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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dez. 2020

 

TEMAS LIVRES

 

Decameron: faces da desobjetalização e o relançar de laços

 

Decameron: faces of deobjectalization and relaunching ties

 

Decameron: rostros de desobjetalización y relanzamiento de lazos

 

Decameron: des visages de désobjectalisation et de relance des liens

 

 

Berta Hoffmann Azevedo

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. São Paulo / bertaazevedo@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho reúne múltiplas faces da desobjetalização que se apresentaram para a autora no plano individual e da cultura no contexto de pandemia de 2020 e afirma a função de investimento significativo da analista na recuperação da dialética fecunda quando a força de desinvestimento atinge alcances radicais. O livro de Giovanni Boccaccio, escrito durante a peste negra de 1348, ofereceu-se no horizonte como favorecedor do resgate da dimensão ligadora da analista e se entrelaça no texto como modelo de aposta na palavra para a reinstalação de um movimento criador.

Palavras-chave: pandemia, investimento, desobjetalização


ABSTRACT

The present work brings together multiple faces of desobjectalization that were presented to the author at the individual level and of culture in the context of the 2020 pandemic and affirms the analyst's significant investment function in the recovery of the fruitful dialectic when the divestment force reaches radical reach. Giovanni Boccaccio's book, written during the black plague of 1348, offered itself on the horizon as a fighter for the rescue of the analyst's connecting dimension and is interwoven in the text as a model of betting on the word for the reinstallation of a creative movement.

Keywords: pandemia, investment, desobjectalization


RESUMEN

El presente trabajo reúne múltiples caras de desobjectalización que fueron presentadas al autor a nivel individual y de cultura en el contexto de la pandemia de 2020 y afirma la significativa función de investidura del analista en la recuperación de la dialéctica fecunda cuando la fuerza de desinvestidura alcanza un alcance radical. El libro de Giovanni Boccaccio, escrito durante la peste negra de 1348, se ofreció en el horizonte como un luchador por el rescate de la dimensión ligadora del analista y se entrelaza en el texto como modelo de apuesta por la palabra para la reinstalación de un movimiento creativo.

Palavras clave: pandemia, investidura, desobjetalización


RÉSUMÉ

Le présent travail rassemble de multiples visages de désobjectalisation qui ont été présentés à l'auteur au niveau individuel et de la culture dans le contexte de la pandémie de 2020 et affirme la fonction d'investissement significative de l'analyste dans la reprise de la dialectique féconde lorsque la force de désinvestissement atteint une portée radicale. Le livre de Giovanni Boccaccio, écrit pendant la peste noire de 1348, s'offrait à l'horizon comme un combattant pour le sauvetage de la dimension connectante de l'analyste et s'entremêlait dans le texte comme modèle de pari sur le mot pour la réinstallation d'un mouvement créatif.

Mots-clés: pandémie, investissement, désobjectalisation


 

 

Sonhei que eu estava na China com meus amigos, a gente parou numa banquinha de rua e o atendente era tão bonito que eu me apaixonava. Ele me dizia que ia me levar até o hotel, só que quando chegávamos lá ele se transformava em uma barata, tipo Kafka.

Eu sentia nojo, medo e saía correndo. Então apareceu um policial tipo MIB que me dizia "que bom que você não teve maior contato com ele, ele iria sugar sua energia".

 

Por um triz...

As coisas do mundo só adquirem sentido na medida em que passam por um movimento psíquico de investimento. Trata-se de uma constatação quem sabe óbvia essa, para um psicanalista, mas em torno da qual me vi refletindo ao tentar metabolizar os efeitos contratransferenciais de uma sessão.

Era a terceira semana de quarentena, e meu consultório, como o da maioria, havia migrado para o formato virtual. Eu aguardava por Rebeca, paciente cujo trabalho de análise já durava um ano. Ela aparentemente não estava entre aqueles especialmente sensíveis à imperiosa mudança do enquadre pela qual passávamos. Recebeu bem, compreendia a necessidade do isolamento, exasperava-se de ver a posição negacionista de amigos e governantes. Continuava a trazer suas angústias, que naquele momento giravam em torno de um relacionamento que exigia dela uma particular dança de aproximações cuidadosas que evitasse espantar seu parceiro. Sempre que a intensidade aumentava e a fazia sentir que estavam se envolvendo, ela era surpreendida por um pedido de tempo para que ele pudesse entender o que sentia. No início da quarentena ele quis ficar com ela, há dez dias já não mais, nem sabia se aguentava manter qualquer envolvimento. Ela então voltou a estar sozinha em sua casa, trabalhando muito, como sempre o fez. É uma moça que se construiu por si mesma, com seu trabalho e estudo, vinda de uma família descrita como simples em todos os sentidos. Ainda que tivessem boa vontade, intuía não poder contar com os pais em nenhuma dimensão que pudesse vir a precisar. Isso eu já sabia de ouvi-la dizer, mas sua solidão e desamparo ganharam corpo e uma violência que contratransferencialmente pude agora sentir vivamente.

