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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo jan./jun. 2021

 

TEMA: O QUE FAZEMOS COM O SEXUAL?

 

Modificação do corpo e binariedade: de Lili Elbe a Paul B. Preciado1

 

Body modification and binarity: From Lili Elbe to Paul Preciado

 

Modificación del cuerpo y binariedad: De Lili Elbe a Paul B. Preciado

 

Modification du corps et binarité: De Lili Elbe à Paul B. Preciado

 

 

Sandra Lorenzon Schaffa

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / sandralorens@gmail.com

 

 


RESUMO

Para contribuir à reflexão sobre as questões de gênero, a autora examina, com mais de um século de distância, a evolução dos discursos e das representações e como essas transformações impactam as formações subjetivas. Menciona o primeiro caso transgênero (homem a mulher) do qual temos o testemunho: Lili Elbe. Lili Elbe deixou escritos sobre seu percurso marcado por uma determinação que não aceitava limites. Examina, então, como a questão é abordada hoje, por meio do particular exemplo de Paul B. Preciado (ex-Béatriz), cuja abordagem da noção de gênero está no limite das performances artísticas dos proponentes da arte corporal. Dois mundos que parecem estar separados por anos-luz, passando de uma concepção absolutamente binária, em que se é homem ou mulher, e a técnica médica concebida apenas como uma reparação por erro da natureza, para uma concepção em que as recusas às "atribuições" são produzidas por uma cultura comum, todas as formas intermediárias podem ser consideradas, até mesmo o recurso a manipulações farmacêuticas fora do campo médico.

Palavras-chave: falo, redesignação, binariedade, transgêneros, arte corporal


ABSTRACT

In order to contribute to the reflection on gender issues, the author examines, from a distance of over a century, the evolution of discourses and of representations as well as how these transformations impact subjective formations. She mentions the first transgender case (male to female) of which we have testimony: Lili Elbe. Lili Elbe left behind writings about her journey, which was marked by a determination that accepted no limits. The author then examines how the issue is addressed today, through the particular example of Paul B. Preciado (formerly known as Béatriz), whose approach to the notion of gender lies in the limit of the artistic performances of proponents of body art. Two worlds light years away from each other, going from an absolutely binary conception, in which one is a man or a woman, and the medical technique conceived only as a compensation for nature's error, to a conception in which the refusal of the "attributions" is produced by a common culture, all intermediate forms can be analyzed, even the use of pharmaceutical manipulations outside of the medical field.

Keywords: phallus, reassignment, binarity, transgender, body art


RESUMEN

Para contribuir a la reflexión sobre cuestiones de género, la autora examina, desde hace más de un siglo, la evolución de discursos y representaciones y cómo estas transformaciones impactan en las formaciones subjetivas. Menciona el primer caso transgénero (de hombre a mujer) del que tenemos testimonio: Lili Elbe. Lili Elbe dejó escritos en su camino marcados por una determinación que no aceptó límites. A continuación, examina cómo se aborda el tema en la actualidad, a través del ejemplo particular de Paul B. Preciado (ex-Béatriz), cuyo acercamiento a la noción de género se encuentra en el límite de las representaciones artísticas de los defensores del body art. Dos mundos que parecen estar separados por años luz, pasando de una concepción absolutamente binaria, en la que se es hombre o mujer, y la técnica médica concebida sólo como reparación por el error de la naturaleza, a una concepción en la que las negativas a "Las atribuciones" son producidas por una cultura común, se pueden considerar todas las formas intermedias, incluso el uso de manipulaciones farmacéuticas fuera del campo médico.

Palabra clave: falo, reasignación, binario, transgénero, arte corporal


RÉSUMÉ

Pour contribuer à la réflexion sur les questions de genre, l'auteur examine l'évolution des discours et des représentations depuis plus d'un siècle et comment ces transformations impactent les formations subjectives. Elle évoque le premier cas transgenre (homme à femme) dont nous avons le témoignage: Lili Elbe. Lili Elbe a laissé des écrits sur son chemin marqué par une détermination sans limite. Elle examine ensuite comment la question est abordée aujourd'hui, à travers l'exemple particulier de Paul B. Preciado (ex-Béatriz), dont l'approche de la notion de genre est à la limite des performances artistiques des adeptes de l'art corporel. Deux mondes qui semblent séparés par des années-lumière, passant d'une conception absolument binaire, dans laquelle on est un homme ou une femme, et d'une approche médicale conçue uniquement comme la réparation d'une erreur de la nature, à une conception dans laquelle devient possible le refus des assignations produites par une culture commune et où toutes les formes intermédiaires peuvent être envisagées, même l'utilisation de manipulations pharmaceutiques en dehors du domaine médical.

