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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dez. 2020

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

Comentário ao trabalho: Só... Solidão..., de Maria Cecília Pereira da Silva

 

 

Maria Helena de Souza Fontes

Membro efetivo, docente, analista didata e de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / mhfontes@terra.com.br

 

 

O trabalho Só... Solidão escrito por Maria Cecília Pereira da Silva conta sobre solidão e parcerias. Meu comentário a esse trabalho foi escrito em três tempos entremeados por longas pausas.

No primeiro, incluo a mensagem de resposta ao convite da autora para comentá-lo, e em seguida as reflexões iniciais escritas no início do mês de fevereiro de 2020. Logo em seguida, a escrita foi atravessada por uma pandemia que nos fez sentir - como as demais pessoas - na pele e na alma o mesmo desamparo presente nos personagens da narrativa. Como psicanalistas, nos fez viver a importância das parcerias com nossos colegas e com a psicanálise.

Querida Cecília,

Acabo de ler seu trabalho e fiquei emocionada de tão bonito que é. Sobretudo, ele é profundamente humano e revela o que considero como a mais alta qualidade que pode existir na humanidade - o importar-se verdadeira e responsavelmente com o outro...

Agradeço o seu convite e lhe agradeço por escrever um trabalho que me fez sentir emoções dessa natureza. É muito bom senti-las e partilhá-las com você.

Reproduzir a mensagem introduz, precocemente - porque pensava em trazê-lo mais adiante -, um dos temas implícitos nesse trabalho: a psicanálise como fator de humanização, transcendendo a função terapêutica que a originou. Refiro-me à intenção de realçar neste comentário o desenvolvimento da psicanálise, para além do seu aspecto teórico ou técnico, como um corpo vivo que aprende com novas experiências e, ao incorporar esse aprendizado, se expande, o que permite sua aplicação em variados espaços, sem abandonar a substância que lhe é própria e que levou ao seu surgimento: o lugar do inconsciente, a busca do desconhecido em cada indivíduo, a necessidade do outro que possibilita o nascimento do si mesmo, o fortalecimento dos recursos internos que permitem a criatividade e o livre-arbítrio. Sua aplicação a diferentes espaços da sociedade humana são sementes lançadas que, ao florescerem, revelam a um número cada vez maior de pessoas que é possível estarem sozinhas sem estarem sós, que a dor pode ser minorada pela capacidade de pensar/sentir, que não se está condenada a repetir pautas perversas de condutas para sobreviver mentalmente a qualquer custo, que a mente tem a possibilidade de criar memórias de novas experiências, permitindo-lhes existir em um espaço mental mais amplo e ameno. Tudo isso com base em viver essa nova forma de relação humana, e não apenas em saber sobre ela em manuais de autoajuda ou pela palavra sensacionalista de pregadores.

Não é por acaso que do analista se exigem a experiência de uma análise de alta frequência e longa duração, o acompanhamento de seu trabalho clínico por colegas mais experientes, a troca de ideias entre seus pares em seminários clínicos, a presença nas reuniões científicas da comunidade analítica, a participação em grupo de estudos, congressos etc. A tudo isso se acrescenta a necessidade de um conhecimento mais amplo na área cultural, filosófica, religiosa, etnológica, em busca das variadas dimensões do pensamento humano e das motivações que determinam seu agrupamento social, suas práticas religiosas e culturais, seus rituais de vida e de morte.

Não é pouco o que se pede a um analista. É simplesmente uma tarefa para toda a vida. Também não é pouco o que essa tarefa lhe confere: o privilégio de penetrar um universo desconhecido, transitar por esse mundo de sentimentos delicados, conhecer suas leis e fenômenos, suas emoções sutis, erupções tempestuosas, abismos apavorantes e de lá sair ileso e ao mesmo tempo, como seu paciente, modificado, transformado, mais humano.

Cecília nos conta da pequena Claire e de sua família haitiana, desenraizada, desamparada em um país estranho, longe da família de origem, ignorante da língua materna e de tudo o que simbolicamente isso representa. A senhora haitiana está só, e a pequena brasileira Claire está só. Ninguém as entende. Ninguém "fala a sua língua".