Sem aviso prévio, recebo uma mensagem que me fazia saber que estavam impossíveis as sessões virtuais, e que não mais viria. Fico surpresa, confusa, me pergunto de onde vinha aquilo e como não escutei algo assim se desenhando. Será que me enganei imaginando poder manter as análises nessas condições de isolamento? Contenho minhas dúvidas e sustento que a aguardaria para a sessão.

Ela aceita conectar, e a violência do desinvestimento me deixou preocupada, chegando a alcançar em mim um mal-estar físico. Com uma vigorosa barreira montada e uma agitação impaciente, me diz que está insuportável tanto computador. Precisava trabalhar virtualmente o dia inteiro e não queria happy hour virtual, análise remota, ou qualquer desses encontros que não só não satisfazem, como chegam a fazer mal, já que no fundo se sabe sozinha. Animada por essa constatação desiludida, até mesmo dos grupos todos de WhatsApp havia se retirado. Preferia curar as ansiedades no banho e ficar quieta em sua cama sem contato algum. Fico sabendo que andou pensando sobre os tempos de guerra, em especial, sobre o papel da comunidade nesses momentos. Consigo marcar o que ela mesma formulava, mas havia um movimento de desesperança bastante radical, que parecia denunciar um certo truque nas relações: todos dizem "estou aqui, você não está só", mas no fundo cada um tem sua vida, e ela estava sozinha. As pessoas imaginam compreender, mas, em suas posições amorosas privilegiadas, ninguém vive a solidão que ela sente. Falamos sobre essas ideias, e sustento que não era hora de interromper análise alguma, eu estaria aguardando por ela em nosso horário. Me surpreendo quando ela consente e desligo sentindo o peso do que acabava de viver.

O que seria esse corte abrupto de laços? Por que o virtual perdia o sentido de encontro potencial? Como entender esse recolhimento que me parecia tão nocivo e infértil? E, ainda, qual a relação entre tal fechamento obstinado travestido de lucidez e sua recente desilusão amorosa?

Minha impressão era de ter se levantado um véu, o que a levava a testemunhar, de um só golpe, a crueza de uma dura realidade, cujo impacto não atingia apenas a relação com o rapaz, mas estendia seus efeitos ao conjunto de seus investimentos amorosos vitais. "Rebeca, tire o vestido, você não é mais noiva!"1 Analista e analisanda cúmplices por um momento na captura pelo infortúnio?

 

Esgotar a tormenta e o reaprumar de penas

Naquele mesmo dia me vi numa urgência interna de começar a ler o Decameron, sobre o qual já tinha ouvido falar, mas nunca lido por mim mesma. O livro, de Giovanni Boccaccio, foi escrito entre 1348 e 1352, período que compreendia os meses durante e após a peste negra de 1348, e eu sabia se tratar de cem novelas, enquadradas no marco de uma história única que se desenrolava durante a peste. A aventura era vivida por dez jovens que se refugiaram no campo para, juntos, entreterem-se narrando histórias, e passarem pelo tempo de espera necessário enquanto os horrores da doença faziam suas vítimas em Florença.

Recorro, a seguir, a recortes dessa leitura que ganhava em mim indícios de imprescindível naquele momento:

Digo, pois, que os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já haviam chegado ao número 1348 quando, na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas as da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que - fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas - começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro até se estender desgraçadamente em direção ao ocidente. E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, como a limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade, e tampouco encontrando efeito as humildes súplicas feitas a Deus pelos devotos, não uma vez, mas muitas, em procissões e de outros modos, era já quase início da primavera do ano acima quando começaram a manifestar-se de maneira prodigiosa seus horríveis e dolorosos efeitos. Não se manifestavam como na parte oriental, onde expelir sangue pelo nariz era sinal manifesto de morte inevitável, mas começavam com o surgimento de certas tumefações na virilha ou nas axilas de homens e mulheres, algumas das quais atingiam o tamanho de uma maçã comum e outras o de um ovo, umas mais e outras menos, e a elas o povo dava o nome de bubões... a qualidade da enfermidade começou a mudar, passando a manchas negras ou lívidas, que em muitos surgiam nos braços, nas coxas e em qualquer outra parte do corpo, umas grandes e ralas, outras diminutas e espessas. E, tal como ocorrera e ainda ocorria com o bubão, tais manchas eram indício inegável de morte próxima para todos aqueles em quem aparecessem.

