, as angústias primitivas projetadas pelo bebê no casal parental não encontram uma capacidade de reverie e continência que possa metabolizá-las e devolvê-las desintoxicadas ao bebê, este as recebe de volta acrescidas de intensas angústias dos próprios pais; o bebê torna-se então um "receptáculo" (e não um continente) desses "corpos estranhos" ou "objetos bizarros" (Bion 1962) (em vez de conteúdos), pois ele ainda é incapaz de metabolizar esses aspectos (Williams, 1995/1997a, pp. 105-112; Williams, 1995/1997b, pp. 37-39). Nesses casos, a falha da capacidade de continência é extremamente danosa e pode originar o "terror sem nome", como o reverso do modelo continente/contido (Bion, 1962; Bion, 1962/1990, pp. 151-164).

Klein (1971, pp. 133-156) considera que o sentimento de solidão deriva da nostalgia de ter sofrido uma perda irreparável, a de ter perdido irremediavelmente a felicidade da relação inicial com a mãe. Esse sentimento de solidão instalado na posição esquizoparanoide atenua-se com a posição depressiva, quando a integração psíquica se torna mais forte. Aponta para o fato de que essa integração depende inteiramente da introjeção do bom objeto que se instala com a integração da ambivalência amor-ódio na posição depressiva, mitigando o ódio por meio do amor e, assim, reduzindo a violência das pulsões destrutivas. Ao mesmo tempo, assinala ser impossível alcançar uma integração completa e permanente, e um doloroso sentimento de solidão pode ressurgir a qualquer momento, quando se perde a confiança na parte boa do self. Klein (1971) acredita que o que tornará tolerável o sentimento de solidão será a força e segurança do ego resultantes da internalização do objeto bom: "um ego forte resiste melhor à fragmentação, pode adquirir mais facilmente um certo grau de integração e estabelece uma boa relação com o objeto original" (p. 134). A identificação com o objeto bom também atenua a severidade do superego, e, quando se instala uma boa relação com primeiro objeto, estão preenchidas as condições para dar e receber amor. Para Klein, "a solidão, quando é verdadeiramente vivida, estimula a instauração das relações de objeto" (p. 135).

Portanto, a capacidade de viver a solidão como um revigoramento, em relação a si mesmo e aos outros, surge quando a presença do objeto ausente é internalizada. Esse processo progressivo de internalização constitui o resultado específico da elaboração das repetidas experiências de separações seguidas de encontros.

 

Solidão... só... no processo analítico

Ao longo do desenvolvimento infantil, assim como no processo psicanalítico, as sucessivas separações da pessoa importante provocam o temor renovado de que a perda do objeto bom na realidade externa cause a perda dos bons objetos internos.

Quando a solidão é vivida como um pesadelo, a curva vira reta e to- da capacidade de pensar se esvai com seus objetos pensantes. Então a vida toda desmorona, e a função de reverie do analista com características de acolhimento empático e desintoxicante, semelhante ao olhar materno, pode proporcionar um mundo com limites (o continente) em que o sentido pode ser encontrado (o contido), reparando-se as falhas iniciais.

Durante o processo analítico a capacidade de continência do analista vai permitir ao paciente tolerar a angústia - especialmente a angústia de separação -, e no aqui e agora do encontro analítico ele se tornará capaz não apenas de reintrojetar a angústia modificada pela capacidade de reverie do analista (contido), como também de introjetar o continente, isto é, a função continente do analista, que pode conter e pensar, de tal forma que por identificação o analisando possa, por sua vez, conter e pensar. Este é um passo essencial para suportar a angústia e vir a ser capaz de suportá-la sozinho, tornando-se autônomo em relação ao analista (Quinodoz, 1993, pp. 155-188). Trata-se da construção de um continente que possa abrigar os objetos pensantes.6

Será na experiência vivida na relação analítica que o analisando poderá vir a tolerar melhor a consciência dolorosa de ser um indivíduo separado e só, mas também desenvolver suas potencialidades e riquezas. Poder estar absorto, associar livremente, entregar-se, debater-se na sessão são sinais de que a capacidade de estar só foi alcançada, e o sentimento de solidão pode, então, ser vivenciado como um elã vital, uma fonte de criatividade e um estimulante para as relações afetivas.

Portanto, a introjeção de um objeto com o qual o sujeito dialoga, fruto da internalização da função analítica (Silva, 1999, pp. 267-282), oferece uma compreensão interna mais aprimorada que pode transformar o sentimento de solidão em capacidade de estar só e se tornar fonte de criatividade ao manter contato com o que existe de mais verdadeiro e profundo de si mesmo.

Passo, então, a ilustrar o sentimento de solidão em duas situações clínicas. A primeira é um caso atendido na Clínica Transcultural do Centro de Atendimento Psicanalítico da SBPSP e a segunda o de um garoto em análise há dois anos.