Mots-clés : phallus, réassignation, binarité, transgenre, art corporel


 

 

Lili Elbe, nascida Einar Wegener, é a primeira mulher transexual que nos deixou o testemunho escrito de uma operação radical de redesignação sexual. Sabemos quais foram os procedimentos cirúrgicos de Einar na clínica de Kurt Warnekros, mas não os conhecemos em suas especificidades. O Instituto para Pesquisa Sexual (Institut für Sexualwissenschaft) foi destruído pelos nazistas em maio de 1933.2 Lembremos que em 1930 a medicina estava na infância nessa área.

A autobiografia de Lili Elbe, publicada postumamente (1933), editada por Niels Hoyer, conta a história de sua transformação. Ao contrário de Herculine-Adelaïde Barbin,3 educada em mundo feminino e cristão e judicialmente forçada a mudar seu sexo legal para tornar-se Abel, Lili Elbe nos impressiona por sua vontade inabalável de afirmar sua legítima identidade sexual.

Dresden, 14 de junho de 1931:

Após um breve exame, professor Kreutz4 decidiu me reoperar. Esta será a última vez ... Estou muito contente por estar na minha clínica de mulheres. O professor prometeu ler minhas "Confissões" e me ajudar, se necessário, a corrigi-las. Quanto ao resto, acho maravilhoso que, em vez de descansar sobre os louros, corra o risco de voltar a operar para que me sinta bem, possa ter um marido e talvez também ter um filho para me fazer mais feliz.

(Hoyer, 2004, p. 259)

É possível que o projeto de escrever suas "Confissões", nascido após a revelação pública de sua transformação cirúrgica, corresponda a um desejo de recuperar o controle de sua história. Permitamo-nos nessa leitura arriscar algumas suposições com base na ambiguidade subjacente ao relacionamento de Lili com Einar.

Vou contar a história da minha vida como um cronista fiel, diz Lili a Niels Hoyer. Então, vamos começar com meus pais ... De meu pai, eu tenho meus olhos negros. Não era um homem forte, era bastante afeminado, preocupado com seu conforto. Minha mãe, por outro lado, era uma mulher forte e saudável, uma loira nórdica, talvez até com um temperamento difícil, uma dona de casa enérgica e uma boa mãe ... Mamãe gostava de me vestir. Para ela, todo o refinamento era pouco. (Hoyer, 2004, pp. 60-61)

Garotinho, eu tinha longas madeixas louras, uma pele branca como a neve e olhos negros, então era sempre tomado por uma garota. ... Aos 8 anos, meus irmãos costumam me provocar por causa da minha "voz de menina". Levei isso muito a sério e, depois, esforcei-me muito por adquirir uma voz baixa adequada e jovem. Olhando para isto agora, parece que a minha voz infantil foi minha primeira dissimulação". (Hoyer, 2004, p. 61)

Na adolescência, meu interesse pela arte cresceu muito ... Fui enviado para uma academia de arte em Copenhague aos 19 anos. ... Lá conheci Grete. Foi amor à primeira vista ... Um ano após nosso primeiro encontro, Grete e eu nos casamos. (Hoyer, 2004, p. 63)

O autor descreve o despertar desse desejo de incorporar Lili surgido de uma ideia incidente (Einfall) de sua mulher:

Naquela época, Grete pintava o retrato da atriz mais popular de Copenhague, Anna Larsen. Um dia, Anna não conseguiu chegar à sessão. No telefone, ela perguntou a Grete: "Andreas não pode ser seu modelo para a metade inferior do quadro? Suas pernas e pés são tão bonitos quanto os meus". (Hoyer, 2004, p. 65)

No começo, recusei simplesmente, mas Grete zombou de mim, me insultou, me implorou, me acariciou, e, alguns minutos depois, me vi no estúdio de terno e sapatos de salto alto. Nós dois rimos e pensamos que era uma boa piada. E para o disfarce ser completo, Grete foi pegar uma peruca de carnaval do fundo de um baú, uma peruca loira toda encaracolada para colocá-la na minha cabeça. Aí atacou-me com batom e pó enquanto eu pacientemente me submetia a tudo. (Hoyer, 2004, pp. 65-66)

A história trai uma complacência em que o sujeito parece passivamente, voluptuosamente, oferecer-se como um objeto do prazer de Grete. Pode-se ouvir aí: "mamãe gostava de me vestir". Poderíamos reconhecer nessa resposta a reedição de sua "primeira dissimulação"? Dissimular não é reprimir.

