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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo Jan./June 2021

 

TEMA: O QUE FAZEMOS COM O SEXUAL?

 

Interpretação psicanalítica da sexualidade

 

Psychoanalytic interpretation of sexuality

 

Interpretación psicoanalítica de la sexualidad

 

Interprétation psychanalytique de la séxualité

 

 

Fabio Herrmann

Fabio Herrmann (1944-2006) foi membro da SBPSP, professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP, criador da teoria dos campos e fundador do Centro de Estudos da Teoria dos Campos (CETEC). São Paulo

 

 


RESUMO

O quanto de sexualidade é necessário para a interpretação da sexualidade? Essa pergunta sintetiza a investigação deste artigo. De início, o autor retoma a ênfase freudiana em que a forma do saber psicanalítico é a interpretação, e seu conteúdo essencial é a sexualidade. Em seguida, inverte essa ideia, e passa a analisar a presença de excitação sexual, de prazer e desprazer, na própria forma da interpretação. E, então, conclui o texto com um relato clínico, em que as modulações da excitação do analista possuem, em si, função terapêutica.

Palavras-chave: sexualidade, interpretação, clínica psicanalítica, teoria dos campos


ABSTRACT

How much sexuality is needed to interpret sexuality? That is the question at the center of this study. First addressing the Freudian emphasis on interpretation as the form of psychoanalytic knowledge, and sexuality as its essential content, the author then inverts these notions by analyzing the presence of sexual excitation, pleasure and displeasure, in the very form of interpretation. The text concludes with a clinical study in which the analyst's shifting excitations possess a therapeutic function.

Keywords: sexuality, interpretation, psychoanalytic clinical practice, Multiple Fields Theory


RESUMEN

¿Cuánta sexualidad se necesita para interpretar la sexualidad? Esta pregunta resume la investigación de este artículo. En un primer momento, el autor vuelve al énfasis freudiano de que la forma de conocimiento psicoanalítico es la interpretación, y su contenido esencial es la sexualidad. En seguida, invierte esta idea y comienza a analizar la presencia de excitación sexual, placer y displacer, en la forma de la interpretación. Y entonces concluye el texto con un relato clínico, en el que las modulaciones de la excitación del analista tienen, en sí mismas, una función terapéutica.

Palabras clave: sexualidad, interpretación, clínica psicoanalítica, Teoría de los Campos


RÉSUMÉ

A quelle point la sexualité est-elle nécessaire à sa propre interprétation? Cette question synthétise l'investigation menée dans cet article. L'auteur reprend d'abord l'attention freudienne selon laquelle l'interprétation est la forme du savoir psychanalytique, et la sexualité son contenu essentiel. Il inverse ensuite cette idée et analyse la présence d'excitation sexuelle, de plaisir et de déplaisir, dans la forme même de l'interprétation. Il conclue enfin le texte par un récit clinique, où les modulations de l'excitation de l'analyste possèdent en soi une fonction thérapeutique.

Mots-clés : sexualité, interprétation, clinique psychanalytique, Théorie des Champs


 

 

Nota introdutória

Apenas duas breves anotações sobre esse texto inédito de Fabio Herrmann, achado durante a preparação editorial para este número do Jornal. A primeira traz algumas informações sobre a escrita, e a segunda mostra como a ideia central do artigo se insere no pensamento clínico do autor.

i. Uma versão inicial do escrito foi apresentada no Fórum Temático sobre Sexualidade, na SBPSP, em maio de 1997. Com base no debate que se desencadeou, Fabio fez algumas alterações e voltou a apresentá-lo numa mesa do 40° Congresso Internacional de Psicanálise, em Barcelona, em julho do mesmo ano. O estilo recorda o do livro Clínica psicanalítica: a arte da interpretação (1991/2003), em que uma teorização experimental é acompanhada pelo relato de um caso.

ii. O lugar do texto na teoria dos campos é o seguinte: nele o autor leva adiante a investigação da espessura ontológica dos conceitos psicanalíticos. Essa longa expressão, considerada pelo próprio criador como um palavrão, merece explicação. Entende-se como espessura ontológica da psicanálise a impossibilidade de separar psique e método, como frente e verso de uma folha de papel. Fabio costumava perguntar: a transferência, por exemplo, é uma qualidade inerente ao psiquismo humano, ou é uma propriedade do método psicanalítico em ação? Ambas... não é mesmo? De modo similar, todo conceito psicanalítico possui dupla face:1 uma que aponta para o funcionamento psíquico, e outra que funciona como operador clínico. Pois bem, o artigo que se segue é um estudo sobre a dupla face da sexualidade. Esta então ressurge não só como objeto da psicanálise, a ser revelado (interpretação da sexualidade), mas também como método, presente no ato de revelação (sexualidade da interpretação). Isso, aliás, lembra um dos princípios estilísticos da teoria dos campos: na clínica e na escrita, em vez de citar, tente excitar.