E a peste ganhou maior força porque dos doentes passava aos sãos que com eles conviviam, de modo nada diferente do que faz o fogo com as coisas secas ou engorduradas que lhe estejam muito próximas. E mais ainda avançou o mal: pois não só falar e conviver com os doentes causava a doença nos sãos ou os levava igualmente à morte, como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade a quem as tocasse. É espantoso ouvir aquilo que devo dizer...

De tais coisas e de muitas outras semelhantes ou piores originaram-se diferentes medos e imaginações nos que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos acreditavam obter saúde. Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter. Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nessa taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida ...

E, em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque seus ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes, ou então se encontravam tão carentes de servidores, que não conseguiam cumprir função alguma; por esse motivo, era lícito a cada um fazer aquilo que bem entendesse...

Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como fugir; e, convencidos disso, não se preocupando com nada a não ser consigo, vários homens e mulheres abandonaram sua cidade, suas casas, suas propriedades, seus parentes e suas coisas, buscando os campos da sua região ou das alheias, como se com aquela peste a ira de Deus não tencionasse punir as iniquidades dos homens onde quer que eles estivessem, mas só afligisse aqueles que ficassem dentro dos muros de sua cidade, ou como se achassem que ninguém deveria ficar nela, chegada que era a sua hora derradeira. E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; e esses doentes, que, quando estavam sãos, tinham dado exemplo àqueles que agora continuavam sãos, definhavam quase abandonados por todas as partes. E, sem contar que um cidadão evitava o outro, que quase nenhum vizinho cuidava do outro e que os parentes raramente ou nunca se visitavam, e só o faziam à distância, era tamanho o pavor que essa tribulação pusera no coração de homens e mulheres, que um irmão abandonava o outro, o tio ao sobrinho, a irmã ao irmão e muitas vezes a mulher ao marido; mas (o que é pior e quase incrível) os pais e as mães evitavam visitar e servir os filhos, como se seus não fossem. Por todas essas coisas, para a multidão incalculável de homens e mulheres que adoeciam não restava outro socorro senão a caridade dos amigos (e destes houve poucos) ou a ganância dos serviçais, que trabalhavam em troca de gordos salários e acordos abusivos, se bem que com tudo aquilo não restassem muitos: e os que havia eram homens ou mulheres de tosco engenho, a maioria não acostumada a tais serviços, que só serviam para pôr nas mãos dos doentes algumas coisas que estes pedissem ou para velar a sua morte; e, cumprindo tal serviço, muitas vezes pereciam junto com seus ganhos.

As linhas que abrem o Decameron, dentre tantas qualidades que conservam o texto vivo há quase sete séculos, ainda nos dão a ver que qualquer que seja a pandemia pela qual passemos, ela não nos encontra a todos nas mesmas condições sociais ou psíquicas. Nem todos dispomos dos mesmos caminhos abertos, nem padecemos dos mesmos modos. Há quem diga que a doença nos aproxima a todos, mas é também verdade que ela radicaliza as diferenças de condições. Não é o mesmo a quarentena vivida pela minha paciente, cuja solidão lancinante a fazia sentir-se abandonada por todos, e aquela de quem pode cumprir as orientações de ficar em casa e ainda se sentir acompanhado. Não é o mesmo o que vivíamos ela e eu, tendo uma casa e um trabalho que nos permitissem um isolamento social, e o que experimentam aqueles cuja precariedade social e econômica obriga-os a escolher entre se expor a morrer de fome ou de doença.

São muitas as diferenças reais que não se podem encobrir na clínica nem tampouco no plano coletivo. Há algo desse pedido de reconhecimento que se fez ouvir com violência naquela sessão. Depois daquela vieram outras, nas quais o risco ao vínculo já não ameaçava tão diretamente a análise, mas aparecia nos relatos de ter expulsado a amiga preocupada que foi até sua casa ver se ela estava bem, ou nos sonhos, como o que abriu este trabalho, e também quando, assustada, reconheceu estar dispersa e improdutiva no escritório, seu costumeiro território de segurança e potência.