 

Claire e sua solidão

Claire, de 5 anos, foi atendida pela equipe da Clínica Transcultural.7

A clínica transcultural é um modelo de intervenção psicanalítica que leva em conta as dimensões clínica, antropológica e também linguística, e que procura dar sentido às interações entre os níveis coletivo, intersubjetivo e intrapsíquico (Devereux, 1970; 1972; Moro, 2015, pp. 186-192). Implica o uso do complementarismo, ou seja, a multiplicidade de referências, e uma ruptura com a posição etnocêntrica em torno da psicanálise, o que contribui para o descentramento do analista. Complementarismo e descentramento são os componentes essenciais dessa clínica plural que é a clínica transcultural.

O setting da clínica transcultural é constituído por vários terapeutas que recebem o paciente e sua família (visto que a família carrega uma parte do sentido do sofrimento do paciente, independentemente de sua idade); os profissionais que fizeram o encaminhamento (e que também fazem parte da história da família no país); e um tradutor ou um intérprete cultural, para garantir que o paciente possa utilizar sua língua materna para se comunicar, se assim desejar. Há sempre alguma terapeuta que se ocupa das crianças procurando ser interlocutora dos aspectos emocionais infantis que se apresentam por meio dos desenhos e do brincar durante as consultas.

A equipe de terapeutas, com base em um trabalho interno de continência e reverie, abdica de seus próprios valores culturais e preconcepções, descentra-se, procurando transformar em sonhos as experiências traumáticas relatadas pelas famílias. Esse trabalho interno depende de um trabalho relacionado à contratransferência cultural, ou seja, o modo com que cada terapeuta se posiciona em relação à alteridade do paciente, os afetos sentidos, as teorias, o seu modo de fazer e pensar culturalmente, a construção de suas conjecturas e intervenções durante o atendimento, elaborados depois da consulta (Moro, 2015, p. 190). Esses sonhos/pensamentos-alfa são oferecidos ao grupo e transmitidos à família pela terapeuta principal.

Recebemos Claire acompanhada de sua mãe e sua irmã de 4 anos, com nossa equipe de psicanalistas, a tradutora, a professora e a psicóloga da instituição que nos fez o encaminhamento.

Ela é uma criança quietinha, e sua mãe, uma bela mulher com o semblante amargurado e um tanto apático. A família de Claire é do Haiti, seus pais vieram para o Brasil, há cinco anos, quando sua mãe estava grávida de 6 meses dela. A sra. Haitiana tem cinco filhos: duas meninas que nasceram aqui e três filhos mais velhos que ficaram no Haiti, com a avó paterna. Seu marido também migrou para o Brasil com elas, mas partiu há três anos.

Enquanto eu a ouvia contar tantas histórias de separações traumáticas durante seu processo de migração, fui tomada por uma enorme tristeza. Senti empatia com o desamparo e solidão dessa senhora que teve duas filhas no exílio, sem o embalo da rede familiar e paterna. Ela estava profundamente deprimida, sem esperança, o futuro não tinha rosto. Nós sabemos que a parentalidade8 no exílio potencializa angústias primitivas, no âmbito psíquico e cultural, especialmente na mãe. No âmbito psíquico, pela revivescência dos conflitos e pela expressão das emoções. No âmbito cultural, pelo processo ligado às representações culturais, às maneiras de fazer e de dizer próprias a cada cultura. Todos esses elementos culturais pertencentes à geração precedente se reativam, tornam-se de repente importantes, preciosos e vivos. Aqui o mandato transgeracional é central (Lebovici, 1996). Esse mandato é atribuído à criança na transmissão transgeracional e faz penetrar em sua vida psíquica a geração dos avós, por intermédio dos conflitos infantis de seus pais, sejam eles pré-conscientes ou recalcados. É o caso dos traumas migratórios, os traumas e fantasmas que surgem do passado esquecido dos pais e que, em alguns casos, podem invadir os espaços e se instalar, afetando gravemente a relação da mãe com seu bebê. Diante da eclosão de tantas emoções reavivadas no exílio, é necessário criar uma rede para acolher de maneira adaptada essas crianças e seus pais, que permita tecer os laços e o ir e vir entre espaços de prevenção e de tratamento em uma coconstrução criativa (Moro, 2005, pp. 258-273; Moro, 2015, pp. 186-192).

Logo no início a mãe, com uma voz monocórdica, relata que tem dificuldade em se comunicar em português, diferentemente das filhas, que falam português, mas não crioulo. Estamos acompanhadas de uma tradutora, o que permite que a sra. Haitiana possa expressar-se em sua língua materna.

"Claire está complicada na escola", diz a mãe. "Todo dia sou chamada, porque Claire não quer ficar lá, e ela não fala nem explica o porquê". Essa menininha tão frágil se desespera na escola: chora, esperneia, fica muito desorganizada e foge, como se fossem surtos. "Ela grita e se assusta, e ninguém consegue contê-la", complementa a professora. A professora e a psicóloga pensam que são os bichinhos em sua cabeça, lêndeas de piolhos.

Com a ajuda da tradutora, vou colhendo cuidadosamente seus sentimentos diante do processo de migração, sua história de lá e daqui, e como ela compreende os choros e gritos de Claire.