Até que Claire e sua mãe encontram uma psicanalista e um grupo de pessoas que se propõem a fazê-lo, deixando suas mentes informadas disponíveis para entender outra linguagem - o idioma de suas emoções -, traduzi-la em palavras, dando às duas acolhida e o status de pertencimento à comunidade humana.

A senhora haitiana não está mais só. Claire não está mais só.

Todos esses anos de formação, que tornaram Cecília uma psicanalista competente, valeram a pena para Claire e sua família, valeram a pena para Beto e sua mãe. Valem para muitas pessoas a quem ela atende.

A escrita desse comentário sofre uma pausa e continua no mês de abril.

A covid 19 nos chegou de avião, sem endereço pessoal, uma encomenda que não fizemos. De repente, não mais que de repente, Claire e Beto somos nós, aqui no Brasil e em todos os países do mundo, confrontados com a solidão do confinamento, com o desamparo diante do desconhecido, com a fragilidade física de nossa existência, exilados do mundo que conhecíamos até então. Um mundo com suas leis, suas práticas, seus costumes, e muitas vezes seus espaços cotidianos, subvertidos pela ameaça de um inimigo do qual sabemos muito pouco e muito pouco podemos fazer para combatê-lo.

Só... Cada um frente a frente à sua mortalidade. Solidão... Ruas, praças, cidades vazias. Monumentos grandiosos erguidos pela imaginação e trabalho humano, abandonados pelo seu criador.

• multiplicação de Machu Picchu, visão que assombra e hipnotiza o visitante: a figuração do mundo sem a raça humana.

• o tenor canta na praça vazia, na porta da maravilhosa catedral: grandeza e pequenez.

 

Só... solidão. Premonição de Cecília

E sempre a psicanálise nos acudindo - inventando-se, adaptando-se, investigando, expandindo-se, surpreendendo ao sair de seu espaço fundante, o setting analítico externo -, revelando a potência exponencial do setting interno do analista. A psicanálise trabalhando pela vida, o oposto do vírus que se dissemina velozmente ao contato entre pessoas, trazendo a morte e dores da alma.

Confrontados com nossa solidão e desamparo diante das novas condições de trabalho psicanalítico impostas pela pandemia, fomos buscar, nas redes sociais, a continência dos colegas, formando grupos fervilhantes de mensagens, informações, trocas de ideias, sugestões, apoios. O amor emanava das mensagens e nos envolvia. Assim fomos aquietando nossas angústias, estabelecendo rotinas, dando conta de nossas tarefas. Saciados com o bom leite, nos tornamos confiantes e, sobretudo, mais sensíveis e solidários com nossos colegas e com todos os seres humanos em situação de vulnerabilidade.

A psicanálise usando sua potência para o que foi posto no início do trabalho, antes do coronavírus... "dar conta ao maior número de pessoas de que a dor pode ser minorada pela capacidade de pensar/sentir, de que se pode estar sozinha sem se estar só"...

O atendimento a Claire, realizado com sutileza e intuição por Cecilia e seu grupo de trabalho, venceu a distância imposta pela ausência de uma língua comum entre a senhora haitiana e o grupo de psicanalistas e, do mesmo modo, entre Claire e sua mãe. Esse trabalho pode ser visto como paradigma da dimensão que alcança neste momento o atendimento psicanalítico. A subversão de usos e costumes causada pelo vírus nos tornou estrangeiros em nosso próprio hábitat. Descentrados e desconcertados diante de um novo setting, privados da comunicação usual, tivemos que aprender uma nova linguagem não apenas para o atendimento às análises em curso, mas também, caso de muitos colegas, para o trabalho institucional de atender centenas de trabalhadores da saúde - a linha de frente das batalhas do século XXI.

Concordo com Virginia Ungar quando diz, sobre a condição de trabalho em diferentes settings: "é possível identificar um conjunto de recursos (visíveis ou não) com o que o psicanalista conta em sua caixa de ferramentas" (2015, p. 83).

