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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dez. 2020

 

TRADUÇÃO

 

O impacto das ideias de Bion na forma de pensar de Donald Meltzer em Studies in extended metapsychology. Clinical applications of Bion's ideas

 

 

Tradução: Valter Lellis

 

 

Capítulo XVIII (1986): Desfecho1

Este livro, produto residual de experiências clínicas e didáticas, e não de uma pesquisa sistemática, é uma espécie de pilha híbrida. Sua intenção básica era incrementar a fertilidade dos avanços de outras pessoas, para ajudá-las a trazer à vida sua criatividade nascente. Mas também tendemos a esperar que algo vivo de nossa própria criatividade possa ser inesperadamente localizado no topo desse amontoado híbrido: uma florescência de cogumelos ou de surpreendentes narcisos. Será que este livro acrescenta algo além daquilo a que se propõe: ser uma série de estudos ilustrativos do uso que as ideias de Bion tiveram em meu consultório?

O próprio Bion opunha-se com veemência a uma "escola" distinta, surgida com base em suas ideias, em parte, talvez, porque o adjetivo "bioniano" tem os significados cômicos da ficção científica, da jardinagem, da eletrônica e do charlatanismo. Mas, acima de tudo, ele achava, e talvez eu o sinta com mais força ainda, que a formação de "escolas" é um equívoco da ciência. É ingênuo supor que existam diferenças profundas e relevantes. É um ato político explorá-las nas organizações da psicanálise. É algo que não consegue entender a tarefa impossível de transformar em linguagem os fenômenos inefáveis da mente. E, por fim, é algo que demonstra pouca compreensão da história da arte e da ciência. Na medida em que a metáfora do progresso como movimento adiante é permissível, o desenvolvimento da arte e da ciência, ou, no caso da psicanálise, arte-ciência, avança de maneira espiral em alguns aspectos, ou como uma lagarta, em outros. Os que estão na vanguarda do desenvolvimento acreditam estar quilômetros adiante da retaguarda quando pensam de forma linear, mas basta olharem para os lados para verem que estão apenas alguns centímetros à frente. Além disso, é necessário que façam uma pausa, ensinem e ajudem a outros a alcançá-los antes que possam prosseguir. Se não fizerem isso, sua linguagem e, em breve, seu pensamento tornam-se tão idiossincráticos, que eles descobrem que saíram do campo social e precisam encontrar o caminho de volta a ele. De uma certa forma, isso aconteceu com Bion em Transformações e teve que ser retificado alterando-se suas metáforas para Atenção e interpretação.

Esse processo de alcance tende a ser mal compreendido no contexto da formação escolar e na política, como se fosse um tipo de plágio clandestino, de roubo de ideias redigidas numa terminologia diferente. Um exemplo disto pode ser visto no desenvolvimento da "psicologia do self", em torno da obra de Heinz Kohut, com sua forte reverberação de noções kleinianas. Mas um exame mais detalhado mostra que dois outros processos estão em funcionamento: um deles é o refinamento da linguagem da vanguarda para fixá-la mais firmemente em suas raízes históricas, o outro é a "diluição" dos conceitos para a obtenção de maior respeitabilidade. Ambos têm seu valor para a estrutura social do movimento psicanalítico e sua relação com a comunidade intelectual e científica em que está inserido. Nenhum dos dois inibe o movimento para a frente na próxima onda de avanço.

Ao considerar minha própria obra como "exploração", eu gosto de pensar que deveria fazer alguma tentativa no sentido de traçar, de um modo mais pessoal, o que vejo como o impacto das ideias de Bion sobre meu modo de vida e minha visão do mundo (modelo da mente, estrutura da história, evolução das organizações políticas, o papel do artista na comunidade, a natureza da psicanálise como uma coisa etc.).