A degradação de si e do outro, num metamorfosear ameaçador de vínculos, permite recortar um dos movimentos possíveis de serem escutados com base nas exigências impostas pela quarentena: um desinvestimento de si e das relações, o isolamento que se torna literal e ganha ares de abandono no deserto, numa precipitação de retirada desesperançosa da aposta. Sob certas condições, as oscilações progredientes e regredientes pelas quais navega a vida psíquica podem alcançar um nível de regressão tal, capaz de acionar uma busca por manter a tensão da vida anestesiada.

Quando o retraimento se faz ouvir, os laços que nos unem ao mundo revelam-se como não naturais, não garantidos e passíveis de subtração. Não foi justamente com base na situação radical de destruição dos laços na psicose que Freud precisou formular o conceito de narcisismo? Como se dá um investimento no Eu e por que dele partem para encontrar objetos?, se perguntava Freud.

André Green (1993/2010) nomeia o trabalho de Eros justamente como função objetalizante. Não apenas Eros investe objetos, mas é capaz de promover à condição de objeto até mesmo estruturas ou elementos que, por suas qualidades e atributos, não parecem prestar-se naturalmente a tanto. Basta que no trabalho psíquico realizado se mantenha o investimento significativo. O Eu pode ser objetalizado, como mostrava Freud em 1914, e também o próprio investimento pode ser investido. Com o exemplo do fotógrafo, Green (1990) faz ver que o objeto não se encontra apenas na fotografia, ou no fotografado, mas também na própria atividade de fotografar e no interesse pela fotografia.

A fertilidade dessa concepção é seu potencial de fazer notar que aquilo que é objetalizado por um trabalho de Eros pode sofrer o destino inverso por desligamento: os laços com a cultura, com os amores e com o Eu podem ser desinvestidos, apagados e perder coloração.

Embora em 1914 Freud (1914/2003) demonstrasse que uma retração possa ser estratégica e curativa, buscando reencontrar no Eu alguma vitalidade, tal como no trabalho de luto ou no poeta com dor de dente, cuja libido se encontrava concentrada no estreito orifício de um molar, ele também adverte que "devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em consequência da frustração, formos incapazes de amar" (p. 82).

É dessa deriva que Green vai se ocupar ao considerar os destinos nefastos do narcisismo negativo, que pode não só desligar dos objetos, como atingir até mesmo o próprio Eu numa busca por aquietar as tensões que leva a desinvestir as próprias bases libidinais e identificatórias.

Ao se referir ao Princípio de Nirvana, Freud (1920/2001b) aborda essa tendência mortífera à eliminação das excitações, já intuída desde o início de sua obra, quando falava em Princípio de Inércia (Freud, 1950 [1895 ]/2001d). A eliminação de tensões já se insinuava desde então no horizonte, e suas relações com o prazer sempre foram enigmáticas. A solução de 1924 é que essa tendência destrutiva só seria contornada pelo trabalho da libido, realização testemunhada pelo masoquismo erógeno primário. O sexual, afinal, que viria frear a tendência ao desligamento, permitindo um desvio da morte. Um reservatório de libido tal - tributário do narcisismo primário - precisa de circulação e reabastecimento, daí a necessidade de amar, aventura para fora, cujas demandas de trabalho de luto levam a eventual recolhimento libidinal.

Em nível pessoal, portanto, a exigência do isolamento social tende a impor uma sobrecarga ao eu e limitar seus recursos eróticos. Lembro-me de outra paciente que, preocupada com sua falta de interesse sexual, se viu mais acompanhada ao ouvir de uma amiga que "quem estava transando muito só poderia não estar lendo os jornais". Embora convenha descolar da concretude proposta, a sabedoria nas palavras da amiga está em sentenciar uma reorganização libidinal em curso diante dos acontecimentos. Uma reorganização que pode envolver um retraimento libidinal de alcances heterogêneos, alguns deles violentos em sua radicalidade.

O vírus ou o isolamento social não são em si imediatamente traumáticos, o trauma em psicanálise fala mais dos efeitos que do fato em si. Fala da comoção envolvida em conter uma inundação e não está em relação direta com o tempo do acontecimento (Freud, 19950 [1895 ]/2001; Green, 1975), ainda que enquanto acontecimento, capaz de romper com o regular e previsível, ofereça à experiência um potencial traumático.

No caso da pandemia, trata-se de mais que uma crise sanitária, estende-se como fato social, econômico e político, cujo ruído se faz escutar também em nível cultural. Um rompimento na uniformidade cotidiana e um clima de ameaça invisível diante da qual o desamparo inicial (Hilflosigkeit) tende a ser acionado.

