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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo jan./jun. 2021

 

TEMA: O QUE FAZEMOS COM O SEXUAL?

 

O corpo em cena1

 

The body on stage

 

El cuerpo en escena

 

Le corps sur la scène

 

 

Leticia Glocer FioriniI; Tradução: Marco Rovere

ICo-chair para a América Latina do Comitê de Estudos de Diversidade Sexual e de Gênero, da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Professora do mestrado Estudos Interdisciplinares da Subjetividade, da Universidade de Buenos Aires UBA). Ex-presidente da Associação Psicanalítica Argentina (APA). Foi diretora de publicações de IPA e da APA. Publicou os livros Lo femenino y el pensamiento complejo e La diferencia sexual en debate, além de vários artigos sobre sexualidade feminina, maternidade e diversidade sexual. Buenos Aires / lglocerf@intramed.net

 

 


RESUMO

A autora propõe considerar a categoria "corpo" como um tema de fronteira. Aborda problemáticas referidas aos corpos virtuais, biotecnológicos e da diferença sexual. Defende que a heterogeneidade anatômica adota, na maioria das culturas, uma forma dualística que se enfrenta com os desafios apresentados pelas sexualidades e identidades plurais das sociedades contemporâneas. Enfatiza que o sexo biológico se organiza através de ficções filosóficas e médicas, e propõe pensar em uma anatomia interpretada em relação com os outros e com os discursos vigentes. Ressalta que o corpo sempre tem um núcleo de heterogeneidade radical a respeito da subjetividade. Aponta o fato de que o corpo da mulher encarna a diferença em um deslizamento que demanda ser desconstruído. Propõe pensar os corpos como categorias de intersecção com disjunções e concordâncias entre a heterogeneidade dos corpos sexuados, o campo desejante e os discursos vigentes sobre a diferença sexual.

Palavras-chave: diferença sexual, corpos virtuais, corpos biotecnológicos


ABSTRACT

The author proposes to consider the category "body" as a frontier theme. She addresses issues related to virtual bodies, biotechnology and sexual difference. She argues that anatomical heterogeneity adopts, in most cultures, a dualistic form that faces the challenges presented by the sexualities and plural identities of contemporary societies. Emphasizes that biological sex is organized through philosophical and medical fictions, and proposes to think of an anatomy interpreted in relation to others and to current discourses. Points out that the body always has a nucleus of radical heterogeneity regarding subjectivity. Points out that the woman's body embodies the difference in a slide that demands to be deconstructed. She proposes to think of bodies as categories of intersection with disjunctions and concordances between the heterogeneity of sexualized bodies, the desiring field and the current discourses on sexual difference.

Keywords: sexual difference, virtual bodies, biotechnological bodies


RESUMEN

La autora propone considerar la categoría "cuerpo" como una temática de borde. Aborda problemáticas referidas a los cuerpos virtuales, biotecnológicos y de la diferencia sexual. Sostiene que la heterogeneidad anatómica adopta en la mayoría de las culturas una forma dualística que en la actualidad se enfrenta con los desafíos que presentan las sexualidades e identidades cambiantes de las sociedades contemporáneas. Enfatiza que el sexo biológico está organizado a través de ficciones filosóficas y médicas y propone pensar en una anatomía siempre interpretada, en relación con los otros, con los discursos vigentes. Remarca que el cuerpo siempre tiene un núcleo de heterogeneidad radical con respecto a la subjetividad. Señala que, tradicionalmente, el cuerpo de mujer aparece como encarnación de la diferencia en un desplazamiento que demanda ser deconstruído. Propone pensar los cuerpos como categorías de intersección con disyunciones y concordancias entre la heterogeneidad de los cuerpos sexuados, el campo deseante y los discursos vigentes sobre la diferencia sexual.

Palabras clave: diferencia sexual, cuerpos virtuales, cuerpos biotecnológicos


RÉSUMÉ

L'auteur propose de considérer la catégorie « corps » comme un thème frontière. Elle aborde des questions liées aux corps virtuels, à la biotechnologie et à la différence sexuelle. Elle soutient que l'hétérogénéité anatomique adopte, dans la plupart des cultures, une forme dualiste qui fait face aux défis posés par les sexualités et les identités plurielles des sociétés contemporaines. Souligne que le sexe biologique s'organise à travers des fictions philosophiques et médicales, et propose de penser une anatomie interprétée en relation avec les autres et avec les discours actuels. Elle fait remarquer que le corps a toujours un noyau d'hétérogénéité radicale en matière de subjectivité. Elle mettre en évidence que le corps de la femme incarne la différence dans une diapositive qui demande à être déconstruite. Propose de penser les corps comme des catégories d'intersection avec disjonctions et concordances entre l'hétérogénéité des corps sexués, le champ désirant et les discours actuels sur la différence sexuelle.