Anna Larsen então chegou. Olhou para mim, mas não reconheceu a estranha mulher na frente dela. Ela só reconheceu suas próprias roupas. Então, deu um grito de alegria e beijou-me efusivamente: "Sabe Andreas, você certamente era uma garota em uma existência anterior, caso contrário, a natureza cometeu um erro com você". (Hoyer, 2004, p. 66)

Vamos nos deter nessa frase que levanta um ponto singular no percurso de Andreas. Sua história é parte do que se tornaria, com a noção de gênero, a crítica da designação (mesmo que o termo não exista na época): a designação é entendida como o discurso pelo qual o outro coletivo nomeia o gênero de um sujeito, um gênero contra o qual o sujeito se rebela. Mas esse é o caminho inverso do que observamos em Andreas: ele se apresenta inicialmente de acordo com seu gênero de homem, e é a palavra de outro - neste caso, a modelo que ele substitui ao posar - que despertará a consciência de sua verdadeira identificação de gênero. Poder-se-ia chamar isso "des-designação". Nesses tempos primeiros, o discurso normalizador faz com que Andreas não tenha acesso a essa dimensão de sua própria identidade.

Lili começa a posar regularmente para Grete e rapidamente torna-se seu modelo favorito. Em 1912, o casal mudou-se para Paris e misturou-se ativamente à vanguarda artística, frequentando festas, teatro e mascaradas. Andreas agora aparece como Lili. Lili se afirma cada vez mais, a ponto de decretar em seu diário: "Andreas Sparre está morto". Em 1930, Lili conheceu o médico e sexólogo Magnus Hirschfeld, que logo supervisionaria sua primeira operação transexual. Em 1930, passa pela primeira operação. Lili descreve sua mudança física:

Meus seios foram formados, meus quadris mudaram e ficaram mais macios e arredondados. E, ao mesmo tempo, outras forças começaram a mexer em meu cérebro e sufocar tudo o que restava de Andreas. Uma nova vida emocional está se abrindo em mim ... (Hoyer, 2004, p. 231)

Ela escreve para seu médico: "Eu me sinto tão mudada, que parece que você não operou meu corpo, mas meu cérebro. ... Até o nome de Andreas Sparre já não tem um som amargo para mim" (Hoyer, 2004, p. 231). Embora tivesse dificuldade em suportar a ideia de ter assassinado Andreas/Einar, o homem que ela já foi, Lili expressa sua felicidade com sua nova identidade três meses antes de sua morte: "Eu, Lili, estou viva e tenho o direito de viver, provei isso vivendo 14 meses", escreveu ela em carta a um amigo. "Podemos dizer que 14 meses não é muito, parece-me uma vida humana inteira e feliz" (Hoyer, 2004, p. 263).

Para que o corpo de Lili mudasse, foram necessárias várias operações (orquiectomia, transplante de ovário, penectomia etc.). Lili não escapa de uma técnica médica que segue uma lógica binária. Muito diferente é o caso de Paul B. Preciado.

Paul B. Preciado filósofo, escritor espanhol, define-se como homem trans. Antes Béatriz, iniciou um processo de mudança de sexo tomando testosterona e tornou-se Paul B. Preciado em janeiro de 2015.

Seu livro, Testo junkie (2008), escrito como um manifesto político em nossa era que ele chama de tecnofarmacológica, luta contra as concepções binárias definidoras das identidades sexuais. Desde as primeiras linhas, Paul B. Preciado nos avisa: "Este livro não é uma autoficção, é um protocolo voluntário de intoxicação à base de testosterona sintética com respeito ao corpo e aos afetos de BP. Um ensaio corporal. Uma ficção, com certeza" (Preciado, 2013, p. 11).

Paul B. Preciado, quando ainda é Béatriz, decide, no mesmo dia em que apreende a morte de um amigo muito próximo, incorporar um significante fálico representado pela testosterona. Falamos aqui de um significante materializado, uma vez que é um hormônio masculino, é uma incorporação particular, uma vez que é uma incorporação no sentido próprio, um gel que passa através da pele e entra no corpo. Há uma condensação entre duas operações: uma operação propriamente significativa e uma operação material que pode ser descrita como desmetaforização da metáfora.

