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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo jan./jun. 2021

 

TEMA: O QUE FAZEMOS COM O SEXUAL?

 

"Coisa de menina": implicações e atribuições do feminino no atendimento de uma adolescente

 

"Girly things": implications and attributions of feminine aspects on an adolescent's psychological care

 

"Cosa de niña": implicaciones y atribuciones del femenino en el cuidado de una adolescente

 

« Chose de fille » : implications et attributions du féminin pendant une séance avec une adolescente

 

 

Marianna Ramos e Oliveira

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em Saúde Mental pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Uberaba / ramosmarianna.oliveira@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir aspectos e atribuições do feminino na constituição da mente e expressão da sexualidade de uma adolescente de 13 anos de idade. Para tal, são utilizados excertos de sessões realizadas ao longo de um ano e meio de trabalho psicanalítico. O discurso apresentado pelos pais significa a feminilidade com uma compreensão apoiada na fantasia da falta originária, na qual as características da menina se afirmam pelo que ela não tem e não pode ser, limitando possibilidades mais genuínas de reconhecimento. Quanto à paciente, a recusa da feminilidade é discutida, não como uma expressão ontológica, mas defensiva, de modo a encontrar meios de existência própria em oposição às expectativas dos pais. O artigo discute aspectos de "vir a ser", próprios da adolescência, precedentes à definição da sexualidade propriamente dita, compreendendo o feminino como construção individual que virá a qualificar possibilidades de expressão do eu em continência e criatividade.

Palavras-chave: psicanálise, adolescência, gênero, psicologia clínica


ABSTRACT

The present article's main objective was to discuss implications and attributions of feminine aspects in the constitution of the mind and the expression of sexuality of a thirteen-year-old girl. For such, fragments of sessions held over one and a half years of psychoanalytical care were used. Parent's discourse comprehends femininity based on the concept of original absence, in which girl's characteristics are affirmed by what she lacks and cannot be, limiting more genuine possibilities of recognition. As for the patient, the refusal of femininity is discussed not as an ontological expression, but as a defensive one, in a way to find means of self existence in opposition to the parent's expectations. The article approaches aspects of "coming to be", particular to adolescence, that precedes the final definition of sexuality, interpreting the feminine as an individual construction that will come to qualify possibilities of expression of the self in continence and creativity.

Keywords: psychoanalysis, adolescence, gender, clinical psychology


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir aspectos y atribuciones del femenino en la constitución de la mente y expresión de la sexualidad de una adolescente de trece años. Para eso, son utilizados fragmentos de sesiones realizadas durante un año y medio de trabajo psicoanalítico. El discurso presentado por los padres significa la feminidad por una comprensión basada en la fantasía de la carencia original, en la que las características de la niña son afirmadas por lo que no tiene y no puede ser, limitando posibilidades de reconocimiento más genuinas. En cuanto a la paciente, se discute el rechazo de la feminidad no como una expresión ontológica, sino como una expresión defensiva, para encontrar formas de existencia propia en oposición a las expectativas de los padres. El artículo discute aspectos del "venir a ser" propios de la adolescencia, precedidos a la definición de sexualidad, entendiendo lo femenino como una construcción individual que calificará las posibilidades de expresión del yo en la continencia y la creatividad.

Palabras clave: psicoanálisis, adolescencia, género, psicología clínica


RÉSUMÉ

Cet article, il a comme but de discuter les aspects et les attributions du féminin dans la constitution mentale et l'expression de la sexualité d'une jeune fille de treize ans. Pour cela, ce sont utilisés des extraits de séances de travaux psychanalytiques réalisées pendant un an et demi. Le discours présenté par les parents signifie la féminilité avec une compréhension appuyée sur la fantaisie du manque originaire, dans laquelle les caractéristiques de la fille se soutiennent par ce qu'elle n'en a pas et ne peut pas être, limitant ainsi les possibilités les plus originales de reconnaissance. Quant à le patient, le refus de la féminilité est discuté pas comme une expression ontologique mais défensive, donc de trouver des moyens d'existence propre en opposition aux expectatives des parents. L'article questionne des aspects de « devenir » propres de l'adolescence qui précède à la définition de la sexualité, proprement dite, comprenant le féminin comme construction individuelle qui pourra qualifier des possibilités d'expression du moi en continence et en créativité.