Em termos do conceito de Bion de "mudança catastrófica" e do impacto da "nova ideia", não fica difícil estabelecer o que era essa ideia e a revolução por ela provocada nas minhas maneiras de pensar e trabalhar... e também de agir em geral. Fica claro que a "nova ideia" era algo como "no princípio era o objeto estético, e o objeto estético era o seio, e o seio era o mundo". É claro que estou empregando a palavra "seio" como termo técnico com apenas uma implicação de descrição, e não o contrário. Por um lado, parece-me surpreendente que essa ideia não tenha chegado a mim por meio de Adrian Stokes, em quem sempre se mostrou como algo vívido; por outro lado, fica difícil afirmar de que local da obra de Bion ela provém. Ela não está na Grade; é apenas sugerida em Transformações; e só ocupa uma posição secundária em Atenção e interpretação. Somente em Uma memória do futuro ela encontra seu lugar de maneira inequívoca. Mas ela me chegou por meio de Bion antes que a publicação tivesse penetrado em meu pensamento e, com certeza, em meu consultório. Eu não só me tornei consciente de que o método psicanalítico havia adquirido uma qualidade estética em meu olhar, mas também eu começara a ver, principalmente por meio dos sonhos, que o mesmo ocorrera em alguns de meus pacientes.

Em termos retrospectivos, acho que o trabalho com o autismo, e sua elaboração do conceito de dimensionalidade, desempenhou um papel importante; a requintada sensibilidade estética de muitas dessas crianças era tão inequívoca, que ficava difícil não imaginar se a falha em seu desenvolvimento não se fundamentava em processos de desviar-se do impacto da beleza do mundo. O desmantelamento dos sentidos e a bidimensionalidade pareciam métodos requintadamente delicados para assim proceder sem violentar o objeto, externa ou internamente. O processo de desmantelamento dos sentidos, contudo, era por demais monolítico, por demais semelhante ao assassinato da alma, para esclarecer o problema. Mas a bidimensionalidade trazia em seu bojo questões fascinantes. A princípio, parecia que essa falta de profundidade do mundo do significado era autoexplicativa, como se a diluição do sentido naturalmente resultasse em um empobrecimento dos afetos. As ideias de Bion sugeriam o inverso, que um método de restringir a intensidade dos afetos resultasse na palidez do significado. Se esse fosse o caso, a orientação bidimensional do mundo seria uma defesa contra o impacto de objetos que despertam as emoções. Mas como? A ideia de Melanie Klein era que o interesse no interior da mãe e, portanto, o instinto epistemofílico em geral tinham suas origens na intensa emotividade da relação Mãe-Bebê. Será que a bidimensionalidade resultava de uma negativa da realidade psíquica do objeto, e não de uma regressão a um estágio anterior do desenvolvimento cognitivo?

De maneira similar, antigos pressupostos, ligados à delineação de Melanie Klein das posições paranoide-esquizoide e depressiva, foram postos em questão. Esther Bick havia revelado os processos de identificação ligados à bidimensionalidade (identificação adesiva), de modo que foi possível pensar que uma organização da mentalidade anterior à posição paranoide-esquizoide poderia existir, o que fortaleceria o pressuposto de uma sequência genética com uma forte lógica interna, situando a posição depressiva num nível mais sofisticado de experiência. Mas, de algum modo, a formulação de Melanie Klein dos fatores em operação para pôr em movimento o instinto epistemofílico não parecia satisfatória. Seu insucesso em diferenciar a curiosidade intrusiva da sede de conhecimento (instinto epistemofílico) como fatores do interesse do bebê no interior do corpo da mãe enfraquecia a textura conceitual. As descobertas junto a crianças autistas sugeriam fortemente que o sadismo e os processos de cisão não eram intensamente operativos em sua doença, mas apenas desenvolviam sua força no processo de recuperação e de avanço no desenvolvimento. A insatisfação desse tipo de modelo de mente com o que ocorria no consultório deve ter gradativamente influenciado um desvio do pensamento em termos de fases genéticas do desenvolvimento para uma concepção de campo. A complexidade implícita parecia exigir isso. Lembrei-me de Melanie Klein dizendo, em resposta aos críticos durante uma reunião, que não era ela que complicava as coisas: elas eram complicadas. É claro que a mente humana deve ser a coisa mais complicada do universo. E deve haver um limite na penetração da mente em seus próprios mistérios ao estudá-la. Talvez o próprio mistério seja um aspecto importante de sua essência.

A ênfase de Bion na consciência, não como sistema, mas como órgão da mente, o órgão da atenção, já havia sido fortemente corroborada pelas experiências com crianças autistas. Sua atenção difusa, com o resultante desmantelamento do que Bion chamara, de maneira meio jocosa, de "senso comum" (a "consensualidade" de Sullivan), parecia de imediato uma forma poderosa e, contudo, delicadamente previdente de evadir o impacto da vida fora e dentro delas. A indicação terapêutica da importância de atrair e manter sua atenção com uma conversa interessante baseada em observações aguçadas havia comprovado sua eficácia, bem como sua tendência a exaurir o terapeuta.

