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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dez. 2020

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

Não dá mais! A impiedade de Cronos, o idoso e o cenário atual brasileiro1

 

No more! The wickedness of Cronos, the elderly and the current brazilian scenario

 

¡No más! La maldad de Cronos, los ancianos y el escenario brasileño actual

 

Pas plus! La méchanceté de Cronos, les personnes âgées et le scénario brésilien actuel

 

 

Alexandre Patricio de AlmeidaI; Alfredo Naffah NetoII

IPsicanalista, mestre pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, doutorando pelo mesmo programa e instituição, pesquisador bolsista do CNPQ e professor universitário. São Paulo / alexandrepatriciodealmeida@yahoo.com.br
IIPsicanalista, mestre em Filosofia pela USP, doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica e autor de diversos livros e artigos sobre psicanálise. São Paulo / naffahneto@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo lança algumas reflexões sobre o ser idoso no cenário atual brasileiro. Para tanto, toma como referência a carta deixada pelo ator Flávio Migliaccio antes de cometer suicídio. Usando como argumento a impiedade de Cronos, tempo regente e imperativo da finitude, discutem-se as condições sociais e culturais de uma sociedade atravessada pelos imperativos fascistas e assolada pelas incertezas da eminente pandemia. Neste sentido, exploram-se os conceitos de desmentido e ética do cuidado, ambos pensados com base na teoria de Sándor Ferenczi. Por fim, salienta-se a importância da educação como uma perspectiva de esperança no futuro.

Palavras-chave: idoso, fascismo, suicídio, educação, Sándor Ferenczi


ABSTRACT

The article launches some reflections on being elderly in the current Brazilian scenario. To this end, reference is made to the letter left by actor Flávio Migliaccio before committing suicide. Arguing the wickedness of Cronos, the ruling time and imperative of finitude, we discuss the social and cultural conditions of a society crossed by fascist imperatives and plagued by the uncertainties of the eminent pandemic. In this sense, the concepts of denial and ethics of care are explored, both thought from the theory of Sándor Ferenczi. Finally, the importance of education is highlighted as a prospect of hope for the future.

Keywords: elderly, fascism, suicide, education, Sándor Ferenczi


RESUMEN

El artículo lanza algunas reflexiones sobre ser anciano en el escenario brasileño actual. Con este fin, se hace referencia a la carta que dejó el actor Flávio Migliaccio antes de suicidarse. Argumentando la maldad de Cronos, el tiempo de gobierno y el imperativo de la finitud, discutimos las condiciones sociales y culturales de una sociedad atravesada por imperativos fascistas y plagada por las incertidumbres de la eminente pandemia. En este sentido, se exploran los conceptos de negación y ética del cuidado, ambos pensados desde la teoría de Sándor Ferenczi. Finalmente, se destaca la importancia de la educación como una perspectiva de esperanza para el futuro.

Palabras clave: ancianos, fascismo, suicidio, educación, Sándor Ferenczi


RÉSUMÉ

L'article lance quelques réflexions sur le fait d'être âgé dans le scénario brésilien actuel. À cette fin, il est fait référence à la lettre laissée par l'acteur Flávio Migliaccio avant de se suicider. Faisant valoir la méchanceté de Cronos, le temps régnant et l'impératif de finitude, nous discutons des conditions sociales et culturelles d'une société traversée par des impératifs fascistes et en proie aux incertitudes de l'éminente pandémie. En ce sens, les concepts de déni et d'éthique des soins sont explorés, tous deux pensés à partir de la théorie de Sándor Ferenczi. Enfin, l'importance de l'éducation est soulignée comme une perspective d'espoir pour l'avenir.

Mots-clés: personnes âgées, fascisme, suicide, éducation, Sándor Ferenczi


 

 

Introdução

No início do mês de maio deste ano fomos surpreendidos pela triste notícia do suicídio do ator Flávio Migliaccio. Além da consternação eminente e do sentimento de impotência que comoveu a todos nós, uma série de inquietações foram provocadas, principalmente, pela carta deixada por ele. Como uma espécie de porta-voz para um desabafo de desespero (e desamparo) o documento trazia os seguintes dizeres: "Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos, como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão de que foram 85 anos jogados fora, num país como este. E com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje!" (Ator Flavio, 2020).