Apesar de sua reticência em falar, aos poucos fomos nos aproximando, e a sra. Haitiana pôde compartilhar seu sofrimento e suas crenças culturais. Ela pensa que todo o desespero de Claire deve vir dos espíritos: "há algumas entidades que estão fazendo isso com a menina". Então, ela ligou para a família no Haiti para pedir ao missionário que rezasse por Claire: "Jesus vai me ajudar, Jesus pode me ajudar".

Também percebo que ela está muito deprimida. Ela divide conosco as dificuldades de estar sozinha em um país estrangeiro. E nos diz: "A polícia roubou meu comércio. Quando chego em casa estou muito cansada do trabalho e nem falo com as meninas". Ela não conversa também porque as meninas não entendem crioulo, e ela não fala português. As meninas então denunciam: sua mãe, quando fica brava, bate e xinga em sua língua materna. Ela se expressa em crioulo nos momentos de desespero.

Profundamente identificada com o desamparo de Claire, fico imaginando o sofrimento e a solidão dessas crianças que não têm uma mamãe que converse com elas nem em crioulo nem em português. Trata-se de uma relação sem palavras, uma não domina o idioma da outra. Imagino a solidão das meninas na noite escura, depois de um dia de desespero, sem objetos para acalmar, consolar e conciliar o sono. As meninas estão enraizadas no novo país, mas a mãe resiste. Digo: "Talvez Claire grite para que a senhora lhe dê o que tem dentro de si, seus afetos, suas canções, sua história, a narrativa de suas origens". A sra. Haitiana compreende: "ela quer a minha afeição!"

Durante essa consulta, Claire e sua irmã desenham, fazem colagem e brincam com as bonecas. Claire faz colares "curativos", representando sua demanda emocional.

Ao final, Claire expressa seu desejo: "Eu quero ficar aqui!" Ela mostra sua alegria de ter encontrado um lugar com pessoas que compreendem as suas necessidades emocionais.

Essa experiência clínica tem nos mostrado que as representações trazidas pelas famílias migrantes, ao serem compartilhadas, são de uma eficácia evidente. Elas renovam nossas maneiras de pensar enquanto psicanalistas, obrigam-nos a nos descentrar, a tornar mais complexos nossos modelos e a nos afastar de nossos julgamentos apressados. Pensar essa alteridade é permitir que a parentalidade possa ser vivida por essas famílias de uma maneira menos traumática e que se familiarizem com outros pensamentos, outras técnicas, pois a migração traz com ela essa necessidade de mudança, e, se essas mulheres não estiverem inscritas em nossos sistemas de prevenção e de cuidados, corre-se o risco de deixá-las restritas a uma solidão elaborativa, pois para pensar nós temos necessidade de coconstruir, de trocar, de confrontar nossas percepções com aquelas do outro; se isso não é possível, o pensamento não se apoia em nada a não ser nele mesmo e em seus próprios construtos. A troca com o outro nos modifica e impede o engessamento psíquico (Moro, 2005, pp. 258-273; Moro, 2015, pp. 186-192).

Acredito que o setting oferecido pela clínica transcultural cria curvas para conter a solidão dessas famílias durante o processo de migração e para coconstruirmos os caminhos do enraizamento em uma nova cultura.

 

O mundo silencioso de Beto

Se Claire não conversava com sua mãe, Beto quando nasceu encontrou um mundo silencioso. Sua mãe teve uma depressão pós-parto profunda, e ele foi deixado aos cuidados de uma tia-avó. Quando chegou ao consultório, Beto vivia uma depressão primária,9 com muitos indicadores de autismo (Batistelli & Amorim, 2014; Silva & Batistelli, 2018).

Ele estava com 1 ano e 11 meses, quando sua pediatra drasticamente disse a sua mãe que ele era autista. Primeiramente acolhemos10 essa família em um setting de intervenção nas relações pais e filhos, para uma avaliação conjunta (Mélega, 1998; Silva, 2002, pp. 541-565; Mendes de Almeida et al., 2004, pp. 637-648).

Nas intervenções pais-bebês, tomamos em consideração as ações recíprocas que o bebê e a sua mãe, ou pai, têm um com o outro: os atos relacionais (Prat, 2019). Quando olhamos para a dupla mãe-bebê, observamos os modos de se relacionar da mãe com ou para o seu bebê (alimentá-lo, trocá-lo, brincar com ele), gestos, sons, onomatopeias, jeitos de cantar (prosódias maternas, manhês), e coisas feitas pelo bebê/criança. Olhamos para a interação.

Com essa escuta, recebemos a nova família. Beto chega de chupeta na boca; ao chamá-lo, ele não nos olha, entra e, muito quieto, busca os objetos menores da caixa e brinca, principalmente com uma família de bonequinhos (Playmobil), colocando-os num caminhão com caçamba. Também se interessa por abrir uma caixinha de comidinhas ou mexer no fundo de uma prateleira da sala. Esses movimentos sugerem que há um dentro e um fora, um interior com figuras humanas e um princípio de capacidade simbólica.

Durante a intervenção resgatamos a história das relações dos pais com os filhos, entre os pais e dos pais com os próprios pais, não para interpretá-los, mas para conhecer a qualidade dos vínculos e cuidar da função parental. Assim, fomos aos poucos sabendo também da chegada de Beto.