Luiz Moreno Guimarães Reino

É bastante sustentável a noção comum de que, no reino animal, a sexualidade seja principalmente um instrumento da reprodução da espécie, malgrado as exceções que a etologia não cessa de apontar. Assim também se concebia a sexualidade humana, embora com ainda mais evidentes exceções: uma isca de prazer no anzol da espécie. Não foi das menores contribuições de Freud pôr à mostra o caráter estruturante da sexualidade infantil e os rumos contraditórios com o fim reprodutor que segue a sexualidade do adulto. Quando se aceita a ampliação psicanalítica da esfera do sexual, os desvios com respeito a seu "fim natural" são de tal monta na cultura humana, que estaríamos tentados a aplicar o qualificativo de perversão à nossa prática sexual, que se vale de modos e meios dificilmente abonados pela mãe Natureza - mas talvez seja mais justo qualificá-la de diversão, no sentido militar de ação diversionária, bem como noutros sentidos também. A psicanálise soube apreciar a extensão desse fenômeno: o homem freudiano é, em essência, um ser sexual.

Quanto à interpretação, outro componente do título desta mesa, esta possui um respeitável passado religioso, que não se limita à exegese dos textos sagrados. Com o recurso da interpretação, a religião estabeleceu vínculos entre os dois planos da vida humana: os acontecimentos da vida comum, tanto quanto as ações dos heróis, podem ser remetidos ao plano divino, bastando criar um sistema de correspondências que faça de cada ato afirmação ou negação, consequência ou ruptura com a história da salvação, em qualquer corpo religioso. Interpretação leiga, a psicanálise freudiana vê nos sintomas neuróticos o reflexo de outra história - mais ou menos como o faria o intérprete religioso. Qual história? A história da sexualidade, evidentemente.

Assim, se dermos crédito à antiga fórmula que afirma ser o conhecimento constituído por forma e conteúdo, seremos levados a concluir que o tema desta mesa não vem a ser um entre muitos, mas sim um epítome da psicanálise: a forma do saber psicanalítico é a interpretação, seu conteúdo essencial, a sexualidade.

Dito assim, abruptamente, essa conclusão deve parecer arbitrária. Os textos psicanalíticos e os analistas praticantes empregam tantos tipos de sentenças e de atos de conhecimento - observações, generalizações, deduções etc. -, que não se podem reduzir, se não por violência, à interpretação; por outro lado, esses atos de conhecimento visam objetos tão diversos como cultura, emoções, sintomas neuróticos, que melhor pareceriam poder reunir-se sob o título mais amplo de psique.

Com efeito, a psicanálise é a ciência da psique. Porém, apenas como projeto geral e vocação. A psique humana, enquanto objeto de conhecimento, escapa-nos a cada ato de apropriação total, a condição humana é inapreensível em seu absoluto, tal como a figura humana absoluta - diga-se a título de analogia - escapa à representação artística. A psique criada por Freud é em essência sexual. Em tese, seria possível criar outras psicanálises que montassem seu homem sob ângulos diferentes do sexual; contudo, nenhuma dessas psicanálises possíveis foi ainda criada consistentemente, a meu juízo,2 e uma autêntica generalização da psicanálise como ciência da alma total é apenas um projeto para o futuro. Logo, o homem psicanalítico é o freudiano, sexual, num sentido diversionário, tortuoso, paranatural (mais que antinatural), arquitetonicamente construído com os componentes da sexualidade. Estranho? Com certeza, estranho ser é esse, cuja estranheza, infelizmente, perdeu-se para os psicanalistas, que a ela se habituaram. Tão estranho é nosso homem em princípio quanto as figuras de Arcimboldo, cujos semblantes eram compostos de legumes ou flores. Não obstante, quando a teoria ou o trabalho clínico do analista fogem demasiado ao paradigma sexual, resulta disso tal perda de especificidade, que já não parece estarmos mais no campo psicanalítico, e sim no de uma inespecífica psicologia.3