Um suicídio sempre nos causa certa indignação, seja por nossa responsabilidade (direta ou indireta) de culpa, seja pelo incômodo de lidar inesperadamente com a finitude. "Por trás das motivações do aparente ato suicida, existem mecanismos mentais e atos não conscientes" (Cassorla, 2017, p. 38). Aqui, adentramos o território psicanalítico, pois, ao nos indagarmos sobre as possíveis razões da ação suicida, refletimos sobre as questões que bordejam a esfera social e cultural, até alcançar a singularidade psíquica dos próprios indivíduos. Nesta ótica, Freud nos dirá que:

É certo que a psicologia individual se dirige ao ser humano particular, investigando caminhos pelos quais ele busca obter a satisfação dos impulsos instintuais, mas ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com outros indivíduos. Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado. (Freud, 1921/2011, p. 14)

Partindo, então, de nosso contexto social atual, a carta de Flávio nos chega num período sombrio, tomado de incertezas e configurações políticas e econômicas que assolam a nossa integridade e atravessam os nossos modos de ser e existir. A pandemia gerada pelo novo coronavírus abalou as estruturas de uma sociedade firmada em convicções sustentadas pelo consumo que, ilusoriamente, garantem o seu status de felicidade baseado no poder de compra e de posse. A mudança radical, ocorrida na vida de grande parte das pessoas de todo o mundo, levaram-nas a buscar outros modos de satisfação. Movimento que resultou na valorização da arte, da leitura, do convívio social e da potência das relações humanas - fatores que há muito não eram considerados com a mesma relevância.

Ao dirigirmos a nossa atenção para o texto de Flávio, temos dois aspectos que pretendemos salientar a fim de propormos algumas possíveis reflexões sobre a temática do tempo que nos envolve. O primeiro deles é a respeito do tempo cronológico da vida, oriundo de Cronos, rei dos Titãs. Cronos era o deus do tempo, sobretudo, quando visto em seu aspecto destrutivo, o tempo inexpugnável que rege os destinos e a tudo pode devorar. Essa figura mitológica era, usualmente, representada segurando uma foice, com a qual teria castrado e deposto Urano, seu pai. Temos, então, uma figura que nos lembra a imagem da morte ocidental, sempre representada com uma foice responsável por romper o delicado fio que sustenta a vida. Cronos, remetido à idade, ao envelhecimento, à passagem natural da vida, nos leva a questionar-nos sobre as razões de um indivíduo com 85 anos ter cometido um suicídio. É óbvio que não sabemos dos motivos reais, muito menos é nosso objetivo especular a respeito. São as palavras da carta que nos tocam e nos provocam: "A velhice neste país é o caos, como tudo aqui". O tempo cronológico - o envelhecimento - entra nesse contexto como um pesar. O que nos remete a pensar no presente. O que faz a velhice ser um caos neste país? Esse será nosso primeiro ponto de partida para, em seguida, adentrarmos em outras reflexões.

O segundo aspecto que abordaremos, ainda tomando a carta de Flávio como referência, é a parte final de sua escrita: "Cuidem das crianças de hoje!" Neste ponto, temos dois tempos: o presente representado pelo hoje e o futuro representado pelas crianças. O que o ator quis nos dizer quando escolheu essas palavras para poder expressar o seu sofrimento antes do fim? Novamente, não nos compete fazer quaisquer especulações voltadas à vida pessoal de Flávio. O que nos compete, no entanto, é lançar algumas reflexões sobre a tragédia da vida real. Como diz um ditado popular que corre pelas redes sociais: "Algo de errado não está certo!" Que tempos são esses que ultrapassam os limites cronológicos e percorrem o mal-estar que emerge do passado, fixa-se no presente e resiste ao futuro?

O episódio de Flávio representa um grito de socorro de uma sociedade que perece em sua doença. Como psicanalistas e profissionais da área de saúde mental, não podemos deixar de refletir sobre esses tempos. Freud, durante a Primeira Grande Guerra (1914-1918), fez de sua dor um expoente criativo, escrevendo alguns de seus textos mais originais. Simultaneamente a isso, pensar sobre a dor que nos invade, enquanto assistimos a casos como esses, também nos propõe um certo grau de sensibilidade e empatia - características indispensáveis ao exercício da psicanálise.