A orientação "de campo"2 que aceita múltiplos níveis de um funcionamento simultâneo e mais ou menos integrado parece provocar a pergunta "como", e não apenas "quando", o nível mental era chamado a operar para se sobrepor ao puramente neurofisiológico. A abordagem do problema por Bion, ao assumir que a primeira operação é a criação dos pensamentos, que, então, exige um aparato para pensá-los (e também manipulá-los e usá-los), parece ser a ruptura crucial com a implicação tradicional de que o pensar é anterior como função e gera os pensamentos. Isto lhe permitiu criar a Grade e, então, passar ao exame das "transformações" pelas quais o pensar implementa sua utilização dos pensamentos. Mais que isso, esta forneceu um quadro para considerar os pensamentos falsos, as mentiras, as incompreensões, as inverdades, os conceitos errôneos, o cinismo e a propaganda. Quando isso se combina com o grande passo de opor emoção à antiemoção (L, H e K positivos e negativos), temos disponível um novo ábaco para pensar sobre o pensar.

Ser capaz de imaginar o mental como "nível" e o seu "chamado a funcionar" como resultado da atenção no que está sendo emotivamente despertado pela experiência permite uma nova "liberdade" à nossa consideração do problema. E não é apenas o esclarecimento semântico que refresca a atmosfera, pois ele também afasta a tradicional preocupação básica com a lógica e, portanto, com a matemática e a linguística como nossa fonte suprema de informação, dos gregos ao Tractatus. O conceito "vazio" da função-alfa é a nossa nova chave. Mas o cadeado em que ela se encaixa também sofreu um desvio; este é o ponto crucial. Enganamo-nos ao confundir a criação dos objetos estéticos como obra do gênio raro e evoluído, com a percepção da beleza-do-mundo que Wordsworth considerava inerente às "nuvens de glória" incorporadas à mentalidade das crianças e sua disponibilidade para o "esplendor da grama". Se ele tivesse buscado o problema da perda dessa sensibilidade, em vez de aceitar a explicação fácil, essencialmente sociológica, aquele "adquirir e gastar em que dissipamos nossos poderes", ele teria reconhecido de maneira mais clara a natureza da dor que essas sensibilidades trazem consigo.

De maneira similar, a lealdade de Melanie Klein para com a formulação de Freud da dualidade do instinto fez com que ela simplesmente ignorasse o problema e explicasse a evidente ambivalência implícita no instinto epistemofílico com base na frustração. Esta atitude é um tanto surpreendente, considerando-se que ela sabia muito bem que um certo nível ótimo da dor mental (frustração, perseguição, inveja etc.) se faz necessário, pois o desenvolvimento é comandado pelo conflito tolerável. Minha primeira visão do problema foi registrada num trabalhado chamado "A apreensão da beleza", em que tampouco consegui apreender o que havia vislumbrado, como também aconteceu com Hannah Segal em seu famoso trabalho sobre estética.

E, assim, os dois se juntaram: a chave da função-alfa e o cadeado da bidimensionalidade; e a união parecia uma metáfora antagônica. A área de problemas que a chave da formação do símbolo foi chamada a abrir era o enigma do interior e do exterior do objeto estético. Seu poder de evocar a emotividade só se igualava à sua capacidade de gerar ansiedade, dúvida, desconfiança. Embora as qualidades sensoriais do objeto estético pudessem ser apreendidas com um certo grau de confiança, suas qualidades internas, sendo infra ou suprassensoriais, não ofereciam esse conforto. Aqui, a observação precisou ser acoplada pelo pensamento e pelo julgamento, e o julgamento dependia em grande parte de seu firme apoio na experiência. Pois era na disparidade combinatória desse exterior e interior do objeto de espanto e encantamento que seu valor em termos de bem ou de mal com certeza devia residir. Mas a experiência de mundo do bebê é quase nula. Como ele pode exercer esse julgamento? Na verdade, não pode; ele só pode esperar para ver o que acontecerá em seguida.