Então, a mãe, chorando muito, começa a nos contar que na ocasião da gravidez e do nascimento do filho mais velho tudo correu bem. Ela, com a ajuda de sua mãe, cuidava dele e se encantava com a experiência. Depois de dois anos, já queriam ter o segundo filho, pois: "Já estava velha e não poderia esperar muito".

A gravidez de Beto correu bem, mas ao nascer tudo ficou muito difícil. Ela fazia tudo o que era necessário para os cuidados físicos, mas não conseguia se vincular. Intuía que não seria capaz de gostar dele e, muitas vezes, rezou para que ambos morressem, pois assim tudo acabaria. Sentia-se péssima em pensar assim, mas "não conseguia gostar nem criar vínculo com Beto". Sua própria mãe estava doente na ocasião do nascimento e não podia ajudá-la. Só mais tarde, quando Beto estava com 4 meses, descobriu que estava com depressão pós-parto e foi medicada. É nessa ocasião que a tia-avó (por parte de pai) entra na vida da família, e passa a morar com eles e cuidar das crianças, principalmente de Beto. Essa tia, solteira e muito sozinha, dormia com Beto, ambos no mesmo colchão, no chão e abraçados, dificultando que Beto tivesse outras experiências emocionais que não as sensoriais e adesivas (Bick, 1968, pp. 484-486; Meltzer, 1975/1986). Pareceu-nos que, diante de toda essa situação emocional, as duas mulheres, mãe e tia, viviam solidões não elaboradas e estabeleceram de alguma forma relações adesivas, na tentativa de que Beto não experienciasse qualquer tipo de sentimento de separação. Diante da fragilidade materna, essa tia ocupou o lugar da mãe, levando-a a sentir-se ainda mais insuficiente.

Beto não encontrou uma mamãe capaz de absorver suas projeções e, assim, ela foi percebida como hostil a qualquer tentativa de identificação projetiva ou a qualquer tentativa sua de conhecer a natureza de sua mãe. Beto, então, ficou com a ideia de um mundo que não queria conhecê-lo e não queria ser conhecido. Isso se refletia em como Beto se relacionava com o mundo: um mundo intrusivo que o levava a recolher-se em seu refúgio, em seu isolamento.

A preocupação e o interesse materno eram que pudéssemos confirmar se o diagnóstico de autismo estaria correto ou não. Tal situação parece ser vivida por ela como uma "sentença de morte" e, provavelmente, um castigo. Chega, até mesmo, a sentir uma dor enorme, na medida em que tinha ouvido de outra psicóloga que Beto "apenas aprenderia a amá-la, mas nunca a amaria verdadeiramente, pois as crianças com autismo são incapazes de ter sentimentos".

No entanto, o próprio Beto, já na primeira sessão, mostra o contrário. A mãe tinha nos dito que ele não ia com ninguém estranho, mas se surpreende ao ver Beto buscar o meu colo. Acreditamos que, nesse momento, mais que um contato sensorial, Beto mostrava o encontro com um objeto que reconhecia suas necessidades e era capaz de enxergá-lo para além das manobras autísticas.

Na intervenção pais-bebês, como no trabalho com os pais de crianças em análise, não nos propomos a tratar os pais em sua personalidade nem em sua patologia individual, mas sim em sua parentalidade, favorecendo uma aliança terapêutica, a reconstrução da solidariedade parental e ajudando os pais a se permitir um contato maior com os déficits do filho. Procuramos ajudar os pais de Beto a olhar para a criança que de fato estava ali diante deles, que muitas vezes evitava o contato com os familiares e também conosco. O reconhecimento das necessidades de Beto seria fundamental para que eles pudessem vir a aceitar um tratamento intensivo de psicanálise. Portanto, nossa preocupação não se resumia a, simplesmente, fazer ou desfazer um diagnóstico, embora não pudéssemos nos furtar a refletir sobre o problema.

Surpreendentemente, na segunda consulta, Beto chegou reconhecendo o espaço e querendo adentrar nossa sala em busca dos brinquedos com que já brincara na semana anterior. Ele vai para a mesinha, desenha comigo, joga bola para todos da sala, troca olhares de soslaio e faz um ensaio de narrativa com os bonequinhos Playmobil. Nesses ensaios de um brincar mais simbólico de Beto, fomos nos oferecendo para a família como modelo de um objeto que acompanha seu ritmo e, ao mesmo tempo, convoca-o e nomeia seus movimentos. Em alguns momentos, Beto emite sons que pudemos traduzir como desejo de chupeta ou água. Algumas vezes, corria para o colo da mãe, com uma demanda mais sensorial, e a mãe também respondia sensorialmente com muitos beijos e carinhos. Essa cena sugere um modo de relacionar-se mais fundido e simbiótico, seja com a tia, seja com o colo da mãe.

Ao apontarmos pequenos sinais de comunicação de Beto e ao observarmos e refletirmos juntos, fomos amplificando pequenas competências e possibilitando caminhos para possíveis transformações.