Vemos que a posição de P. B. Preciado incide em um paradoxo. Trata-se para ele/ela de uma performance "farmacopornográfica"5 que vai durar um ano para desconstruir todas as categorias tradicionais do gênero a ponto de se afirmar nem mulher, nem homem, de definir-se entre. No entanto, esse significante singular ao qual ele/ela recorre tem todas as características tradicionais da masculinidade. Enquanto critica ferozmente a binariedade da diferença sexual, seu desempenho pode ser lido como uma referência ao primado do falo entendido em sentido lacaniano.6 Pensamos no falo como "o significante do poder, o cetro e também isso graças a que a masculinidade pode ser assumida" (Lacan, 1957-1958/1998, p. 274).

No jardim de um hotel confortável em Saint-Germain-des-Près, vemos primeiro um bigode fino, uma linha simples formada por pequenos pelos colados sobre os lábios. Então um corpo vestido de preto que não dá indicação de gênero sexual. O rosto é anguloso e suave ao mesmo tempo, a fala fluida e brilhante. Béatriz Preciado tira do bolso um pequeno sachê de testosterona da mesma forma que outros descuidadamente pegariam alguns euros para pagar o café. 50 mg de gel. "Eu não tomo esse hormônio para me tornar um homem, isso não me interessa" (Daumas, 2008)

Trata-se de assumir a escolha de uma aparência, a escolha de uma máscara, o gozo fálico goza de um objeto que deliberadamente finge ser adequado.7

Desde 1958, em O significado do falo, Lacan situa a questão do ser e do ter com base na mascarada feminina, do parecer, portanto.

Digamos que essas relações girarão em torno de um ser e um ter que, por se reportarem a um significante, o falo, têm o efeito contrário de, por um lado, dar realidade ao sujeito nesse significante, e, por outro, irrealizar todas as relações a serem significadas. E isso pela intervenção de um parecer que substitui o ter, para, de um lado, protegê-lo e, de outro, mascarar a sua falta no outro, e que tem o efeito de projetar inteiramente as manifestações ideais ou típicas do comportamento de cada um dos sexos, até o limite do ato de cópula, na comédia. (Lacan, 1958/1996, p. 701)

Do valor de significante/simulacro Lacan chegará à proposição do "semblante": "o falo é muito propriamente o gozo sexual, na medida em que é coordenado, que é em solidariedade com um semblante" (Lacan, 1971/2007, p. 34).

Preciado procura os atributos desse significante decisivo,8 entendendo que o falo pertence a todos. Enquanto esse significante para Lili formule seu desejo de ter um marido e ter um filho dele, Preciado não o encontra no homem ou na criança, encontra-o nos atributos da molécula química "testo" que dá acesso à potência fálica. Ouçamos o que diz sobre o hormônio:

Então, instala-se, pouco a pouco, uma lucidez extraordinária, acompanhada de uma explosão do desejo de trepar, de andar, de sair, de atravessar toda a cidade. Este é o ponto culminante no qual se manifesta a força espiritual da testosterona misturada com o meu sangue. Absolutamente todas as sensações desagradáveis desaparecem. ... Nada além de uma impressão de força que reflete a capacidade multiplicada dos meus músculos, do meu cérebro. ... Alguns dias se passam, o movimento interior acalma-se, mas a sensação de força, como uma pirâmide desvelada por uma tempestade de areia, permanece. (Preciado, 2008, p. 21)

Notamos aqui a imagem da pirâmide, imagem fálica por excelência, que se impõe a ela/ele.

Nesse primeiro momento da experiência, o que sobressai é o questionamento de ter cometido um ato que vai contra as representações culturais que são as dele e, particularmente, de seu feminismo militante: "O que fazer de todos esses anos em que me defini como feminista?" (Preciado, 2008, p. 21).

Para aceitar o que questiona suas certezas, ele vê apenas uma solução: "aceitar que a mudança que está ocorrendo em mim é a mutação de uma era" (Preciado, 2008, p. 21).9

Como entender a administração de testosterona no momento da perda de seu amigo tão querido?