Mots-clés : psychanalyse, adolescence, genre, psychologie clinique


 

 

Sabe-se que Winnicott se interessava, ao começar um trabalho com uma criança, por questionar o que ela gostaria de ser quando crescesse (Ogden, 2020). A minha resposta para essa pergunta, antes mesmo de aprender a ler, era sempre a mesma: "quero ser escritora". Talvez ali já me encantasse a possibilidade de comunicar, de dar testemunho às minhas observações, e, principalmente, de nomear sentimentos e experiências com uma prosa que fizesse jus à riqueza dos detalhes e às intricadas complexidades do mundo interno infantil.

Historicamente, não é mera coincidência que uma criança do sexo feminino clame por espaço de fala e registro, sendo herdeira de uma "luta inacabada entre forças assimétricas na sociedade humana" (Scarfone, 2019, p. 113). Também não poderia me dissociar das influências culturais que recebi na infância e daquilo que me foi oferecido não como criança, mas como menina. "Isso é coisa de menina" é uma expressão bastante repetida em nossa cultura durante a infância e adolescência, tipicamente com uma conotação pejorativa ou restritiva. Mas será mesmo que existem elementos exclusivos ao universo feminino ou masculino? Proponho, com um aprofundamento de abordagem à expressão escolhida para o título deste trabalho, traduzi-la para experiências absolutamente individuais, ainda que culturalmente embasadas.

Foucault (1984/2020) estima que foi a partir do século XIX que os códigos morais se tornaram mais limitantes, com a expressão da sexualidade sendo encerrada ao quarto dos pais e circunscrita ao valor reprodutivo. A todo o restante, e aqui podemos estimar então a vasta maioria da experiência sexual autêntica e individual, cabia encobrir-se. Freud (1905/1996b) traz um sopro de vigor à pauta ao elaborar os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, trazendo abalo ao que parecia tão firmemente edificado. Como ficou a concepção do feminino, entretanto, na teoria e imaginário? E como se apresentam as possibilidades de expressão da sexualidade hoje em nossos consultórios?

Faço-me valer da afirmação de Scarfone (2019) de que a psicanálise não tem como definir o que é feminino sem ao mesmo tempo prescrever o termo. A própria palavra "feminino" carrega em si uma dicotomia intrínseca na contraposição a sua outra metade, o "masculino". Nessa escolha de termos parece se desenhar uma linha natural da sexualidade que se escreve entre corpos opostos, cada um expresso em funções particulares. É importante registrar aqui, porém, que na sexualidade humana há sempre desvio, e sua escrita é muito mais ampla do que as possibilidades simbólicas com as quais contamos para designá-la (Scarfone, 2014).

Sobre a diferença binária de sexos observa-se que a dualidade é pautada em aspectos concretos da visibilidade anatômica: ter ou não ter um pênis. A apreensão do corpo, entretanto, diz respeito a uma dimensão subjetiva da percepção, sendo sempre imaginária, inscrita sobre uma estruturação de fantasia e simbolização de desejos (Ayouch, 2014). Assim, torna-se possível pensar mais em sobreposições de aspectos femininos e masculinos do que em divisões propriamente ditas, tal como colocado por Freud: "Todos os indivíduos humanos, em resultado de sua disposição bissexual e de herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto" (1925/1996a, p. 320).

A compreensão do sexual é definida aqui, portanto, com caráter múltiplo e polimorfo. Quanto ao gênero, compreendido como expressividade do eu, que precede e organiza as fantasias sobre o sexo biológico (Butler, 1990/2003), admite-se ainda uma dimensão social e familiar. Os papéis de gênero esperados são expressos, inicialmente, pelas primeiras atribuições do adulto para a criança, que contribuem para significar aquilo que lhe convém como menino ou menina. São escolhidas as roupas, as cores e os brinquedos, enquanto formulam-se também profundas expectativas dos pais. São justamente esses conflitos entre as expectativas e as reais possibilidades de significação do eu que apareceram em uma situação clínica com uma paciente pré-adolescente, descrita a seguir.