 

O tempo cronológico: ser idoso no Brasil

No Japão a idade avançada é um sinal de status. Lá, por exemplo, em geral, quando os viajantes se registram em hotéis eles dizem a idade para assegurar que receberão a deferência apropriada. Em muitas outras culturas, em contrapartida, envelhecer é visto como indesejável. Estereótipos inconscientes sobre envelhecimento, internalizados na juventude e reforçados durante décadas por atitudes da sociedade, podem ter se tornado autoestereótipos que, inconscientemente, afetam as próprias expectativas das pessoas mais idosas em relação ao seu comportamento e com frequência atuam como profecias autorrealizáveis. (Papalia, 2009, p. 627)

Quando falamos das características psíquicas e emocionais de um determinado período da vida humana, é imprescindível que consideremos o contexto regional e todas as configurações que o cercam. Compreender a terceira idade no Brasil não é mesma coisa do que compreendê-la dentro de alguns outros cenários, como, por exemplo, o Japão. Em nosso país, a velhice não é uma etapa da vida normalmente valorizada. Um levantamento feito pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos revelou que o número de denúncias de violência contra idosos aumentou 13% em 2018, em relação ao ano anterior. Foram registrados 102 casos por dia (Violência, 2019), sendo a maioria (85,6%) cometida nas residências das vítimas, por filhos (52,9%) e netos (7,8%). Esses números alarmantes nos indicam que a desvalorização do idoso começa dentro do próprio contexto familiar - uma questão de ordem cultural que certamente tem relevância.

Além desses dados quantitativos que retratam nossa realidade social, é de pleno saber que o adulto idoso tem particularidades bem conhecidas - mais doenças crônicas e fragilidades, acarretando mais custos ao Estado, e contando com menos recursos sociais e financeiros. Em "Análise terminável e interminável", de 1937, Freud, ao delinear a eficácia do tratamento psicanalítico em pessoas idosas, nos dirá que "todos os desenvolvimentos, vínculos e distribuições de força se revelam imutáveis, fixos e rígidos" (Freud, 1937/2018, p. 310) nessa etapa da vida. Envelhecer, ainda que sem doenças crônicas, envolve alguma perda funcional. Diante de tantas situações adversas, o cuidado do idoso deve ser estruturado de forma diferente do que é realizado com o adulto mais jovem. A atual prestação de serviços de saúde, assim como de outros setores, fragmenta a atenção ao idoso, com prejuízos que não se limitam somente ao campo físico, mas se estendem às vicissitudes psíquicas. Nesse âmbito, o pesar sentido pelo corpo acaba ganhando dimensões ainda mais profundas, pois os fatores sociais e culturais entram como agravantes negativas durante esse delicado momento da vida humana.

A expressão "A velhice neste país é um caos, como tudo aqui" nos remete a aspectos políticos e econômicos vivenciados atualmente que precisamos considerar. Tirando o fato de estarmos passando por tempos de incertezas, gerados pela pandemia mundial, com os reflexos sentidos nas mais variadas esferas, nosso país, em específico, também vive um momento de instabilidade provocado pela instância governamental. A onda de um autoritarismo fascista que adentra nossas portas assim como um discurso de ódio proferido por nossos líderes configuram episódios que levam a adoecer milhares de brasileiros sofrendo o impacto desse contexto inóspito, mesmo que indiretamente. Ver o noticiário pode ser um momento de extrema dor e angústia, arrebatado pela falta de esperança. Colhemos os frutos de uma educação defasada que não priorizou valores, assim como se perdeu em seus referenciais. Por falta de orientação, conhecimento histórico e político, uma camada significativa de nossa população, na tentativa desesperada de eliminar um suposto mal extremo, optou por eleger outro ideal extremista (lembrar que representantes figurativos do bom e do mau predominam nas fantasias infantis). Quando permanecemos nessa posição dual, em que a ambivalência não pode ser considerada, os riscos de alienação são muito elevados. Marion Minerbo nos fala sobre isso na seguinte passagem:

Na modernidade, a instituição família era um grupo formado necessariamente por um casal heterossexual, eventualmente com filhos. Hoje, na pós-modernidade, esse conceito é mais abrangente, e pode incluir outras formas de agrupamento. Então, relacionando esses dois momentos da nossa civilização com formas típicas de sofrimento psíquico, propus a seguinte ideia: o sofrimento neurótico estaria relacionado com a rigidez das instituições na modernidade, enquanto o sofrimento não neurótico ou narcísico, com a crise dessas mesmas instituições na pós-modernidade. (Minerbo, 2019, pp. 202-203)