Já na terceira consulta, a mãe se mostrou diferente: muito mais viva e tomando posse das funções maternas. Beto passou a dormir sozinho, sem a tia e sem mamadeiras durante a noite. Ele chegou à consulta procurando por nós, emitindo vários sons, como dá, qué, ma, e brincando com mais desenvoltura. Ao ser chamado pela mãe, ele respondeu com um olhar rápido e atendeu a sua demanda. Para nós, também, ele manteve o olhar por alguns segundos, várias vezes, durante a sessão.

Nesses encontros com Beto, procuramos resgatar a esperança em suas sutis potencialidades e favorecer suas capacidades de se relacionar e brincar compartilhado, para uma verdadeira troca intersubjetiva, além de fortalecer as competências parentais.

Após um período de férias, apesar de toda a angústia, sua mãe nos contou que estava apaixonada por Beto como foi com seu primeiro filho. Esteve totalmente devotada a ele nas 24 horas do dia, sentindo-se, ao mesmo tempo, culpada por ter tido sua depressão puerperal. Nós ficamos sensibilizadas e apontamos como os pais estavam muito mais próximos de Beto, a despeito da dor e da tristeza, e que, ao falarem do encantamento materno, havia esperança de juntos transformarmos os déficits de Beto em competências e repararmos um início de relação em que tudo parecia impossível.

Ao longo dessa intervenção conjunta fomos assinalando para os pais os recursos de Beto e, por meio da experiência vivida no aqui e agora de nossos encontros, oferecemo-nos como modelo de um ser humano vivo que o "reclama"11 (Alvarez, 1994) para uma relação compartilhada e intersubjetiva, despertando seu interesse para o objeto humano. Aos poucos, fomos vendo os recursos de Beto para responder a esse investimento, bem como a mãe foi se empenhando em fazer o mesmo em casa.

De alguma forma, Beto foi beneficiado pelo olhar da pediatra (muito embora isso tenha sido apresentado de maneira desastrosa), pois nós sabemos que, quanto mais cedo se viabilizem uma intervenção e um tratamento psicanalítico, maior é a possibilidade de revertermos o isolamento em que a criança se encontra, para uma relação com emoções compartilhadas e sentimentos vivos.12

Beto apresentava muitos indicadores de risco: ausência e/ou evitação do contato visual, não falava ou se expressava muito rudimentarmente sem a intenção de se comunicar e não havia um brincar intersubjetivo (Lisondo et al., 2017, pp. 225-244). Embora o transtorno do espectro do autismo se refira a um conjunto heterogêneo de sinais, sua etiologia é entendida como multifatorial, nela podendo estar presentes aspectos orgânicos, psíquicos e ambientais, assim, como nos sugere Tustin (1986/1990, pp. 24-25): "há uma interrupção precoce maciça do desenvolvimento cognitivo e afetivo, embora o desenvolvimento físico das crianças com autismo seja geralmente normal". Considerando esses elementos e toda a riqueza das intervenções com essa família, pensamos que Beto se apresentava com muitas portas abertas à sua frente e muito se beneficiaria de um trabalho analítico.

Após esse trabalho de intervenção, Beto iniciou sua análise com quatro sessões semanais. No final do primeiro ano, vivi uma cena emocionante que ilustra a transformação do sentimento de solidão, de um tempo sem palavras (Roussillon, 2015, pp. 33-46).

Nessa sessão, como de costume, assim que abro a porta, Beto entra correndo e entusiasmado para nosso encontro. Vai direto para a casinha e pega os bebês, assim como outros bichinhos, ou os filhos da casinha. Todos sobem as escadas e caem, ora do telhado, ora do segundo andar, ora do terraço. Tudo se desmantela como expressão de seu sofrimento psíquico.

Durante esses movimentos vou narrando (Silva, 2016, pp. 21-38) de uma forma muito simples: sobe... sobe... ora o bebê, ora o gatinho, ora o menino... e tibumba... Ahhhh caiu... Depois tudo se repetia, e eu diante de cada degrau da escada narrava: sobe... sobe... 1, 2, 3, 4, 5, 6... Por vezes ele repetia um som semelhante ao dos números, e, quando caía, eu dizia: tibumba... caiu... ahhh caiu...

Assim, fui oferecendo interpretações onomatopaicas (de "onomatopeia", que em grego significa "criação de palavras"), pequenas palavras, que falam de ansiedades muito primitivas (quebra, rasgamento, queda, explosão, afogamento, desaparecimento...), como uma criação intermediária entre o som e a palavra (Prat, 2019). Dessa forma, eu ia construindo um ambiente continente, que falhou lá no início. Uma curva!

Em um dado momento, Beto se deteve nos bebês e repetidamente deixava-os cair da casinha. Cada um dos bebês subia pausadamente os degraus da escada e do segundo andar o bebê caía, caía e caía. E caía, caía, caía. Então, eu narrava novamente: o bebê está subindo a escada, 1, 2, 3, 4, 5... subiu e, tibumba, caiu. Ahhhhh caiu. Fez dodói? Deixa eu cuidar do bebê. Enquanto cuidava cantando cantigas de ninar, ele repetia o mesmo movimento com o outro bebê da casinha. Ele olhava para mim e pegava da minha mão o bebê que eu estava ninando, eu o devolvia, para tudo se repetir.