 

A atribuição feminina pelo olhar dos pais

O meu primeiro contato com Maria, mãe da paciente Angélica, foi em um grupo de conversa para mães que coordenei, cerca de dois anos antes da chegada da adolescente como paciente. Na ocasião, ela me disse que insistia em vestir suas filhas (na época com 10 e 8 anos de idade) com roupas iguais combinadas às da mãe, mas que Angélica, a filha mais velha, vinha protestando e já não gostava dos vestidos e laços. Como resposta, falei sobre a importância de limites flexíveis, com espaço para alteridade e discordância, de modo a favorecer o desenvolvimento da autonomia e autenticidade. Lembro-me de ser recebida pelo grupo com olhares frustrados das mulheres, que voltaram a afirmar que ficava muito bonito quando as roupas das meninas eram combinadas.

Já nesse primeiro encontro, ainda que não fosse um espaço específico para falar sobre Angélica, ela passava a existir no meu imaginário como uma criança brigando por sua existência própria, separada e distinta da mãe e da irmã. Quando Maria voltou a me procurar, dois anos depois, acompanhada do marido, eles trouxeram a imagem de uma criança bastante triste, entrando na adolescência com muita dor. Os dois apresentaram sentimentos de culpa, confusão e profundas expectativas frustradas quanto à menina. O pai me contou que acabara de levá-la para cortar o cabelo curto, e que fora muito difícil para ele aceitar e aquiescer ao pedido dela, já que ele sempre pensara que as mulheres ficavam mais bonitas com o cabelo longo.

A mãe me contou que ela só queria usar preto e que seus interesses estavam muito voltados a filmes e livros de terror, além de frequentes crises de choro. Com sinceridade, ela me disse que tinha medo de que a filha viesse a ser homossexual, e que tudo o que ela expressava era bastante distinto do que ela, mãe, conhecia: "quando eu era menina, fui educada para obedecer". Por mais que traços de intolerância e feridas narcísicas permeassem o discurso dos pais, a empatia por eles foi fácil. Vi um casal que estava com medo e que tinha alguma percepção de não conhecer realmente a filha.

A Angélica que eles concebiam era, como o nome fictício que escolhi, idílica, etérea e delicada. A personificação do feminino como concepção binária, de expressão passiva e suave, receptora e gestante dos sonhos e desejos dos pais. Eles traziam uma oposição entre criança/adolescente, fácil/difícil, feminina/masculina, feliz/triste. A criança que tinham hoje parecia não combinar com a filha das lembranças deles, que costumava ser sensível e tolerante, não retrucava, saía-se bem na escola e não dera trabalho quando a irmã mais nova nasceu.

O contraste e oposição a essa irmã mais nova, Camila, era outro recurso que eles usavam para tentar definir Angélica de maneira dual. Camila sempre teria sido a mais "difícil" das duas: enquanto ela fazia o papel de irmã geniosa e complicada, Angélica ocupava o lugar da irmã tranquila e paciente. A mãe se culpava ao observar que Angélica sempre esteve em segundo plano, enquanto Camila era o centro das atenções e preocupações dos pais.

"Você acha que ela pode ser homossexual?", a mãe me questionou nessa primeira entrevista, os olhos ávidos por asseguramento. "O que te leva a pensar isso, quando observa a sua filha?" Ela não precisou pensar sobre essa pergunta, a resposta já estava colocada: "porque ela escolhe roupas de cores escuras, recusa os vestidos de princesa, prefere o cabelo curto e só quer saber de histórias de terror, que não são coisas de menina".

As angústias dos pais na entrevista comunicaram concepções pré-formadas sobre a sexualidade. Seu discurso caracterizava a feminilidade com uma compreensão apoiada na fantasia da falta originária, na qual as características da menina se afirmam pelo que ela não tem (pênis) e pelo que não pode ser. Fiorini (2019) questiona se, em um processo de análise, as ferramentas com as quais trabalhamos conseguem, de fato, independer dos discursos coletivos imperantes. Considerando essa finalidade, eu disse a ela que mais importante e anterior à discussão sobre homossexualidade era observar a necessidade que Angélica expressava de ser reconhecida, de ser vista como ela própria.