A queda das referências institucionais que antes tinham grande peso sobre as pessoas - como a escola, a política, a família etc. - despontou para um adoecimento narcísico produto de uma frágil construção do Eu que motiva a busca incessante por padrões capazes de sustentar as bases estruturais desse Eu originalmente fragilizado. Portanto, a eleição da extrema direita entraria, perante esse cenário, para firmar as estruturas que há muito jazem perdidas. Temos, então, uma espécie de busca pela ordem restaurada por meio de uma figura idealizada que, na verdade, não existe. Concomitantemente, se estamos falando de sofrimentos narcísicos, é preciso lembrar que esses quadros têm uma gênese predominantemente infantil, pois nos remetem àquela criança que ficou perdida e sem referencial, mas que agora procura por meio de um ideal totalitário uma referência a ser seguida para a retomada da construção de seu próprio Eu.2

Diante desse quadro, que é reflexo da mais pura ignorância sustentada por opiniões radicalizadas, somos acometidos por um sentimento de extrema agonia e desespero. É como se o golpe do martelo batesse de uma vez só, estremecendo as bases populares, tanto pela via da inevitável contaminação viral à qual estamos vulneráveis, quanto pela via do discurso misógino e intolerante sustentado pela disseminação irrefreável das fake news. Por mais que evitemos ter acesso a essas notícias caóticas, elas nos atingem pelas mais variadas vias - redes sociais, rádio, televisão ou até mesmo através do bate-papo informal entre familiares. Esse clima de hostilidade e ameaça colabora para despertar sentimentos persecutórios e suscita o mais profundo desamparo. Sentimo-nos como se não houvesse luz no fim do túnel. Acordar significa iniciar um processo de sobrevivência diária baseado na resistência à avalanche de notícias ruins que nos cercam. Com esse clima de pesar, vamos riscando, pouco a pouco, os dias de nosso calendário, na expectativa de controlar a voracidade de um Cronos que nos parece insaciável.

Enquanto escrevíamos esses apontamentos acerca dessa condição de desamparo, fomos tomados pela lembrança das ideias de um autor bastante significativo na história da psicanálise, que pesquisou e publicou importantes contribuições sobre a temática do trauma. Trata-se, aqui, do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933). Um dos mais geniais discípulos de Freud, Ferenczi se debruçou sobre os variados desdobramentos do trauma, dando outro sentido à sua origem e constituição. O autor nos apresenta a noção de desmentido (Verleugnung) como substancial à gênese traumática. Explicamos melhor: para Ferenczi (Kupermann, 2019), há três tempos do trauma levando sempre em conta a relação da criança com o adulto abusador. "A agressão por parte do adulto caracteriza, assim, o primeiro momento do evento traumático, incompreensível para a criança, que, incapaz de nomear sua dor, seria remetida ao que designamos tempo do indizível" (Kupermann, 2019, p. 130, itálicos do autor). Aqui, a tendência central do movimento psíquico é promover a introjeção do responsável pela constituição do evento traumático. Essa introjeção visa a trazer a figura do abusador para o mundo interno, a fim de poder controlá-la por meio do pro- cesso primário, por meio do qual é sempre possível operar deslocamentos e condensações dissimuladoras. Esse é, entretanto, "um tiro que sai pela culatra", pois, através desse mecanismo de introjeção, a criança acabará por se confundir com a figura do abusador, ao longo do fluxo temporal. Nesse meio tempo, acaba procurando outro adulto - que não seja o agressor - com o qual estabeleceu uma relação de confiança "para ser o destinatário do seu padecimento inominável, de modo que, com sua ajuda, consiga simbolizá-lo" (Kupermann, 2019, p. 130). A esse segundo momento, podemos chamar de tempo do testemunho.