A primeira parte dessa definição, a que identifica forma psicanalítica e interpretação, também requer uma palavra de explicação. Se compreendêssemos, de maneira estreita, a interpretação como uma dessas coisas que o analista diz a seu paciente - suas sentenças interpretativas, como seria mais adequado denominá-las -, decerto haveria muito mais que interpretação na psicanálise. Se, todavia, reservarmos com rigor o nome de interpreta ção à operação metodológica que medeia a passagem do sentido manifesto ao latente, veremos facilmente ser a interpretação o selo epistemológico da psicanálise, sua originalidade. Com efeito, o que Freud fez ao homem foi, em essência, uma exegese dos sentidos possíveis de suas expressões psíquicas, privilegiando, entre esses, os sentidos sexuais. Claro que a sexualidade psicanalítica não se reduz ao sexo comumente entendido, nem se reduz a interpretação às palavras do analista. Feita esta ressalva, podemos em sã consciência concluir: interpretação da sexualidade = psicanálise.

Trazendo à mesa a essencialidade da interpretação psicanalítica da sexualidade, desejo simplesmente ambientar a questão central que pretendo discutir nesta ocasião: o quanto de prazer é adequado ao trabalho interpretativo com a sexualidade. Constitui um acordo bem estabelecido entre os analistas, o princípio de que o processo analítico deve ser conduzido sob a regra de abstinência. Não só o analista não se pode permitir desfrutar demasiado algum prazer que lhe proporcione a situação transferencial, como deve cuidar de não seduzir seu paciente. Até aí temos um de nossos raros consensos.

Qual, porém, a extensão exata dessa abstinência? Absoluta? A abstinência sexual absoluta só se encontra provavelmente nos seres minerais. Relativa, então? Mas relativa a quê? Suponho que uma fórmula sensata poderia ser a seguinte: a abstinência sexual, dentro da relação analista-paciente, há de ser proporcional à função interpretativa que os reúne. Ora, se por interpretação entendêssemos simplesmente as sentenças interpretativas, as explicações do funcionamento psíquico que o analista provê de tempos em tempos, então seria mínima - quase mineral - a proporção de excitação e de prazer sexual envolvidos, ou, a propósito, também a de desprazer sexual. Feliz ou infelizmente, confundir interpretação com fala do analista é, como se sabe, apenas uma redução simplista.

Na prática clínica, a sentença interpretativa reserva-se, em geral, para o coroamento de um processo interpretativo. Durante esse processo, a interação entre analista e paciente vai produzindo zonas de tensão emocional localizada, excitando os complexos representacionais do analisando, cujas raízes inconscientes respondem por meio de emoções vividas transferencialmente. É tal excitação que provoca o surgimento de lacunas de representação e de contradições emocionais, pondo à mostra a lógica dos afetos, que o analista tenta traduzir em palavras eficazes. Quando surge então uma representação capaz de desestabilizar o complexo representacional - ou campo - que está sendo trabalhado, ocorre, como a experiência clínica o pode facilmente comprovar, uma momentânea incapacidade de representação suficiente da psique do analisando; noutras palavras, o campo trabalhado rompe-se. O que se segue, no mais das vezes, é um sentimento de angústia, acompanhado de tentativas de representação defensiva, pois o sistema psíquico foi exigido além de seu limite. Tais representações concentram a maior parte do que se pode aprender de útil numa análise, apesar de a experiência ser usualmente desagradável para o paciente e tensa para o analista. Em suma, quando se dá uma ruptura de campo, imagens, ideias e emoções embaralham-se, como se um vórtice as tivesse aspirado, da relativa marginalidade em que se encontravam, para o centro do psiquismo; e o analisando produz sentidos emocionais que, em situações normais, poderia jurar que não são seus. Esse processo de desorganização deve ser acompanhado com cuidado, mas pouco se pode fazer durante sua vigência. Só depois de se reorganizar o analisando, é que é possível fazê-lo compreender o que sucedeu: é onde comparecem as sentenças interpretativas, as construções, as explicações, a elaboração dos resultados da breve, ou não tão breve, passagem pelo caos.