Os pais seguiram se justificando, dizendo-se conservadores e reconhecendo possuírem "a cabeça um pouco fechada". Mas o que a mãe continuava a comunicar era que a filha estava muito triste. Ela me disse que Angélica se questionava e aos pais se a sua vida fazia algum sentido e se valia a pena prosseguir. A mãe, com os olhos cheios de lágrimas, disse-me que não entendia como uma criança poderia ter ideias como essas. Eu disse a ela que ainda não conhecia a Angélica, mas que, para mim, ela parecia ser uma pessoa sensível e profunda, que estava sofrendo. Afirmei que eu tinha esperança de que a análise pudesse favorecê-la a encontrar-se mais consigo mesma e tive o cuidado de não fazer afirmações antecipadas sobre sua sexualidade.

 

Encontro de meninas

Angélica chegou à primeira sessão um pouco tímida, usando uniforme escolar e observando tudo com grandes e expressivos olhos azuis. Disse a ela que havia separado materiais que poderíamos usar (lápis, tinta, cola), mas que também poderíamos nos sentar e conversar. Deixei aberta a porta entre a sala de crianças e a sala de adultos, com uma compreensão simbólica de que ela estava em um momento de travessia para a adolescência. Ela decidiu sentar-se à mesinha de crianças e fez um desenho de um rosto feminino com lápis azul. O resultado transmitia uma imagem de pouca definição, como se o rosto estivesse debaixo d'água. Antes de fazer os traços, desenhou uma estrutura delimitando as linhas onde cruzariam os olhos e o nariz, de modo a manter a proporcionalidade. Angélica já se apresentava com sua exigência e cuidado ao detalhe. Os olhos desenhados olhavam de lado e o semblante era triste. Era só um rosto e pescoço flutuantes, já que seu corpo se materializava de forma confusa e indefinida para ela agora, com muitas mudanças. "Essa menina se parece com você", eu lhe disse, e "você desenha muito bem". "As pessoas choram aqui? Eu vi lenços na outra sala."

O começo do trabalho com Angélica foi assim: com incontáveis desenhos e lágrimas. Uma de suas pinturas mais bonitas revelava um conjunto de casinhas agrupadas e envoltas por uma redoma, vistas à distância. Em primeiro plano, estava uma figura de planeta com formas de casas miúdas, indefinidas. "Essas são as casas como as entendemos, mas não são as mesmas para todo mundo, por isso coloquei as perspectivas e os espaços". Existia um universo de casas continentes e aspectos criativos dentro dela, mas os espaços internos eram limitados e pouco receptivos, sem portas ou janelas (Bion, 1961/1991). Afinal "não se nasce mulher, torna-se mulher" (Beauvoir, 1949/2019), não como destino biológico, mas como construção individual que virá a qualificar o feminino como possibilidade de expressão do eu em continência e criatividade.

Após alguns meses, o prosseguimento do trabalho e estreitamento da intimidade possibilitou novos questionamentos sobre idealizações e preconcepções. Em uma conversa, contei que levava broncas dos professores na escola e que costumavam me trocar de lugar na sala porque eu gostava de conversar durante a aula. Angélica arregalou os olhos e disse, admirada, que aquilo não se parecia comigo, e que ela jamais imaginaria que eu pudesse ter sido uma criança que levasse broncas ou fizesse algo errado. Conversamos sobre isso, sobre projeções e idealizações, sobre exigências e figuras femininas obedientes, complacentes e perfeitas.

A exigência é um aspecto significativo de Angélica, e a vontade de ser querida, aceita e admirada. Muitas vezes noto que ela me apresenta uma versão editada de si mesma, usando a feminilidade como máscara (Riviere, 1929/2005) ou o inverso, escondendo e negando a feminilidade. Ela parece pensar que uma Angélica menos passiva (no sentido de submissão) é o equivalente a uma Angélica menos passível de sentimentos. Ela diz não se importar com quase nada, como se isso a fizesse mais forte e potente.