O evento traumático propriamente dito se configura em um terceiro momento, caracterizado pelo fracasso do testemunho do sujeito agredido, no qual sua voz não pôde ser escutada e a construção da sua versão do acontecimento traumático não pôde ser reconhecida: o tempo do desmentido. (Kupermann, 2019, p. 131)

De acordo com o que foi exposto, portanto, o trauma seria efeito de uma mentira do adulto oferecida à criança como uma resposta à sua tentativa de buscar amparo após a situação traumática real. "Dessa maneira, mente o agressor, para si mesmo e para o violado, por não suportar sua responsabilidade; e 'mente' o sujeito traumatizado, por não tolerar a solidão engendrada pelo abandono ao qual se viu remetido" (Kupermann, 2019, p. 131). Caminhamos com o autor:

Incapaz de expressar sua indignação e seu ódio, a identificação ao agressor, junto à incorporação da sua culpa, revelaria a maneira encontrada pelo sujeito para sobreviver às angústias de morte provocadas pela injúria sofrida e pela dimensão irrepresentável do excesso traumático. Nesse caso, a incapacidade para estar só se impõe de modo irredutível, não sendo possível expressar qualquer ambivalência em relação ao objeto com o qual se identificou. (Kupermann, 2019, p. 131)

Nesse sentido, ampliamos o pensamento ferencziano para dimensões sociais, ao compreendermos que, diante de uma sociedade indiferente a seu sofrimento, o indivíduo idoso permanecerá numa posição de extremo abandono. Ou seja, ao compartilhar suas dores e angústias com pessoas de um contexto social que não o ouve ou nem sequer se compadece de seu sofrimento, a pessoa idosa não encontra legitimidade em sua dor, o que a incapacita para simbolizar suas próprias agonias. Nesse estado de profundo desamparo a dor psíquica não encontra outra saída, senão ser dirigida ao próprio eu, o que irá gerar o enraizamento de um martírio que atrofia a capacidade simbólica e subjetiva, empobrecendo a vida emocional como um todo.

Ao desenvolver a questão traumática, Ferenczi nos aponta certos direcionamentos específicos da prática psicanalítica. O autor defende a ideia de um tato emocional, que deve ser utilizado pelo analista ao lidar com a dor do paciente. Ser indiferente ao sofrimento serviria apenas para aumentar a proporção da agonia ocasionada pelo evento que gerou o trauma original. Nas palavras do autor:

Adquiri a convicção de que se trata, antes de tudo, de uma questão de tato psicológico, se saber quando e como se comunica alguma coisa ao analisando, quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair dele certas conclusões; em que forma a comunicação deve ser, em cada caso, apresentada; ... e em que momento o silêncio é uma tortura ao paciente etc. ... O tato é a faculdade de "sentir com" [Einfühlung ]. ... por certo não é dado à psicanálise poupar o paciente de todo o sofrimento; com efeito, aprender a suportar um sofrimento constitui um dos resultados principais da psicanálise. (Ferenczi, 1928/2011a, pp. 31-32, itálicos do autor)

Não se trata, de forma alguma, de extrema benevolência ou um ato de caridade do analista, mas sim de uma postura de sensibilidade e delicadeza perante o sofrimento de um paciente traumatizado. Escutar sua dor, antes de iniciar qualquer interpretação, seria um movimento imprescindível para legitimar essa agonia que habita o interior do indivíduo, abrindo possibilidades de simbolizações. Ferenczi, nesse mesmo texto, denuncia a hipocrisia de alguns psicanalistas que permanecem numa posição inatingível no setting diante das emoções dos pacientes; grosso modo, o silêncio da neutralidade elevaria a intensidade das reminiscências traumáticas.

Saindo do consultório e pensando em nossa realidade social, legitimar o sofrimento do idoso seria, portanto, simplesmente escutá-lo, atribuindo-lhe um lugar capaz de oferecer certo sentido a suas angústias. Parece simples quando falamos de uma escuta, mas sabemos que atualmente muitos idosos são ignorados dentro de suas próprias famílias. Suas opiniões são desconsideradas, assim como suas queixas. Não há a legitimidade de um lugar, quanto mais de seu sofrimento. É como se sua voz ecoasse num vazio sem significações. Deparamo-nos, então, com um gatilho para intensificar sua dor existencial, já assolada pelas limitações físicas e pela indiferença social. Num espaço em que não se pode ser visto ou ouvido, torna-se quase impossível permanecer existindo. A finitude advinda naturalmente pela existência de Cronos tende a ser acelerada por um quadro cultural que menospreza as mazelas da velhice.

 

O presente e o futuro

"Cuidem das crianças de hoje!" é a frase que encerra a carta de Flávio. Expressão que deixa subentendido o tom de esperança do ator, mesmo em um momento de extrema agonia. Mas o que seria cuidar das crianças de hoje?