Paul B. Preciado assinala que essa experiência já havia começado quando soube desse desaparecimento, mas então ganha um significado especial, o de trazer de volta à vida aquele homem de modo quase alucinatório. "É você quem me chama para discar seu número (chama vd). Você ouve a nossa conversa", em uma relação estreita com a escrita. "Nesse mesmo dia, algumas horas depois, aplico uma dose de 50 mg de Testogel em minha pele para começar a escrever este livro." Como se essa experiência sob um après -coup ganhasse significação com a morte desse amigo.

Deveríamos falar de movimento melancólico nesse processo de incorporação mágica do hormônio que atravessa a pele e se incorpora? Mas estamos aqui em um processo consciente que evoca uma identificação com o outro ou a identificação com um traço.

Quando um corpo abandona as práticas que a sociedade onde vive autoriza como masculino ou feminino, desliza progressivamente para a patologia. As opções biopolíticas disponíveis para mim são as seguintes: ou me declaro transexual, ou me declaro drogado e psicótico. No atual estado de coisas, parece-me mais prudente declarar-me transexual e deixar que a medicina acredite que pode oferecer uma cura satisfatória para o meu "distúrbio de identidade de gênero". (Preciado, 2013, p. 256)

Colocar o corpo em jogo para desafiar representações tradicionais de corpos sexuados é uma experiência que tem muitos precedentes na história do feminismo. É também um ponto em que as lutas políticas e certas formas de arte corporal se encontraram. "É como corpo que as mulheres são designadas como mulheres ... o corpo feminino se torna a identidade e a prisão da mulher, tanto o que a mulher é como o que ela não é", formula Laura Cottingham, citada por Patrick Merot (Merot, 2005, p. 1592).

A esse respeito, a performance de P. B. Preciado pode ser comparada ao desempenho dos defensores da body art como uma forma política de arte. Sublinhando essa possível relação abre-se um caminho para sair de uma visão psicopatológica dessas intervenções no corpo.

Vamos seguir Patrick Merot sobre a body art:

Com a arte corporal, o compromisso do corpo é feito pelo que poderia ser chamado de retorno ao corpo. Não é um curto-circuito, mas um longo circuito que testemunha não a incapacidade de fantasiar, mas a disposição de recusar os modos clássicos de expressão. (Merot, 2005, p. 1587)

Eu sou um homem trans, uma maneira de dizer meu confronto com o sistema de gênero sexual. Nossos corpos trans são um ato de dissensão. (Preciado, 2019)

Desse ponto de vista, Einar, apesar de artista, não inscreve sua transformação numa abordagem artística. Mesmo que a posição de Lili como modelo e musa tenha levado alguns a interpretar sua obra pictórica, suas paisagens pantanosas, em conexão com uma estética trans, isso nos parece irrelevante. Ele se descobre como mulher durante as sessões de pose e segue cada vez mais determinadamente na realização desse caminho.

Do ponto de vista de Grete, as coisas são diferentes: faz de Einar o objeto de sua arte e o molda à sua maneira; ele se torna seu modelo designado, ela apoia a transformação de seu companheiro/companheira, e o relacionamento que ela tem com ele está no coração de sua criação. Não é o seu próprio corpo que está em jogo nessa criação, mas o corpo de outro que é o seu duplo. Estamos muito próximos do que a body art põe em ação.

 

Referências

Daumas, C. (2008). Beatriz Preciado. La philosophe déconstruit sexes et genres, à coups de voltes théoriques et de prises de testostérone. Libération, 14 octobre. Recuperado em 12 de março de 2021, de https://next.liberation.fr/livres/2008/10/14/tete-a-queue_114997.         [ Links ]

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Hoyer, N. (2004). Man into woman. The first sex change. Blue Boat.         [ Links ]

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Merot, P. (2005). Art corporel: le corps entre pensée sublimatoire et pensée opératoire. RFP, vol. 69,1583-1596.         [ Links ]

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Preciado, P. B. (2018). Appelle-moi par mon (autre) nom. Libération, 23 de fevereiro. Recuperado em 12 de março de 2021, de https://www.liberation.fr/auteur/13780-paul-b-preciado).         [ Links ]

Preciado, P. B. (2019). Paul B. Preciado: "Nos corps trans sont um acte de dissidence du système sexe-genre" Entrevista a C. Daumas. Libération, 19 de março. Recuperado em 12 de março de 2021, de https://www.liberation.fr/ debats/2019/03/19/paul-b-preciado-nos-corps-trans-sont-un-acte-de-dissidence-du-systeme-sexe-genre_1716157.         [ Links ]