Algumas vezes direciono a interpretação para mim mesma, dizendo que "se eu estivesse me sentindo pouco querida, penso que ficaria triste e com medo de me relacionar", o que normalmente a ajuda a admitir suas emoções, demonstrando algum alívio por poder fazê-lo. Pensando sobre esse nível de interpretação a posteriori, verifica-se, com pacientes limítrofes e estados mentais primitivos, a importância de equilibrar a necessidade de o paciente se responsabilizar por seus sentimentos, e a premência do analista de contê-los (Alvarez, 2012; Bion, 1962/1994). Com Angélica, muitas vezes observo que interpretações mais diretas são rebatidas defensivamente, com pouco efeito de contato. Levando em conta que sua capacidade de introjeção ainda é incipiente, a maneira pela qual eu expresso a minha compreensão de suas emoções, processando-as, parece facilitar movimentos em direção à simbolização (Alvarez, 2012).

Com cerca de um ano e meio de trabalho, abro a porta para encontrar uma Angélica de cabelos curtinhos, camisetas largas e coturnos. Está namorando um menino e vivendo uma experiência afetiva intensa. Depois da chegada dele na sua vida, ela me indaga mais (na verdade a si mesma) sobre a sua sexualidade, suas identificações e interesses. Questiona sua própria feminilidade e insiste, como os pais, em demarcar quem é de forma binária: pela diferença, pelo contraste.

Um dia veio de bolsa, coisa que não costumava fazer, e me perguntou se poderia fazer as unhas. Ela tirou da bolsa um kit completo com esmalte, hidratante, toalhinha e espátula. Comumente, sempre a via de esmalte preto, mas, nesse dia, o vidrinho continha um esmalte verde. Ela contou que preferiu aquela cor porque "todas as meninas" (suas amigas) iriam passar esmaltes pretos e ela queria "ficar/ser diferente". À medida que começou a esmaltar as unhas, aquele cheiro de salão de beleza e conformidades femininas encheu a sala, ao mesmo tempo em que Angélica foi ficando mais e mais incomodada. Quando terminou, disse que não havia gostado e tirou o esmalte agressivamente com os dedos, borrando as mãos. Passou o restante da sessão olhando o relógio e querendo ir para casa, onde tinha removedor.

No movimento psíquico que Angélica apresenta, ela define a feminilidade como passividade e inferioridade, que ela recusa. Ela constantemente critica e rejeita a mãe, a irmã e as amigas, dizendo serem pessoas pouco interessantes e impotentes, que aceitam tudo sem questionar e se preocupam excessivamente com o que as outras pessoas pensam. A sua não aceitação da feminilidade, portanto, não parece ser uma expressão ontológica, mas defensiva (Ayouch, 2014). Ela projeta nas outras mulheres e meninas à sua volta suas fantasias da receptividade como algo invasivo e possivelmente parasitário. Caso aceite e acolha algo dentro dela, não seria mais ela mesma, mas um ser confundido e misturado. Assim, na impossibilidade de introjeção das diferenças para o desenvolvimento do pensamento, Angélica parece funcionar prioritariamente de maneira evacuativa, tentando livrar-se de objetos internos sentidos como ameaçadores (Bion, 1961/1991).

Sobre o esmalte, disse a ela, com simplicidade, que o fato de não escolher uma cor só porque suas amigas também iriam usá-la talvez tivesse o mesmo sentido de escolher uma cor só porque as amigas iriam usá-la. De um jeito, ou do outro, ela não parecia estar acolhendo aspectos próprios. Ela me olhou pensativa, com uma expressão interessada: "Acho que sim... quem sabe então eu deva escolher o que eu gosto mais".