Em "O futuro de uma ilusão", Freud (1927/2001c) aborda os destinos culturais do desamparo, a busca de alento e a nostalgia de um pai protetor, origem da religião, do fanatismo e da tirania. Segundo ele, a natureza tem uma dimensão hostil e ameaçadora, diante da qual o homem se vê fraco e desamparado, e possivelmente sem possibilidades de sobrevivência, a não ser se juntando para fundar a civilização.

E o que acontece quando a impotência sentida se soma ao descrédito quanto à disposição ou competência do entorno em garantir alguma segurança? Quando as autoridades falham em manter qualquer ilusão de amparo e proteção e os limites da ciência demandam, além disso, uma espera, encontramos uma exigência social de trabalho com a vulnerabilidade inequívoca. Uma vez mais a resposta coletiva e o trabalho da cultura acenam como um caminho. Reforçar os laços comunitários de amparo diante dos limites do humano converte-se em urgência, ainda que estejamos cientes, desde Freud, de que da cultura provenha irremediavelmente também o mal-estar, e que o estado sem conflito seja apenas promessa destinada a decepção.

 

Retomar voo...

Pontalis (1988/2003) nos lembra que civilização tem menos a ver com progresso que com processo, e que, enquanto processo a ser sempre retomado, permite confiar no movimento civilizatório. O mesmo autor, que em 1977 já falava sobre o trabalho da morte na cultura, afirma: "os homens de hoje levaram tão longe o domínio das forças da natureza, que, com a ajuda delas, tornou-se fácil para eles exterminarem-se mutuamente, até o último" (Pontalis, 1977/2005, p. 41). Uma tal ilusão de domínio intransigente da natureza sofre um abalo brutal no contexto pandêmico. Há as saídas negacionistas, que com malabarismos de fatos e números tentam escamotear a injúria e a gravidade da questão. Ou ainda aquelas melancólicas, de renúncia à luta em favor da certeza da derrota. Com efeito, a manutenção do investimento, diante das incertezas no horizonte configura um desafio.

Na perda da costumeira relação espaçotemporal, os efeitos do desinvestimento podem ser sentidos na experiência do tempo. A impressão geral é de experimentar uma suspensão temporal descrita como estranha. Uma pessoa me dizia sentir-se aprisionada como no filme Feitiço do tempo, em que o personagem está condenado a um eterno retorno do mesmo, ao acordar sempre no mesmo dia. O "tempo morto", metáfora temporal usada por Green (1975) para falar do desinvestimento radical e da experiência além da neurose, é também utilizado por Silvana Rea (2020) para marcar o fenômeno coletivo do tempo fora do tempo ordinário, próximo da estranha lentidão que caracteriza um recurso de linguagem cinematográfica nomeado dessa maneira.

Trata-se de uma experiência coletiva limite, exigente de uma reorganização espaçotemporal, uma vez que interrompe a marcha e a mobilidade, subtrai os espaços de trânsito e transição e deflagra um movimento circular de repetição que esboça fazer colapsar a função poiética de criação de sentido. Tempo morto é quando a ausência deixa de ser presença potencial, não sendo possível manter a objetalização, "equivalente crônico do espaço vazio" em que se vê em ação "o poder suspensivo do desinvestimento" (Green, 1975, p. 158). A experiência ameaça deixar de ser sentida de forma viva, simbolizante, numa oposição dialética com o que seria o tempo transicional (Winnicott, 1971), aquele que emerge na ausência, conferindo possibilidades potenciais. "Se a ausência oscila entre a presença e a perda potenciais, se é expressão do virtual, agora vai mudar de status. O tempo potencial se converte em tempo morto" (p. 159). "Esta mortificação da psique tem a vantagem de prevenir contra as angústias impensáveis, as torturas da agonia" (Green, 1975, p. 159) com o inconveniente de que o remédio, mal administrado, transforme-se em veneno.

Há uma gradação heterogênea de suspensão e desinvestimento, alguns deles férteis num movimento que se segue à ligação e se lança à religação, outros que se figuram como saídas melancolizantes capazes de precipitar a desconexão temida, num encastelamento de onipotência negativa, que tenta funcionar como antídoto contra o abandono, quando, paradoxalmente, o antecipa, numa "espera na qual não se espera nada", em que reconhecemos perplexos "o abandono da luta" (Green, 1975, p. 158).