Dessa maneira, eu inventava uma forma de me comunicar com Beto (Silva, 2013b; Silva, 2017, pp. 71-88), adaptando-me ao seu próprio modo de expressão e funcionamento psíquico, usando as suas próprias modalidades de simbolização, de tal forma que ele pudesse absorver algo mais familiar. Buscava um lugar intermediário entre a representação de palavra e a representação de coisa, porque o som da palavra criada, imitando o da coisa, permitirá uma experiência de compartilhamento, transformar a reta e ir criando curvas, ou seja, ir criando uma função continente que abrirá a possibilidade para um espaço tridimensional.

Depois propus uma variação. A cada vez que eu pegava o bebê em minha mão e o acariciava, eu cantava "Se essa rua fosse minha", da qual, curiosamente, uma das estrofes fala da solidão ("Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas de brilhantes, para o meu amor passar. Nessa rua tem um bosque, que se chama solidão, dentro dele mora um anjo, que roubou meu coração").13

Repeti, com algumas alterações, mas com a mesma entonação: ai, ai, ai como é que vamos cuidar do bebê? E ninava cada um deles. Eu estava muito sintonizada com o clima emocional daquilo que Beto ia encenando, imaginando-o no início de sua vida, na mesma posição desse bebê, todo desmantelado, uma experiência de abandono e solidão absoluta.

Então passei a chamar o bebê de Beto, e, a cada cena que se repetia, dizia: Ahhh o Beto caiu, vem cá, Beto (pegando o bebê em minha mão), eu vou cuidar de você... ahhh você caiu... Sabe, Beto, a Cecília está aqui e vai cuidar de você, não vou deixar você sozinho... E também cantei as músicas para embalar esse bebê que a todo momento desmoronava da casinha. Ele olhou para mim com aquela sensação de ter realizado uma experiência emocional de um tempo sem palavras. A cena se repetiu mais duas vezes, e então ele novamente olhou para mim e se aproximou. Ele me abraçou e se aconchegou em meu colo. Com Beto aconchegado em mim, eu me emocionei ao me aproximar e nomear vivências tão primitivas e, ao mesmo tempo, ao imaginar a possibilidade de que ele venha a descobrir um mundo novo, depois do encontro emocional com um objeto vivo e continente.

Assim, a partir dessa sequência progressiva de intervenções foi possível algum acesso à experiência de angústia primitiva, ligando o cair ao sentimento de sentir-se abandonado: Beto é o bebê que cai e a quem preciso ajudar por meio de uma reconstrução histórica, pondo-o em contato com o abandono experimentado lá no início de sua vida (Roussillon, 2015, pp. 33-46; Silva, 2016, pp. 21-38).

Acredito que, com base nessa experiência de parceria no cuidado, Beto tem desenvolvido a confiança em si mesmo e no mundo, o que permitirá a concepção e interiorização de um modelo de cuidar e a construção de um continente com objetos internos pensantes e brincantes, para uma capacidade de estar só.

 

Concluindo...

Podemos supor que os pacientes confrontados na primeira infância com uma mãe cuja atenção foi capturada fora da relação (por uma patologia pessoal, um estado depressivo, ou nascimento de um novo bebê...) experimentaram uma sintonia desafinada, sem uma relação de intimidade (Meltzer, 1982/84, pp. 551-569) e com poucos recursos emocionais, que dificultaram sua capacidade de se representar e de dar sentido ao mundo psíquico, tanto o seu quanto o do outro.

Diante do sentimento de solidão presente na sessão, procuro lançar mão da atividade ficcional, aquela de poder sonhar os sonhos que o paciente não sonha ou o sonho que talvez possa permear o seu mundo emocional, como instrumento/curva de acesso ao que há de mais profundo e verdadeiro. Criando curvas, tento oferecer recursos e narrativas para meus pacientes, como Claire e Beto, construindo um continente que possa abrigar objetos pensantes e reparando os danos do pensar em suas vivências de angústias de separação e solidão.

Assim, espero ter apresentado como alternativa aos caminhos retilíneos os caminhos sinuosos, pelos quais a construção da capacidade de estar só tem sido possível, sem que os elementos de angústia mais submersos e profundos sejam caçados ostensivamente, mas possam tomar corpo na sessão e, progressivamente, vir à tona e serem transformados.

Encerro com uma história infantil que ilustra o universo emocional da criança quando falha a relação de intimidade mãe-bebê. Nessa história a mãe reconhece suas falhas e repara os vínculos esgarçados, uma mamãe que tece as emoções promovendo um encontro emocional.

 

Mamãe zangada

Hoje de manhã mamãe gritou tanto, que eu me despedacei em pleno ar.

Minha cabeça voou para o universo. Meu corpo afundou no mar. Minhas asas se perderam na selva. Meu bico desapareceu nas montanhas. Meu bumbum caiu no meio da rua. Minhas patas ficaram paradas, mas de repente se puseram a correr e correr.