No namoro, sua experiência proporciona sobreposições interessantes entre os aspectos femininos, masculinos e infantis. O namorado é mais novo, com 12 para 13 anos, enquanto ela está com 13 anos e meio. Ela o descreve como mais baixo do que ela, mais romântico e mais complacente, por vezes questionando a heterossexualidade dele (e a sua). Sua mãe afirma que ele "faz o que ela quer". Ela parece sentir-se acolhida nessa relação por não haver muito espaço de diferença ou discordância, ainda que se trate de um menino (sexo oposto). Quando isso chega a acontecer, entretanto, e ela afirma que ele não dá ênfase suficiente a algo importante para ela, há choro e briga. A frustração é vivida com ameaças de ruptura: ela ameaça terminar o namoro e acaba por fazê-lo chorar, arrepender-se e implorar, o que a faz se sentir menos insegura.

Com as amigas é diferente, pelos constantes atritos. Ela diz sentir-se excluída e preterida no grupo, projetando a rejeição nas outras meninas. Na verdade, ela é exigente e cobra muito por sua amizade, então acaba sentindo que a maioria do que recebe é insuficiente. Para não sofrer, reage com desprezo, dizendo que não liga para as amigas porque elas são desinteressantes e pouco abertas. Nesse processo projetivo de tentar escapar às frustrações implicadas no vínculo, o resultado acaba sendo sentir-se mais sozinha.

Em conversas recentes, fiz movimentos de ampliar a percepção dos profundos desejos de se vincular e pertencer que Angélica tem, assim como de ser autêntica e de sentir sua existência como própria. Digo-lhe que "sen timos muitas coisas ao mesmo tempo, não é uma emoção ou a outra, mas conjugadas: amor e inveja, interesse e medo, amizade e raiva". Com isso proponho um sonho de que a sua compreensão, atravessada por sua feminilidade, possa ser cada vez mais relativa ao eu em si mesmo, em sua dimensão ampla e complexa, em oposição a parâmetros binários e excludentes.

 

A mente em constituição

Considerando os questionamentos dos pais e da própria Angélica quanto à sua homossexualidade, abstenho-me aqui, como em conversas com eles, de emitir qualquer comentário que possa ser simplificado ou reducionista. A etapa de desenvolvimento psíquico e o momento em que se encontra o processo de análise de Angélica parecem anteceder a edificação de uma bissexualidade psíquica primária, o que indica, portanto, um estado de mente anterior à definição de amor objetal completa. É importante registrar que, antes que a genitalidade tenha uma função específica, discriminando posições femininas e masculinas, a sexualidade é infantil (Fingermann, 2008; Freud, 1905/1996b).

Logo no começo da vida, especificamente nas primeiras experiências amorosas com a mãe, é que vai sendo construída a bissexualidade psíquica primária. Para tanto, é necessária uma condição materna de reverie, continência e respeito à singularidade mental da criança, nomeando e explorando significados de modo que ela introjete a capacidade de conter seus próprios recursos (Haudenschild, 2008). Com essas considerações, digo a Maria sobre a importância de afrouxar suas expectativas quanto à filha. Observo que, quanto mais ela se preocupa com o que pensa que uma menina deveria ser, menos se torna capaz de viver verdadeiramente aquilo que a sua filha pode vir a ser. Considero que no trabalho com os pais se situa um aspecto importante da aposta terapêutica, na função de cocriar com a mãe, a partir das manifestações e necessidades expressas pela filha adolescente, condições para identificar movimentos obstrutivos do desenvolvimento psíquico (Moro, 2005).

É possível pensar que, mais importantes do que o destino final da genitalidade são as aquisições de possibilidades verdadeiras e profundas de vinculação e permanência, componentes essenciais da experiência emocional. Angélica exercita sua condição de interesse, carinho e investimento afetivo, observa-se e começa a conhecer aspectos vinculares como funções próprias do seu eu. Ainda assim, seu movimento mental se apresenta, na maior parte do tempo, de maneira projetiva, estando ainda por construir um espaço mental ampliado que possa tornar-se continente de ambivalências (Bion, 1961/1991).

Na oposição que Angélica faz, afirmando-se diferente de outras mulheres e definindo-se pelo contraste, a negação pode ser interpretada como afirmação de existência: "estou aqui e digo não". Observa-se também a perpetuação de divisões binárias e de informações sobre sexualidade e feminilidade elaboradas e transmitidas por gerações precedentes. Ao mesmo tempo em que ela questiona, ávida e apaixonadamente, as diferenças entre homens e mulheres e seus papéis sociais, ela se utiliza dos mesmos aspectos duais para estabelecer uma concepção inicial de si mesma. Pode-se pensar, assim, que essas divisões ainda sejam úteis para organizar o pensamento, e que, não sendo possível que sejam abolidas, possam vir a ser pensadas, significadas e atualizadas.