O analista, ciente da importância da circulação libidinal e do movimento, sem resvalar em um frenesi negacionista e triunfalista, se vê em um desafio em nível pessoal e coletivo de manutenção de investimentos significativos, de encontrar maneiras de reobjetalizar o próprio investimento, promover ligações e não (se) deixar morrer de sede em um deserto de isolamento. A recuperação de uma dialética fecunda entre ligação e desligamento passa por um trabalho do analista com foco em sobreviver (Winnicott, 1971).

Que modelo nos oferecem os dez jovens de Boccaccio diante da peste?

Esses três homens e sete mulheres, juntos em retiro na montanha, organizaram sua rotina de maneira que a cada dia um deles seria escolhido rei ou rainha da jornada, e definiria o tema geral sobre o qual cada um dos dez contaria uma história. São dez histórias por dia, que envolvem e fazem rir, mas que sobretudo trazem o homem em sua humanidade.

Eles não só logram passar o tempo, mas também se envolvem na tarefa, investem o investimento, tecendo histórias humanas, situações possíveis, fazendo entrar através das narrativas criativas as experiências de amor, morte, paixão, traição, entre outros enredos de quem vive.

A psicanálise, em sua aposta na palavra, ainda que ciente de sua precariedade, faz resistência ao confinamento estéril. Em nível individual, o analista participa dessa resistência buscando engajar o paciente também nesse empreendimento, reconhecendo e legitimando os movimentos de ligação que buscam fazer frente à destrutividade voltada até mesmo para o próprio psiquismo. Pode testemunhar a violência do desligamento e quem sabe favorecer e acompanhar o relançar de laços que aparecem em atos despretensiosos como a compra de uma vitrola para escutar os vinis antigos, ou voltar a tocar o instrumento musical aprendido na infância, resgates autoeróticos esses que tornaram o recuo de Rebeca potente.

Nessa função junto ao paciente, o próprio analista se percebe, ele mesmo, renovando seu compromisso com o ofício. Não é curioso como com analistas confinados, paradoxalmente, a psicanálise tenha conseguido coletivamente criar redes e lançar-se mais para fora, com uma mobilidade capaz de virtualmente alcançar a rua e as comunidades que não costumava abranger? É impressionante perceber a quantidade de dispositivos institucionais criados pelas organizações de psicanalistas nas diferentes partes do Brasil e do mundo, para oferecer escuta e acolhimento comunitário.

A psicanálise tem redescoberto seus laços com o social e se engajado em seu papel diante de um acontecimento de tamanho impacto social, salvando-se ao manter em seu trabalho um espaço de investimento de seu fazer e pensar. Seria o que Magda Khouri (2020) trabalha em seu artigo "O vírus não é uma metáfora" quando fala de uma cura a dois?

Uma cura que pode passar também pela constituição de uma comunidade entre pares a quem recorrer, amigos com quem contar nesse intento de nos manter pensando, narrando, invocando o que a palavra pode tocar, recobrir e despertar, partilhando o vivido para metabolizá-lo, auxiliando numa apropriação subjetiva (parcial) do acontecido e assim nos sustentar, ainda que provisoriamente, vitalizados e vitalizantes. Uma renovação da aposta na ligação, na humanização da dor e em alguma construção de sentido possível.

Apelidaram-me um dia de Ave-serena.

Fui então observar a serenidade das aves.

Observei noites e dias. E aprendi que, se a serenidade for a condição prima da ave, a ela, mesmo em momentos de profunda tormenta, caberá reaprumar o corpo, avaliar a condição de voo e de pouso, e seguir adiante. Se for dela a serenidade, mesmo quando em breves, raros, mas mortais instantes, suas penas, aquelas que recobrem o peito - exatamente na área do coração -, se eriçarem diante da desventura de um espaço que ela não domina e desconhece, caberá à ave esgotar a sua própria tormenta e se reerguer depois. À ave serena não é permitido cultivar o engano, ela sabe que o amor - dom maior da serenidade e do desespero - se realiza ou se anula por um triz.

Conceição Evaristo3

 

Referências

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Recebido em: 11/11/2020
Aceito em: 29/11/2020

 

 

1 Referência à citação de Freud em carta a Fliess (1950[1892-99]/2001a) para referir-se a sua própria desilusão no abandono de sua teoria da sedução.
2 Com esse poema, presente que ganhei de Rebeca, finalizo agradecendo àqueles que, com seus laços, intelectuais e afetivos, me mantêm vitalizada, não apenas durante a pandemia.

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