Assim, esse seria o contexto em que a ausência do objeto provoca seu impacto crucial e testa o vigor. Bion definiu esse problema do objeto ausente como "o objeto ausente como perseguidor presente", com relação ao "espaço em que o objeto costumava estar", talvez também por implicação que incluía os "fantasmas das quantidades que se foram" de Berkeley. Estes "tempos que põem à prova as almas dos homens" e descobrem o "soldado de verão nas profundezas devem ser infinitamente mais estressantes para o bebê quando lembramos seu impacto em Otelo e Leontes", e em "La belle dame sans merci". Assim, a confiança seria uma qualidade componente da mente, como as libras-pé definem um trabalho: horas-esperança, ou minutos, dias ou anos. No ser humano muito jovem, por vezes ela pode se parecer mais com segundos-esperança, à medida que o rosto do bebê se contrai quando a mãe se retira de seu campo de visão.

Ao definir o problema fundamental das relações estéticas dessa forma e ao asseverar a relação estética com o mundo e o estímulo primário do pensamento, adotamos uma posição compatível com uma teoria de campo que também é inerentemente genética. O que essa teoria faz, e que a diferenciação entre as posições paranoide-esquizoide e depressiva não consegue fazer em sua aderência a um embasamento instintivo de Vida e Morte, é permitir uma abordagem puramente mental de valores desonerada da especulação biológica. Embora a questão da dor mental, e da consequente tolerância, nada perca de sua vibração como árbitro da força do ego, um novo fator é introduzido no dinamismo do conflito. A confiança em unidades do tempo-esperança, esquematicamente falando, parece ter raízes qualitativas na riqueza da experiência estética cuja sequela é a separação. E essa riqueza deve certamente ser encontrada no elemento de reciprocidade da apreensão da beleza. O bebê deve ser carregado pela mãe como um objeto estético para que a experiência de sua troca de amor reverbere e aumente de intensidade.

Uma base como essa, que nos permite conceber o "como" da entrada em ação da capacidade para o pensamento simbólico, o produto da misteriosa função-alfa, nos libera mais ou menos da grande preocupação do "quando" da questão. Ele deve ocorrer no pré ou pós-natal. E, se essa conjunção de reciprocidade é seu ingrediente essencial, seu início pode variar enormemente com o tempo. Mas, infelizmente, temos de reconhecer que ele pode nem sequer ocorrer, como nas crianças que não parecem fazer o ajuste pós-natal ou cujo aparato neurofisiológico não tem complexidade suficiente para que seja atingido o nível estético de resposta. O autista e os que não se desenvolvem podem perceber essa conjunção de reciprocidade e se rebelar contra seu domínio.

Mais importante para a prática clínica, porém, é o corolário de que as operações defensivas da psicanálise podem, em grande parte, e talvez inteiramente, ser vistas como reações contra o impacto do objeto estético, embora isto não fique aparente nos primeiros dias de análise. Essas reações, em minha opinião, ocorrem no limiar da posição depressiva depois que as confusões geográficas foram resolvidas. Então, como essa visão difere essencialmente das formulações de Melanie Klein, e quais, precisamente, são as alterações no consultório por ela geradas?

Indubitavelmente, a primeira e mais importante dessas alterações é uma ênfase menor na "interpretação correta" e talvez numa diminuição da urgência de interpretar tudo. Em lugar disso, o ponto central se antecipa, por assim dizer, para a interação, a relação da qual emergem ideias interpretativas. O modelo continente-contido acrescenta um novo valor à receptividade e à sustentação da situação dinâmica da transferência e da contratransferência na mente. Mas é possível que afirmar isso, como se o analista fosse o continente, não permita ver com clareza que é precisamente essa correspondência da atenção do analista com as atitudes de cooperação do paciente que forma e marca o continente, dando-lhe o grau de flexibilidade e elasticidade requerido momento a momento.

A interpretação perde, portanto, sua função explicativa em parte pela mudança na natureza da situação, mas, também, porque o analista perdeu sua orientação causal com relação aos fatos mentais. Portanto, a interpretação perde sua função explicativa, em parte devido à natureza alterada da situação, mas também porque o analista perdeu sua orientação causal com relação aos fatos mentais. O campo dos estados mentais não permitirá que a linguagem da linearidade se afirme, dando lugar às tentativas de descrição, irremediavelmente inadequadas, em um sentido, da mesma forma que a pintura seria inútil como base para a pesquisa botânica. Em vez disso, a metáfora da iluminação substitui a explicação. Lembro-me bem de ter visitado uma caverna na Dordogne, creio que em Combarelles, cheia de imagens de animais da Idade do Gelo. À medida que o guia movia sua lanterna de um ângulo para outro, diferentes imagens superpostas saltavam da parede.