Para Angélica, nesse momento, o feminino simbólico, base essencial para a constituição da psique de homens e mulheres, parece se fundamentar através da transmissão transgeracional de significantes perturbadores do desenvolvimento mental (Korosteleva et al., 2020). A menina se identifica com a mulher-mãe que sente como impotente; e a mãe, por sua vez, parece se identificar com a feminilidade apresentada pelo pai perdido prematuramente, e colorida por esse luto.

Maria, única menina entre quatro irmãos, perpetua uma história de obediência e diferença demarcada por impossibilidades. Aos irmãos tudo era permitido; à menina, o aceitável dizia respeito apenas à polidez, aceitação da falta e docilidade. Com a concretude da morte do pai em sua adolescência, a discordância dessas regras e introjeção de uma feminilidade ativa e potente podem ser sentidas como formas de rejeição a um objeto amado. Assim, o feminino persiste significado de maneira limitante, fantasia com a qual a filha se identifica e protesta. Dizendo de outro modo, parece haver uma presença marcante dos conflitos infantis da mãe, revividos e atualizados de forma obstrutiva na relação com a filha. Angélica, na sua busca por sobreviver psiquicamente e desenvolver um espaço mental individual, assume recursos projetivos de defesa, rejeitando os significantes femininos transmitidos (Trachtenberg, 2017).

Espero que o processo de análise com essa paciente possa favorecer o desenvolvimento de concepções mais consistentes e amplas do feminino, que contenham aspectos e possibilidades diversas, autênticas e dissidentes. Scarfone (2019) traz possibilidades de solução nesse sentido ao destacar a substituição da palavra passividade (na descrição do feminino) por passibilidade, significando a capacidade de experimentar sensações e sofrer. Observo que Angélica interpreta "não sentir, não conter, não sofrer" como conquistas de força. Na minha perspectiva, entretanto, como outra representante do universo das meninas, a condição de se fazer presente e capaz de atravessar emoções sem evadir-se, deixando-se habitar, assombrar e transformar, constitui uma das possibilidades mais potentes do feminino. Condição essa que pode culminar no desenvolvimento de recursos criativos, de solidariedade e de humor.

Considero importante, em um processo de análise, que possamos exercitar dentro de nós e com os pacientes a possibilidade de trabalhar com o que temos, deixando de olhar apenas para as ausências. A presença de elementos de falta, perda e inveja na constituição do feminino tem sido amplamente discutida, com pouco a ser questionado. O que talvez faça sentido, portanto, na produção de significantes novos e genuínos, é reconsiderar estereótipos discursivos que possam funcionar de maneira limitante e reducionista. O lugar da sexualidade e, mais especificamente, do feminino na cultura é um assunto em pauta por sua complexa diversidade. A perpetuação de discursos saturados, seja no âmbito familiar ou nas relações macrossociais, pode funcionar como um engessamento da autenticidade.

Dessa forma, é apenas abrindo mão dos "rótulos" que podemos encontrar, em meio a diferenças e particularidades, elementos de unicidade que podem vir a ser "coisas de menina". Nesse enquadre (constantemente em ampliação) cabem tanto os cabelos curtinhos e loiros de Angélica, como os meus longos e pretos. Cabem complacência, raiva, medo, amor. As minhas impressões de Angélica aparecem neste texto como representantes de um clamor que podemos alcançar dentro de cada um de nós: a urgência de existir, de ser autêntico e de ser reconhecido de forma respeitosa. Concluo com a ideia de que essas, na verdade, são coisas de ser gente. Assim, Angélica e eu seguimos juntas e vamos fazendo construções, únicas e irreplicáveis, do que cada "coisa de menina" possa vir a significar, a cada momento.

 

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Recebido em: 23/2/2021
Aceito em: 22/4/2021

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