Antes de qualquer coisa, pensamos que a educação está diretamente voltada ao futuro de nossas crianças. O que nos desespera, porém, é o sentimento de revolta que nos acomete ao vermos as condições de nossa situação educacional atual. A educação de qualidade em nosso país, infelizmente, é vendida como um produto consumido apenas por quem tem condições de pagar - característica que nos remete ao abismo da desigualdade social, o maior imperativo de nossa realidade. O Estado não cumpre suas obrigações, e a educação segue aos trancos e barrancos ano após ano - o que nos situa em um dos piores países do mundo no ranking educacional.

Em contrapartida, o espaço familiar também possui enorme importância. A escola nada mais é do que uma extensão do trabalho inicial que fora desenvolvido pela própria família. Não só a psicanálise, mas grande parte das abordagens psicológicas reconhece a dimensão do ambiente no que tange ao processo maturacional infantil. Antes mesmo de Winnicott - um dos psicanalistas que mais enfatizaram a importância do meio externo -, Sándor Ferenczi já destacava o papel da família como primordial ao desenvolvimento do infante. No texto "A adaptação da família à criança", de 1928, o autor inverte os padrões impostos até aquele momento, quando se acreditava que a criança deveria adaptar-se à família. Citamos Ferenczi:

Num dos estágios precoces do desenvolvimento embrionário, uma simples picada de alfinete, um leve ferimento, pode impedir a formação de toda uma parte do corpo. Um outro exemplo: num quarto onde existe uma única vela, a mão colocada perto da fonte luminosa pode obscurecer a metade do quarto. O mesmo ocorre com a criança se, no começo de sua vida, lhe for infligido um dano, ainda que mínimo: isso pode projetar uma sombra sobre toda sua vida. É muito importante entender a que ponto as crianças são sensíveis; mas os pais não o creem; não podem imaginar a extrema sensibilidade de seus filhos e comportam-se, na presença deles, como se as crianças nada sentissem diante das cenas excitantes a que assistem. (Ferenczi, 1928/2011b, pp. 5-6, itálicos nossos)

O autor faz com que atentemos para a necessidade dos cuidados atribuídos à criança no estágio inicial de seu desenvolvimento. Qualquer dano infligido ao infante poderia, na concepção de Ferenczi, causar um prejuízo permanente na constituição psíquica e emocional do indivíduo; portanto, seria essencial compreender a que ponto as crianças são sensíveis e vulneráveis às influências do meio. Com isso, Ferenczi não despreza, de modo algum, os fatores genéticos e constitucionais, mas põe em primeiro plano a importância do cuidado ambiental - o que inaugura, no cenário psicanalítico, uma espécie de ética do cuidado.3

Esse ideal, porém, não implica a abrangência de um meio perfeito em que nada possa faltar ao indivíduo em crescimento. O que queremos dizer, especialmente, é que um olhar atento deve ser direcionado às etapas iniciais do desenvolvimento infantil. A família é responsável por apresentar o mundo ao bebê em pequenas doses e, neste sentido, inserir a criança na esfera social. Posto isso, um indivíduo que cresce num ambiente inóspito, marcado pelo discurso de ódio e intolerância, tenderá a reproduzir esses valores em seu espaço de convívio. Ideologias extremistas muitas vezes são passadas de geração para geração, por meio de processos identificatórios que tingem as nuances do psiquismo.

Esses dias, percorrendo o feed de notícias de uma rede social, deparamos com um menino de aproximadamente 11 anos proferindo um discurso de ódio contra determinado partido político, ao mesmo tempo em que era ovacionado por algumas dezenas de admiradores que exaltavam sua postura. A cena vista é a mais bizarra possível: uma criança fazendo declarações políticas com tanta convicção, como se fosse a única dona da verdade, resultado de uma possível identificação com o discurso de ódio familiar, provavelmente o motor que produziu essa postura alienante. Ao tomar partido de um único lado, não há abertura para se enxergar o todo. Não existe espaço para a ambivalência. Ou é isto ou é aquilo - sem qualquer meio-termo. Lembramos que convicções não permitem dúvidas e, por conseguinte, empobrecem o raciocínio crítico. E, como diria Melanie Klein, essa postura é típica da posição esquizoparanoide, com suas cisões entre bem e mal, e seus sentimentos persecutórios característicos.4