Essa imagem da tarefa verbal do analista, para lançar uma luz de entendimento de um vértice a outro, modifica a atmosfera de comunicação em um grau extraordinário, diminuindo as expectativas autoritárias do paciente e dividindo a responsabilidade entre os membros do Grupo de Trabalho dos dois. Ela também possibilita que uma linha interpretativa se forme gradativamente. Certos sonhos - os sonhos, e não suas interpretações - estabelecem os limites para os dois membros.

A função de compreender, com toda sua incerteza e presteza a ceder seu lugar, privando o analista da expectativa do conhecer, permite-lhe uma liberdade muito maior de especulação. As intuições para as quais a evidência ainda não é impeditiva podem ser oferecidas livremente, com o grau de incerteza sendo indicado pela música da voz. Uma vez que a mistificação da aparente onisciência é assim despojada da relação, o paciente torna-se mais interessado no método e acolhe a explicação dos fundamentos do comportamento do analista. Tudo isso, incluindo a definição aprimorada da forma que o processo psicanalítico parece estar assumindo, tende a construir o conceito de ciência, o processo, o método - talvez considerados com sua história pessoal e institucional - como uma coisa-em-si-mesma que pode, eventualmente, ser apreendida como um objeto estético.

Isso tem implicações de longo alcance para a transferência e a contratransferência, pois estabelece um objeto ao qual não são impostas, em termos freudianos, as limitações inerentes às "particularidades" do analista - sua idade, sexo, aparência, fatos, conhecimento sobre a situação de sua vida, seus valores, suas tendências políticas etc. Na verdade, possibilita a formação de um objeto que o terapeuta e o paciente podem examinar juntos de uma certa distância, da mesma forma que um passo atrás com relação à maioria das pinturas permite que a composição se revele, e, em seguida, um passo adiante permite apreciar as pinceladas e a habilidade manual do artista.

A psicanálise como uma coisa-em-si-mesma, e sua determinada manifestação na própria experiência do paciente com a análise, forma um vínculo com o objeto interno parcial, o seio-pensante materno como objeto combinado, seio e mamilo. As funções que o analista sente que está desempenhando dentro do processo analítico assumem uma forma definitiva, grandemente esclarecida, da natureza da dependência sentida. Agir em busca de substitutos durante as separações se sobressai de maneira clara tanto com relação à adequação quanto relativamente à inadequação desses fac-símiles. Portanto, o analista está numa posição mais confortável para ajudar o paciente a avaliar a utilidade dessas relações alternativas, e não se limitar a se opor a elas, pressupondo que devem necessariamente empobrecer a transferência.

É nessa conexão que a externalização da organização narcisista do paciente com os indivíduos e grupos passa por um exame novo e mais preciso, pois a base do julgamento não precisa repousar apenas no valor. É verdade que o desvio da base do julgamento de critérios morais ou mesmo éticos para critérios de desenvolvimento (que amiúde significam a suspensão do julgamento) apara as arestas da intervenção do analista no tocante às relações de base narcisista, pois sua atitude está predestinada a prescindir de evidência de uma base demonstrável, com a exceção dos sonhos. Mas, quando os modos do pensamento e as vias de comunicação também podem passar por um escrutínio, frequentemente é possível demonstrar as deficiências da qualidade do pensamento. Isso fica mais evidente quando está em discussão a participação em um Grupo de Pressuposto Básico, mas, mesmo na formação de gang com um ou mais conhecidos, as funções "de alegria enganadora" da Grade Negativa (a "imaginação imitativa" de Milton) podem amiúde ser demonstradas.

Essa via de indagação para os processos de comunicação de grupo é seguramente uma contribuição de Bion ao nosso equipamento para a investigação do narcisismo. Em nenhum outro local ela se mostra mais clara que nas áreas perversas da personalidade que tão silenciosamente drenam a vitalidade das relações do objeto. E aqui a formulação de Bion de vínculos positivos e negativos lança uma luz brilhante. "Mas eu não sou parte da vida emocional deste homem?", parece dizer a área perversa, reclamando uma certa respeitabilidade e uma legítima participação no mundo da intimidade humana. Uma teoria dualista, a da Vida e da Morte, dos impulsos Criativos e Destrutivos, não dá uma resposta definitiva, mas apenas uma declaração rancorosa: "Sim, mas você também deve ser subserviente, integrado aos fins bons e criativos", alguma coisa que o aspecto perverso aceitará sorridente, secretamente triunfante. Mas, quando os impulsos perversos são reconhecidos como antiemoções, menos L, H e K, nenhum espaço conciliativo deve ser atribuído a eles.