Eu queria procurá-las, mas os olhos estavam no universo... eu queria gritar, mas o bico estava nas montanhas... eu queria voar, mas as asas estavam na selva.

Cansadas de correr, as patas chegaram no deserto do Saara ao entardecer, quando uma grande sombra se deitou sobre elas.

Era a mamãe zangada, que tinha recolhido e costurado todos os meus pedaços. Faltavam somente as patas.

Desculpe, disse a mamãe zangada.

(Bauer, 2008)

 

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Recebido em: 5/10/2020
Aceito em: 6/10/2020

 

 

1 Este trabalho ganhou o Prêmio de Psicanálise de Criança e Adolescente da Fepal 2020, a ser publicado na revista Caliban.
2 Bion (1973) define a fé como uma resposta primordial e profunda de defesa contra o sentimento de catástrofe. É uma experiência emocional, singular. Não se trata, porém, de uma fé religiosa - um conjunto de dogmas e doutrinas que constituem um culto. Para o autor, essa fé se torna apreensível quando se representa no pensamento e por meio deste. Trata-se da fé na existência de uma realidade verdadeira e última. A fé que move um cientista a ir em busca de algo, mesmo sem dados objetivos.
3 "A experiência de estar só na presença do outro tem suas raízes na relação precoce, que é a relação mãe-bebê, chamada por Winnicott inicialmente de afinidade egoica e mais tarde substituída por relação de objeto. Ao se referir ao estar só, Winnicott distingue três diferentes estágios do desenvolvimento emocional, sempre colocando em destaque a importância do ambiente. Originalmente existe a palavra 'eu', que indica um grande crescimento emocional. O indivíduo é constituído como uma unidade. A integração já é um fato. O mundo externo repudiado e um mundo interno faz-se possível... A seguir temos o 'eu sou', que apresenta um outro estágio de crescimento individual. Através dessas palavras o indivíduo adquire não apenas uma forma, mas também uma vida. No início do 'eu sou' o indivíduo é bastante cru, indefeso, vulnerável, potencialmente paranoide. Ele só pode alcançar o estágio do 'eu sou' porque existe um ambiente que é protetor; esse ambiente que o protege é, de fato, a mãe preocupada e voltada para as exigências do ego do bebê através das identificações com ele. Não há necessidade de postularmos que o bebê nesse estágio do 'eu sou' já possui uma consciência da mãe. Em seguida surge o 'eu estou só'. Segundo Winnicott, esse estágio envolve o reconhecimento, por parte do bebê, da existência contínua da mãe, não necessariamente um reconhecimento com a mente consciente. Considera, entretanto, que o 'estar só' tem sua origem no 'eu sou' e depende da consciência que o bebê possui da existência contínua de uma mãe confiável, cuja confiança faz possível ao bebê estar só e obter prazer disso por um período de tempo limitado" (Abram, 2000, pp. 249-250).
4 Bion (1962/1990, pp. 151-164) propõe que o sujeito depende da capacidade de reverie materna para significar a experiência emocional do bebê e, então, ter a possibilidade de desenvolver sua capacidade de pensar, resultante dos aspectos identificatórios e projetivos. Esse autor inferiu e descreveu como os estados emocionais primitivos, tanto os de prazer como os dolorosos, são vivenciados concretamente e, como tais, não estão disponíveis para o desenvolvimento mental. Esses estados não podem ser pensados, imaginados, sonhados ou lembrados (em oposição a serem repetidos), até que tenham se transformado em experiências emocionais. Um bebê não pode adquirir a capacidade de transformar suas experiências primitivas de elementos-beta em elementos-alfa, como Bion (1962/1990, pp. 151-164) os chamou, exceto por meio da identificação com um objeto capaz de executar tal função fundamental, a função de reverie. No desenvolvimento saudável, tal identificação é atingida via uso da identificação projetiva, como um mecanismo próprio de toda e qualquer comunicação. Nessa situação, o bebê evacua o difícil e indigerível conglomerado de experiências boas e más para dentro do objeto parcial que cuida dele. Esse objeto parcial receptivo oferece uma realização da expectativa inata do bebê, sua pré-concepção, de que há algum lugar em que o difícil pode tornar-se tratável; o insuportável, suportável; o impensável, pensável. Assim, o objeto parcial primário, o seio, na terminologia kleiniana, através de um processo que Bion chama de função-alfa, age sobre os elementos-beta projetados e os transforma em elementos-alfa pensáveis, armazenáveis, sonháveis. Esses são projetados para dentro do bebê e introjetados por ele. O resultado é uma identificação com um objeto parcial capaz de executar a função-alfa, ou melhor, um esboço de identificação, pois a palavra "identificação" parece ser mais apropriada para descrever uma atividade muito mais formal e final (Isaacs-Elmhirst, 1980, pp. 155-167).