Dessa exposição resumida do que considero ser a interpretação, retirada de um livro meu (1991/2003), em que procuro descrever o processo interpretativo concreto - por oposição à imagem trivial e supersimplificada do analista explicando ao paciente seu funcionamento psíquico -, segue-se que um tanto de excitação sexual, de prazer e desprazer, é necessariamente induzido quando se almeja alcançar uma ruptura de campo, na interpretação da sexualidade, pois, sem excitação, não há representação. Talvez o problema maior da instrumentação de tais estímulos não seja sequer a quantidade induzida, ou permitida, mas o tipo de excitação adequada a gerar representações alternativas da sexualidade, até surgir uma que denuncie eficazmente seu campo produtor, permitindo a ruptura e o vórtice consequente a esta.

A fim de exemplificar a ideia da excitação transferencial específica à interpretação da sexualidade, gostaria de apresentar o esboço do atendimento de um caso.

J. já deixou para trás a metade da sexta década de vida, vida que teria tudo para ser boa, se não estivesse, justo ele, J., nela envolvido. Pelo menos é essa sua opinião, e opinião justa, ao que parece. Nasceu de uma família de classe média, formou-se numa excelente faculdade, casou-se, separou-se e, depois de viver algumas relações transitórias, voltou a casar-se. Tem filhos e uma sólida posição financeira. Dito assim, temos o modelo de sucesso burguês, não é verdade? A verdade é bem diferente, no entanto, como ele mesmo faz questão de esclarecer. A fábrica que o enriqueceu foi comprada quando estava a ponto de falir, e ele lá trabalhava: "comprei-a para não perder o emprego". E quando veio à análise estava planejando requerer uma autofalência. As mulheres com que se entreteve, entre um e outro casamento, eram prostitutas negras, que fazia questão de levar às festas de sociedade, para escândalo dos amigos e parentes; enquanto ele mesmo vestia-se, no dia a dia, como peão de obra - mas fazia questão de ser tratado de doutor.

Sua vida sexual era, e em certa medida ainda o é, passados ano e pouco de análise, principalmente masturbatória. Mesmo quando se relaciona com uma mulher, necessita repetir internamente uma sequência de fantasias para excitar-se: basicamente, trata-se de uma mulher negra que urina ou defeca em sua boca. Numa palavra, tanto sexualmente, quanto socialmente, nunca chega J. a um contato real com o mundo - na fábrica, quando se isola em sua sala, aborrecido, no casamento, na fantasia ou na briga.

O sentido geral desse sintoma não tardou a se esclarecer. A mulher negra era uma versão derrisória da própria mãe, enquanto os excrementos, previsivelmente, representavam o leite materno, transformado em seu oposto. A confusão entre leite e fezes abriu um caminho de compreensão para J. Por um lado, vingava-se da dominação materna, a primitiva, de bebê, e a posterior, da infância, já que a mãe, muito religiosa, exigia-lhe, desde pequeno, que oferecesse "florezinhas ao Menino Jesus" - sacrifícios voluntários, como abster-se de um brinquedo ou da sobremesa. Quando se deu conta, em certa sessão, da revolta contra a infantilização, feminização e castração que se ocultavam na prática religiosa infantil, prorrompeu numa torrente de impropérios contra a mãe e contra a Santa Madre Igreja, que poderiam ser o equivalente verbal dos excrementos fantasiados.4

Durante a meninice, sua rebelião era talvez menos eloquente, porém, não menos efetiva. Tantas fez, que foi mandado a um colégio interno, fora da cidade, dirigido por um padre, amigo da família. Lá, de rebelde, fez-se terrorista. Num atentado memorável, deu conta de todo o estoque de água da escola. Foi descoberto, e o padre diretor obrigou-o a pedir perdão de joelhos, diante de todos os colegas. Como consequência, foi também expulso, deixando o colégio, que, contudo, nunca o havia de deixar.

Revolta e submissão masoquista passaram a ser uma constante. Masturbava-se, mas logo tinha de se confessar, pois projetava escalar certo paredão rochoso em sua cidade e temia morrer em pecado. A própria humilhação de confessar-se já fornecia algum tema para a próxima masturbação e a próxima aventura compensatória. E assim por diante, saltando de paraquedas, na juventude, até hoje, quando se especializou em, como diz, "peitar caminhões", esporte que consiste em quase se fazer amassar, e à esposa, na estrada.