Safatle, W. (2005). A paixão do negativo. Lacan e a dialética. UNESP.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 7/2/2021
Aceito em: 8/2/2021

 

 

1 Uma versão reduzida deste texto foi apresentada originalmente no 79e. CPLF 2019 e publicada na Revue Française de Psychanalyse, décembre de 2019, tome LXXXIII, 5, pp. 1665-1670.
2 O número exato de operações que Einar realizou para se tornar uma mulher varia um pouco nos relatórios, mas a maioria lista o número em quatro ou cinco. Elas foram realizados durante um período de aproximadamente dois anos. A primeira envolveu a remoção de seus testículos (castração), e aconteceu em 1930, em Berlim, sob a supervisão do dr. Magnus Hirschfeld, no Instituto Alemão de Ciência Sexual. As cirurgias restantes foram realizadas na Clínica das Mulheres Municipais de Dresden pelo dr. Kurt Warnekros (retratado no filme por Sebastian Koch), um obstetra alemão. Elas incluíram operações para remover o pênis (penectomia), criar uma vagina e implantar um ovário na musculatura abdominal. A cirurgia final para transplantar um útero no corpo de Einar acabou por se revelar fatal (extraído de The Telegraph.co.uk).
3 Lembremos que sua autobiografia, Herculine Barbin, chamada Alexina B, originalmente publicado por Ambroise Tardieu (1874), foi apresentada em 1980 por Michel Foucault, que reconheceu neste diário um documento valioso para elucidar um regime disciplinar organizado em torno da categoria do "sexo real" no século XIX (Foucault, 1980/2014).
4 Em sua autobiografia, Lili Elbe muda os nomes: Professor Kreutz (Kurt Warnekros), Andreas Sparre (Einar Wegener); Grete (Gerda Gottlieb Wegener); Anna Larsen (Ulla Poulsen); Niels Hoyer (Ernst Harthern).
5 Para Preciado, entramos em uma terceira forma de capitalismo, em que o sexo e a sexualidade se tornam a principal questão da atividade política e econômica. É "a aparição de um regime pós-industrial, global e midiático, em que a pílula e a Playboy são paradigmáticas e que daqui em diante chamarei de farmacopornográficas tomando por referência os processos de governo da subjetividade sexual, em seus modos moleculares (pharmaco) e semiotécnicos (pornografia) (Preciado, 2013, pp. 33-34).
6 Para Lacan, "O falo na teoria freudiana não é uma fantasia, caso se deva entender por isso um efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um objeto (parcial, interno, bom, ruim etc.), na medida em que este termo tende a prezar a realidade implicada em uma relação. E é menos ainda o órgão, o pênis ou clitóris, que ele simboliza. E não foi sem razão que Freud tomou a referência ao simulacro que ele era para os antigos" (Lacan, 1957-1958/1998; 1966, p. 696).
7 "Há a via própria ao gozo fálico e que consiste em assumir uma escolha do objeto que é na verdade escolha de uma aparência, a escolha de uma máscara. Se a subjetivação da falta por meio do falo colocou a inadequação de qualquer objeto empírico do desejo, então nada impede que o sujeito de gozar de um objeto que, de certa maneira, faz deliberadamente semblante de ser adequado, um objeto que é uma máscara" (Safatle, 2005, pp. 136-137).
8 O falo é, de certa maneira, "uma encruzilhada de significantes, um significante para o qual converge mais ou menos o que acontece no engajamento do sujeito humano no sistema significante, desde que seu desejo passe por esse sistema para se fazer reconhecer e que nisso seja profundamente modificado" (Lacan, 1957-1958/1998, p. 287).
9 "Todo dia, caminhando nessa rede insana de fios finos, acho que fazer uma transição como essa talvez seja o mais belo processo político experimental que um ser humano do começo do terceiro milênio pode viver. Mas também é um dos mais arriscados, que eu comparo com a migração, a 'reintegração social' depois de sair da prisão, retornando ao trabalho depois de ser diagnosticado com aids ou câncer, ser mãe ou pai ou filho adotivo ou filha, ser professor de ginástica depois de ter sido uma estrela X, ter sido diagnosticado esquizofrênico ou limítrofe e tentar ter o que algumas pessoas chamam, sem saber do que estão falando, uma vida normal". (Preciado, 2018).

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