5 A experiência de dormir é uma experiência de separação. Quando somos bebês, necessitamos da ajuda do cuidador para conciliar o sono, acalmar-nos e nos consolar, e então dormir. Sem a introjeção de objetos bons é muito difícil se entregar ao sono.
6 "Quando Bion fala de continência do analista está falando de algo de dentro da pessoa do analista. Quando fala de reverie do analista está se referindo ao mundo de fantasia deste. Na elaboração emocional do analista está implícito que este passa por situações de desconhecimento, de angústia, de trabalho com suas emoções e impulsos, de transformações de sua pessoa que se dão ali no vínculo emocional com seu paciente e induzido por este. Já estamos longe daquele analista distante, objetivo, que era apenas uma tela em branco, cuja pessoa teria que permanecer incógnita. Estamos falando de um analista que é afetado pelo paciente e que isso produz modificações em sua maneira de encarar o material analítico... Isto é, o analista afetado pelo paciente pode ter experiências desde as mais regressivas até as mais elevadas. Assim, quando falamos de contratransferência no sentido de Paula Heimann, continência de Bion e holding de Winnicott, estamos falando de recursos da pessoa do analista que servem de instrumentos para seu trabalho clínico" (Di Ciero, 2016, p. 3).
7 Equipe da Clínica Transcultural: Ana Balkanyi Hoffman, Diva A. Cilurzo Neto, Fushae Yagi, Marcella M. de Souza e Silva, Maria Augusta M. Gomes, Maria Cristina B. Boarati, Maria Cecilia Pereira da Silva, Maria do Carmo do Amaral, Maria Jose Dell Acqua Mazzonetto, Marilia da S. Modesto Santos, Paula Ramalho da Silva, Tanya M. Zalcberg, Wadad A. Hamad Leoncio. Tradutores: Mariam Mohamad Chehimi e Ana Elisa Bersani. Assistente social: Sara C. N. Ferreira.
8 A parentalidade se fabrica com ingredientes complexos. Alguns deles são coletivos, pertencem à sociedade como um todo, mudam com o tempo, são históricos, jurídicos, sociais e culturais. Outros são mais íntimos, privados, conscientes ou inconscientes, pertencem a cada um dos dois pais enquanto pessoas, enquanto futuros pais, pertencem ao casal, à própria história familiar do pai e da mãe. Aqui está em jogo o que é transmitido e o que é escondido, os traumas infantis e a maneira com a qual cada um os contém. E, depois, há toda uma outra série de fatores que pertencem à própria criança, ela que transforma seus genitores em pais (Moro, 2015, pp. 186-192).
9 Também poderíamos dizer que Beto vivia um profundo estado de retraimento. Diante dos fortes impactos iniciais, Beto isolou-se, a fim de poder preservar o núcleo do self de uma violação. Nosso trabalho era convocar Beto para a relação, pois esse estado de retraimento não contribui para o enriquecimento nem para o desenvolvimento do sentimento de self.
10 Atendi junto com a colega Fatima Batistelli.
11 Anne Alvarez fala de "ir ao encalço do paciente"; "... faz uma analogia com a função materna, que não é só acolher ou compreender e digerir as angústias e anseios de seu bebê, mas, quando necessário, reivindicá-lo, atrair sua atenção" (Batistelli & Amorim, 2014, p. 35).
12 Pesquisas atuais (Muratori & Maestro, 2007; Olliac et al., 2017, pp. 1-22) apontam o fato de que alguns sinais iniciais, particularmente o interesse intenso por estímulos não sociais e objetos concretos, podem representar um sinal de alerta, um indicador de desenvolvimento atípico no primeiro ano de vida do bebê. O desenvolvimento atípico pode desencadear uma formação neuronal anormal do cérebro e um desenvolvimento alterado do processo de desenvolvimento neuronal esperado. Por mais difícil que seja para os pais e os clínicos encontrarem um destino para suas percepções sobre os déficits de desenvolvimento do bebê, deve-se lembrar que, com o encaminhamento para uma intervenção psicoterápica conjunta pais-bebê, aliada à plasticidade cerebral, há grandes chances de, ao correr contra o tempo, oferecer um novo destino ao bebê e à sua família (Silva, 2013, pp. 105-110).
13 Se essa rua/Se essa rua fosse minha/Eu mandava/Eu mandava ladrilhar/Com pedrinhas/Com pedrinhas de brilhantes/Para o meu/Para o meu amor passar/Nessa rua/Nessa rua tem um bosque/Que se chama/Que se chama solidão/Dentro dele/Dentro dele mora um anjo/Que roubou/Que roubou meu coração/Se eu roubei/Se eu roubei teu coração/É porque/É porque te quero bem/Se eu roubei/Se eu roubei teu coração/É porque/Tu roubaste o meu também/Se essa rua/Se essa rua fosse minha/Eu mandava/Eu mandava ladrilhar/Com pedrinhas/Com pedrinhas de brilhantes/Para o meu/Para o meu amor passar/Nessa rua/Nessa rua tem um bosque/Que se chama/Que se chama solidão/Dentro dele/Dentro dele mora um anjo/Que roubou/Que roubou meu coração/Se eu roubei/Se eu roubei teu coração/É porque/É porque te quero bem/Se eu roubei/Se eu roubei teu coração/É porque/Tu roubaste o meu também (de Marcos Patrizzi Luporini). "Se essa rua fosse minha" © Som Livre, Sistema Globo de Edições Musicais Ltda., Bromelia Prod. Ltda.

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