Sabemos, porém, que é esse tipo de pensamento e postura que tomou forma e engrossou o caldo da cultura brasileira atual. Em meio a essa pandemia ainda temos que lidar com discussões políticas endossadas pela hostilidade, misoginia e preconceito. Ideais que assolam nossas crianças de hoje e que, provavelmente, terão um impacto significativo no futuro, caso não mudemos nossas atitudes a partir de agora. A família surge, então, como precursora da escola, responsabilizando-se pelos cuidados essenciais que sustentarão a integridade do caráter e a transmissão de valores que vão assentar os alicerces da personalidade. A escola, dependendo do impacto de seu trabalho, poderá, porém, reverter (ou amenizar) alguns padrões preestabelecidos, propondo um pensamento crítico e uma ação educativa respaldada no amor, na empatia e no respeito às diferenças. Princípios estes indispensáveis à estruturação de uma sociedade mais humana e comprometida com o bem-estar comum.

Partindo desse pressuposto, não defendemos, em absoluto, a existência de uma escola ideal, sem problemas ou conflitos. O fundamental, para nós, é que a instituição educacional promova, tendo em vista crianças e jovens, experiências de segurança, de acolhimento e desenvolvimento progressivo de condições intelectuais e emocionais, para que eles possam lidar com toda sorte de dificuldades, sejam elas de ordem meramente cognitivas, sejam as atreladas a questões de formação de vínculos, de relacionamento com seus pares, com a autoridade dos docentes, com a organização escolar ou com as políticas públicas que compõem o cenário estudantil.

O espaço educativo, que permite o surgimento do impulso criador, resultante dos processos de autoconhecimento, oferece condições para o amadurecimento saudável das pessoas. O indivíduo saudável é aquele que possui a capacidade de lançar sempre um olhar próprio sobre a realidade que o afeta. Que é capaz de pensar com autenticidade, desenvolvendo um raciocínio crítico, com base na análise da totalidade dos fatos - fugindo de leituras rasas e levianas. Esse movimento de liberdade rompe as amarras derivadas do processo de identificação. É preciso, todavia, reconhecer, de modo radical, que todo sujeito é situado num ambiente. Insistir numa leitura que articula esses fatores é fundamental para se repensar a constituição da subjetividade singular e social - por isso a importância do pensamento de Ferenczi.

Em meio a esse contexto atual repleto de incertezas e debilidades, a escola surge como agente de esperança para um futuro promissor. Mas, para isso, ela também precisa se reinventar e traçar prioridades. Uma educação mecânica que apenas reproduz o discurso dominante em nada poderá colaborar para a chegada de dias mais luminosos. Neste sentido, citamos Rubem Alves:

Paulo Freire, em suas obras, e Sartre - em seu prefácio a Fanon - observam que o que caracteriza o oprimido é sua incapacidade para falar e o seu medo de fazê-lo. Temo que estejamos formando milhares de bonecos que movem as bocas e falam com a voz de ventríloquos. Especialistas em dizer o que os outros disseram, incapazes de dizer sua própria palavra. Daí o fracasso de nossa capacidade para escrever e para falar. (Alves, 2012, p. 85)

O fato é que a nossa situação atual é bem desanimadora. Como mencionamos no início deste item, o Estado vem negligenciando a educação há muitos anos. Hoje, mais do que nunca, sofremos ataques massivos de ideais totalitários que percorrem o espaço escolar e arrebatam a criatividade de nossos alunos, lançando às traças a conjectura de liberdade. Ao olhar para o presente, não vislumbramos mudanças no futuro - o que nos deixa numa posição de derradeira angústia e desamparo. Talvez, somente a mudança nessas diretrizes possa oferecer a expectativa de dias melhores. Enquanto isso, depositamos nossas esperanças no trabalho individual de professores, instituições, círculos sociais e pequenos núcleos. "Cuidem das crianças de hoje" pode ser o mais digno conselho para legitimar um futuro longínquo. Para tanto, repensar os formatos da educação é urgente e necessário.