Seu contato comigo era, de início, marcado por um anseio obsessivo de precisão. Procurava falar com apuro e, não raro, brindava-me com longas explanações linguísticas ou científicas, sobre várias matérias, física e engenharia especialmente. Ao saudar-me, dizia, como qualquer um, bom dia, pela manhã, e, à tarde, boa tarde. Por azar, uma de suas sessões era, porém, ao meio-dia. Então murmurava alguma coisa, que descobri ser um "Bomdiaboatarde", condensado. Parecia estar em frente de uma banca examinadora, diante da qual, falhar, teria graves consequências, restando saber apenas sobre que matéria seria o exame. Não foi difícil descobrir que a matéria em pauta não era outra senão a identidade sexual.

Como é de se esperar, a relação com o trabalho interpretativo sobre a sexualidade tem comportado, em linhas gerais, os dois polos dominantes de sua vida emocional: desafio e entrega contrita. J. percorre comigo um circuito que passa incessantemente pelos dois extremos. Desafia-me a interpretá-lo, e é como se estivesse peitando um caminhão; porém, tão cedo o jogo analítico põe à mostra alguma faceta da história de sua vida sexual, mostra-se primeiro vencido, depois contrito, como se tivesse sido apanhado em falta; por fim, rejubila-se com a nova vitória da análise, e ninguém poderia negar que sua exultação é, justamente e por inteiro, sexual. Numa palavra, deve lutar para ser derrotado, mas a derrota sofrida é inequivocamente uma vitória, como se houvesse provocado a potência de um parceiro sexual que agora o penetra à força, para gozo seu.

Na realidade, ele mesmo compreende que essa dinâmica reflete uma partição interna. Batizou de J. o dominador, e de J.' (como se diria, em geometria, a e a') o pobre coitado que se submeteu.

O problema que se põe para mim, por conseguinte, pode ser formulado simplesmente assim: como analisar essa forma retorcida de sexualidade sem ser nela incluído? E a resposta é igualmente simples: não há maneira alguma. Isso já havíamos aprendido com Freud e com a teoria da transferência. É claro que a simples denúncia do processo de inclusão do analista nesse circuito encontraria em J. a mais cálida, e submissa, das respostas. Meu objetivo reduz-se, portanto, a evitar a repetição pura e simples, em deixar-me incluir, mas não sepultar na repetição. Para isso, devo tomar em conta, como antes propusera, a medida e a qualidade exatas da excitação que provocam minhas intervenções. Se não há excitação, esse paciente não escuta ou reage, se é demasiada, desencadeia-se o gozo masoquista. Não posso aceitar o desafio, pois venceria sempre - e sempre perderia do mesmo jeito -, mas não o devo ignorar tampouco.

A forma que encontrei para manter vivos o contato e o efeito interpretativo, mas que nem sempre consigo atingir, consiste numa espécie de distanciamento provisório - um silêncio mais longo que o habitual, certa abstenção de toques emocionais intermediários -, seguido de uma tentativa de irrupção, a mais precisa possível, no âmago da vivência emocional que J. experimenta. A força de uma intervenção precisa, muito menos preparada do que usaria com outros pacientes, parece manter à tona o sentido específico da interpretação, sem que naufrague nas correntes do circuito sadomasoquista. Quando recentemente, por exemplo, apontei-lhe de supetão que estivera e ainda estava apaixonado pelo padre da infância, ao invés de luta e entrega, houve principalmente uma crispação e depois alívio, como quem encontra o que quase já sabia, uma verdade de há tempos conhecida, mas nunca reconhecida.5 Há mesmo certa satisfação, essa satisfação média que alcançamos no ato de representar aquilo que insistentemente nos escapava - um estado emocional, um nome ou palavra esquecidos -; no caso, o alívio de dar de cara com a figura do perfeito horror, aquilo que rondava na escuridão e nos pesadelos.