E aqui temos uma tarefa a mais para o psicanalista: pensar essa atividade calcada na experiência emocional acontecida na sessão, na presença do analista e seu analisando, à luz de novas configurações trazidas pela conversa analítica à distância, se as tomarmos como objeto de reflexão e estudo para além da condição circunstancial.

No trabalho com Beto podemos perceber a delicada tecedura das emoções, realizada na continência exercida pela analista com base em sua presença concreta: o brincar, a gestualidade e o colo físico da analista - signo do seio materno -, primeira âncora do real que, uma vez estabelecida sob as emanações protetoras do bom objeto, abre caminho para as interações mentais da díade. Comove o leitor acompanhar Cecília narrando esse trabalho minucioso de observação de sutilezas na comunicação pré-verbal dessa criança. É lícito duvidar que esse desenvolvimento pudesse ter acontecido em um setting virtual.

Da mesma forma, a presença concreta do analista é imprescindível para muitos analisandos que iniciam o trabalho analítico em condição de extrema vulnerabilidade psíquica, requerendo, de modo semelhante a essa criança, a presença concreta de uma companhia viva (Alvarez, 1994). Faz-se necessário um longo período até que a rêverie do analista permita a essa pessoa desenvolver o reconhecimento das qualidades psíquicas do objeto.

Cinco meses me separam da última escrita desse comentário. Desde então, muita água rolou no caudaloso rio que corre debaixo da ponte que une as duas margens - o analista e seu analisando. Ponte fortemente construída pela pedra e cimento do método psicanalítico e do corpo teórico gestado pela clínica. Já nos tornamos familiares com a nova língua: Zoom, webinar,hangout etc. Através do som e da tela de um pequeno celular, de um iPad ou notebook, fazemos chegar, com a regularidade dos ritmos orgânicos, nossas vozes, ou melhor, nossas palavras e silêncios, imagens, ou melhor, nossa mímica afetiva. Agora já sabemos que funciona. Sonhamos a sessão, nossa mente cria fantasias, podemos perceber a tristeza, alegria ou outros sentimentos nas vozes e expressões de analisandos. O encontro se dá. A parceria se faz.

Virginia Ungar nos propõe:

Talvez possamos pensar a clínica psicanalítica como um dispositivo composto por uma série de elementos heterogêneos que, como todo dispositivo, nasce relacionado com uma situação de urgência ou, pelo menos, com uma situação nova. (2015, p. 83)

Claire ou Beto, nós, analistas, nossos analisandos, todos somos beneficiários da psicanálise e seus instrumentos quando temos a humildade de nos reconhecermos frágeis, necessitados de outra mente que nos ajude a conter nossas angústias e nos acuda em nossa solidão.

Cito Rahel Boraks:

para chegar ao mundo, o ser humano precisa estar firmemente ancorado em contextos acolhedores. Esta base acolhedora ameniza o que seria uma chegada repentina a um exterior que invade, impondo necessidade de rápida adaptação de si. (2020)

Encerro o trabalho com as belas palavras de Cecília:

Quando a solidão é vivida como um pesadelo, a curva vira reta e toda capacidade de pensar se esvai com seus objetos pensantes. Então a vida toda desmorona, e a função de reverie do analista com características de acolhimento empático e desintoxicante, semelhante ao olhar materno, pode proporcionar um mundo com limites (o continente) em que o sentido pode ser encontrado (o contido), reparando-se as falhas iniciais.

Será na experiência vivida na relação analítica que o analisando poderá vir a tolerar melhor a consciência dolorosa de ser um indivíduo separado e só, mas também desenvolver suas potencialidades e riquezas.

 

Referências

Alvares, A. (1994). Companhia viva. Artes Médicas.         [ Links ]

Boraks, R. (2020). Entre agonia e desamparo. Reunião científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, 3 de setembro.         [ Links ]

Ungar, V. (2015). O ofício do analista e sua caixa de ferramentas: a interpretação revisitada. Calibán: Revista Latino-Americana de Psicanálise, 13 (1), pp. 82-98.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 9/10/2020
Aceito em: 10/10/2020

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