O conceito de uma Grade Negativa e o reconhecimento, por parte de Bion, de que o conhecimento da verdade é necessário para a construção de mentiras efetivas (mentiras para si mesmo, como para os demais) forneceram-nos uma poderosa ferramenta para o exame do conteúdo e das operações dos ataques cínicos à verdade. Embora eu nunca tenha achado a grade útil para a contemplação analítica, como Bion originalmente sugeriu, seu formato é maravilhosamente revelador dos desvios dos níveis de abstração e das afirmativas paradoxais que os acompanham. Isso leva a uma maior habilidade no exame das funções defensivas e evasivas do uso da linguagem ambígua, bem como das falhas das operações lógicas, das pseudoquantificações, das falsas equações e dos símiles espúrios.

Consideradas em conjunto, essas ferramentas para o exame minucioso do pensamento e da comunicação põem o analista numa posição muito mais sólida que antes na luta por livrar as estruturas infantis do domínio ou da influência das partes destrutivas da personalidade que organizam os agrupamentos narcisistas ou do Pressuposto Básico internamente ou no mundo exterior.

Por fim, devo examinar a importante questão de nossa definição particular e coletiva da psicanálise e suas implicações para os nossos métodos de trabalho no consultório. Não estou me referindo aos aspectos políticos do problema, como a definição da psicanálise proposta pelos membros da Psycho-Analytical Society, ou cinco-vezes-por-semana por definição, ou de maneira extrainstitucional, e assim por diante. Essas definições locais são adequadas para os problemas políticos locais, não sendo de interesse científico. Os problemas importantes são os da definição pessoal e da apresentação pública para os nossos colegas.

Em essência, nossa definição particular deve repousar sobre dois pilares: o método e o processo por ele engendrado. Quase todos pertencentes ao nosso campo concordariam que a essência do método é o exame e a descrição da transferência por meio da avaliação interna da contratransferência. Existe muito menos concordância, ou necessidade de concordância, quanto à natureza dos processos terapêuticos gerados por essas operações. Não é improvável que o processo varie de analista para analista, talvez de paciente para paciente, de maneiras essenciais. Mas todos concordariam que cada analista deve, eventualmente, ter formulado seu próprio conceito do tipo ou alcance dos processos que ele considera úteis para uma análise em andamento. Afinal, não há necessidade de que o analista defenda qualquer monopólio ou poder terapêutico.

Tendo formado esse conceito do tipo ou do alcance do processo, o analista deve estar numa posição mais flexível para atender às necessidades de seus pacientes com relação a frequência, duração das sessões, espaçamento, falta às sessões ou períodos da terapia, formas de pagamento, uso do divã, trazer ou enviar materiais escritos ou gráficos e entrevistas com parentes.3 O cuidado deve substituir a rigidez de estilo e método quando os conceitos pessoais básicos de método e processo tiverem sido estabelecidos com base na experiência com um paciente em particular e uma prática em geral. No entanto, as modificações de estilo e método introduzidas pelo analista provavelmente devam ser vistas com a maior suspeita e evitadas, exceto por pesquisa organizada de bona fide. Mas uma resposta flexível aos pedidos de um paciente, baseada na experiência e na firmeza do conceito, sustentada pelo exame cuidadoso de material prévio e subsequente, pode ter um efeito benéfico, humanizador e incentivador. As consequências para o analista são, contudo, muito mais importantes. Essa orientação obriga-o a se engajar num exame cuidadoso e contínuo do racional de seus procedimentos e, assim, promover seu próprio aprendizado com base na experiência.

 

 

Recebido em: 6/5/2020
Aceito em: 9/8/2020

 

 

Traduzido por Valter Lellis
Revisão técnica de Marisa Pelella Mélega
1 Retirado de seu livro Studies in extended metapsychology. Clinical applications of Bion's ideas (1986).
2 Ver cap. 1, "Field or phase", deste mesmo livro.
3 Ver Bion in New York and Sao Paulo, p. 56, para seus pensamentos posteriores sobre o assunto.

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