Em resposta, surgem uma fantasia e uma lembrança. A fantasia: uma mulher nua que se senta em seu rosto, sufocando-o. Noutras ocasiões, essa imagem já aparecera, com o sentido de uma amamentação forçada e violenta, sendo as nádegas, seios. Desta vez, todavia, ela se acompanha da rememoração da imagem perdida do pai, tão desvalorizado e ausente da análise, carregando-o, durante uma crise de asma, para ser medicado. As nádegas - que, a propósito, não diferenciam homem e mulher - afogando-o de prazer masoquista; o pai, nunca antes visto no papel protetor, para o qual pode entregar-se confiante. Rompeu-se momentaneamente o campo da indiferenciação homem-mulher, desafio e submissão, ao ter de representar a paixão pelo homem de saias, o padre: pai dominado e mulher dominadora. A representação da rebeldia desafiadora e submissa era permitida, mas a amorosa não. Rompido o campo, o vórtice consequente trouxe à tona figuras essenciais, repelidas da consciência habitual. E aprendemos algo acerca de seu desejo: a função da fantasia masoquista de promover um eclipse das diferenças sexuais, o papel do pai, e talvez do analista, em garantir um respiro mínimo da sufocação sexual materna etc.

Se fosse procurar o ponto de partida dessa interpretação, deveria retornar quase ao início da análise. Nas inúmeras ocasiões em que se fez presente o circuito sadomasoquista básico de meu paciente, estimulado, é preciso reconhecer, pelos toques emocionais do processo interpretativo, houve excitação, e ao menos tanto prazer quanto desprazer. Infinitas variações minúsculas de nossas posições relativas foram testadas - enfrentar um pouquinho mais ou um pouquinho menos a atitude desafiadora, retirar-me bruscamente, manter-me em equilíbrio sobre a lâmina da indiferenciação sexual etc. etc. -, até encontrar a fórmula de afastamento e irrupção emocional precisa, que propiciou essa interpretação, mas que pode falhar noutras vindouras. Permitir uma excitação, e certo grau de satisfação, de proporções e, sobretudo, de tipo exatos a fim de produzir uma ruptura do campo sadomasoquista, parece-me ser o instrumento técnico (ou artístico, se se prefere) para atingir a interpretação da sexualidade nesse caso, como em qualquer caso, aliás.

 

Referências

Freud, S. (1958). On beginning of the treatment. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 123-144). Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Green, A. (1995). Has sexuality anything to do with psychoanalysis?. International Journal of Psycho-Analysis, 76,871-883.         [ Links ]

 

 

1 Noção desenvolvida por Leda Herrmann (2007). Aproveitamos para agradecer-lhe a autorização da publicação.
2 Houve historicamente tentativas de construir outros homens psicanalíticos. Às vezes, seres construídos sob o prisma da adaptação e rendimento social; às vezes, seres extremamente frágeis, construídos sob o signo da psicose, que lutam infinitamente para atingir o pensamento ou um mínimo de relação emocional. Mais ou menos como um ensaio balístico: atirando um pouco curto ou um pouco longo demais, atingem-se estágios "pré" ou "pós"-sexuais, mas o valor desses tiros de enquadramento parece resumir-se a corrigir a alça de mira teórica da psicanálise.
3 Há duas maneiras frequentes de recusar a especificidade sexual da psicanálise. A primeira consiste em reduzir a psicanálise a uma descrição de funções psíquicas, que não será melhor ou pior que a dos demais sistemas psicológicos. A segunda, mais sutil, consiste em admitir o primado da sexualidade, mas confundi-la com hipotéticos estados muito primitivos da mente, ou tornar a sexualidade psicanalítica tão geral e fluida, que esta perde qualquer característica distintiva - de uma ou outra maneira, assistimos a uma repressão sexual da sexualidade. A. Green (1995, p. 871) fez em um notável artigo uma das mais claras descrições desse fenômeno.
4 Com a criação da cultura, o gozo ligado aos prazeres anais teve de ser severamente reprimido, como lembra Freud em O mal-estar na cultura. A tal ponto, que nossa imagem corrente do inferno é diretamente derivada dos excrementos, de um retorno daquilo que foi proscrito. Por obra dessa repressão, é como se o corpo humano se houvesse voltado contra si mesmo, os conteúdos contra o continente, um extremo, a boca, contra outro, o ânus. Ora, a sexualidade justamente propicia um estado em que tal luta intestina, no rigor do termo, deixa de ser absoluta, nosso corpo se reconcilia até certo ponto com suas excretas, à temperatura da paixão: o sexo traz alguma paz momentânea a essa luta. A interpretação da sexualidade deve tomar em conta também essa função sexual.
5 Afirma Freud (1913, p. 140), a respeito da oportunidade da interpretação: devemos comunicar ao paciente "aquilo que lhe bastaria um passo a mais para descobrir por si mesmo".

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