 

Algumas palavras finais

Cronos era o deus do tempo, sobretudo quando visto em seu aspecto destrutivo, o tempo inexpugnável que rege os destinos e tudo pode devorar. Cronos é impiedoso, pois chega com sua força e engole a todos, sem exceção. Não escapamos à sua ira, muito pelo contrário, apenas esperamos por sua chegada. O que faz, porém, alguém querer lançar-se à sua frente, tomando as rédeas do destino ao finalizar um ciclo antes da aproximação dessa divindade?

Perguntas às quais não ousamos responder. Cada um tem seu motivo para encerrar uma história. Talvez, a falta de esperança. Talvez, a dor do desamparo. Hipóteses e somente hipóteses. Não cabe a nós julgar as pessoas e suas próprias razões, o que nos cabe é lançar reflexões com o tempo que nos é dado. Aproveitar as brechas de Cronos e pensar sobre nosso ser e estar neste mundo.

A ameaça de um ideal fascista direciona nossos olhares para a única saída capaz de romper tais pragmatismos: a educação. Em 1932, em resposta à pergunta de Einstein, Freud escreve os motivos pelos quais o homem pratica a guerra. A seu ver, o ser humano é movido por uma força interna destrutiva inerente à sua existência que ele chamou de pulsão de morte. Para o mestre de Viena, todos nós somos constituídos por esse motor pulsional que nos induz à destruição (a nossa e a dos outros). Diante de tal intensidade psíquica, qual seria, então, a única saída possível para evitarmos a catástrofe?

Duas parecem ser as mais importantes características psicológicas da cultura: o fortalecimento do intelecto, que começa a dominar a vida instintual, e a internalização da tendência à agressividade, com todas as suas consequências vantajosas e perigosas. Ora, a guerra contraria de forma gritante as atitudes psíquicas que o processo cultural nos impõe ... (Freud, 1932/2010, p. 434)

Ao mencionar o processo cultural, Freud, mesmo que indiretamente, está se referindo às vertentes educacionais. Somente a educação ancorada em uma prática reflexiva e questionadora é capaz de dissolver os nós da ignorância extremista. Pensar sobre o nosso tempo hoje significa questionar os modelos de vivência social e cultural. Sabemos que não seremos os mesmos após este período de pandemia. A pergunta que fica é o que queremos propor para o futuro, com base nas vivências presentes e nas experiências passadas?

Que possamos, acima de qualquer coisa, desenvolver um olhar humano, empático e sensível sobre o outro que está diante de nós; oferecendo visibilidade a seu sofrimento. Esse outro, que hoje é a representação simbólica de um futuro condenado pelo abandono, pode ser ressignificado com base em nossas intervenções oferecidas no tempo presente. Um ato de desconstrução pelo qual a carta de Flávio clama com pesar e ardor, e por isso atravessa qualquer tempo.

 

Referências

Alves, R. (2012). Conversas com quem gosta de ensinar. Papirus.         [ Links ]

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Recebido em: 27/5/2020
Aceito em: 21/11/2020

 

 

1 Trabalho realizado com o apoio de financiamento do CNPQ.
2 Em "Psicologia das massas e análise do eu", de 1921, Freud nos fala dessa situação quando menciona o exemplo do líder do Exército e o da Igreja que são escolhidos pelo povo em prol da realização de seus ideais. Nas palavras do autor: "Já suspeitamos que a ligação recíproca dos indivíduos da massa é da natureza dessa identificação através de algo afetivo importante em comum, e podemos conjecturar que esse algo em comum esteja no tipo de ligação com o líder" (Freud, 1921/2011, p. 65).
3 "A partir da publicação desse ensaio, enriquecidos pelos desenvolvimentos subsequentes de Balint e Winnicott, a concepção vigente para os psicanalistas identificados com o pensamento das relações de objeto seria a de que a adaptação primária - condição para a experiência de onipotência criadora do sujeito - é aquela promovida pelo ambiente frente à chegada do infans" (Kupermann, 2019, p. 91).
4 Em seu texto "Notas sobre alguns mecanismos esquizoides", de 1946/1996, Melanie Klein apresenta pela primeira vez o conceito de posição esquizoparanoide. Para a autora, no desenvolvimento normal, a posição esquizoparanoide é caracterizada por uma divisão (split) entre os objetos bons e maus, e entre o ego que ama e o ego que odeia. Essa é uma precondição necessária para a integração nos estádios posteriores do desenvolvimento, caso as experiências boas predominem sobre as ruins e os sentimentos de hostilidade sejam mitigados pelo amor.

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