Mots-clés : différence sexuelle, corps virtuels, corps biotechnologiques


 

 

Introdução

Aproximar-se ao conceito de corpo significa abordar as múltiplas faces em que essa noção se expressa. A realidade do corpo alcança vertentes desconhecidas, que ficam excluídas de possíveis simbolizações. Nessas zonas cinzentas surgem construções imaginárias e dispositivos sobre os corpos de forte impacto nas subjetividades. Trata-se de iluminar as diferentes vertentes que, em sua convergência, nos orientam a considerar essa categoria como um tema de fronteira. O corpo só pode ser pensado nos limites entre mundo interno e externo, linguagem verbal e não verbal, entre os discursos com seu caráter performático, o fantasma, e o núcleo duro biológico.

Entende-se que não é possível abordar o corpo e suas especificidades no campo psicanalítico sem recorrer às contribuições de outras disciplinas. Desde as essências platônicas e as religiões em que o corpo era só um suporte que continha algo de muito maior valor - a alma -, aconteceram mudanças significativas no pensamento sobre o tema. Por outro lado, muitas correntes filosóficas contemporâneas enfatizam o papel fundamental do corpo em relação aos prazeres, elevando essa concepção ao primeiro plano (Foucault, 1984). Esses debates conduzem a experiências contrapostas: os corpos da mortificação e do martírio, como rituais religiosos de purificação espiritual, versus os corpos do prazer e do desejo.

No mundo contemporâneo, os corpos passam a se expor na busca por beleza, perfeição e imortalidade. Isso ocorre apesar de os corpos, paradoxalmente, se invisibilizarem quando se expõem, e, nesse sentido, os mundos virtuais nos revelam uma outra dimensão. Corpos que já não são necessários para se comunicar, excitar, ou experimentar o prazer do contato direto. O corpo desaparece, o que permite o surgimento de novas e múltiplas identidades (Baudrillard, 1980), que ultrapassam totalmente os limites corporais concretos. No espaço cibernético, virtual, o corpo material projeta-se em um corpo imaginário criado pelo sujeito: um outro corpo. Assim, geram-se experiências de poder e onipotência por meio das vidas paralelas e do sexo virtual. As realidades virtuais inauguram um cenário em que, por um lado, os corpos são prescindíveis nos encontros entre pessoas e, por outro lado, podem-se criar corpos (virtuais) que cumprem os desejos de seus criadores.

Anula-se a dimensão física do encontro: essa experiência passa a ser indireta. Fundamentalmente se embaçam as fronteiras da realidade virtual e da denominada vida real. Existe um debate importante entre os que defendem que isso dá origem a novas subjetividades (Bukatman, 1994) e os que enfatizam que existe um processo de dessubjetivação nas relações a distância, em que predomina o isolamento dos corpos (Virilio, 1997). Trata-se de um debate que não está encerrado. Segundo Lévy (1995), sustentar uma oposição entre mundos reais e virtuais conduz a um beco sem saída, e por isso ele propõe cessar a demonização do virtual como oposto ao real.

Indubitavelmente, surgiram indagações no campo psicanalítico sobre o papel da realidade do corpo em relação ao desenvolvimento da sexualidade, ao encontro sexual e à diferença sexual e de gêneros.

As biotecnologias, entretanto, mostram em seu vertiginoso avanço as possibilidades sem limites de transformação dos corpos. Desenvolveram-se técnicas que permitem prolongar a vida e superar dificuldades na reprodução por meio da fertilização assistida. Analogamente, as cirurgias de mudança de sexo atualizam debates sobre a identidade sexual, assim como a sua relação com o campo desejante e os corpos sexuados.

Como apontamos, surge intensamente o tema das ações sobre os corpos para definir, mudar ou mobilizar identidades. Nesse sentido, não podemos deixar de citar Orlan e suas cirurgias-performance como uma tentativa de transformar o indivíduo em sua própria obra de arte por meio de modificações corporais cirúrgicas. Essas ações proliferam não só para vencer a deterioração física, mas para estabelecer marcas de identidade. A crescente difusão das tatuagens e cortes como marcas de identidade é notável. Também se destacam os piercings, as cirurgias estéticas, o fisiculturismo, as cirurgias de mudança de sexo, as técnicas de fertilização assistida, todos eles dispositivos de ação sobre os corpos.

Os corpos não são só objeto de diferentes dispositivos de ação, mas também atuam, mostram, se expressam e se tornam visíveis de várias ma neiras. Em algumas ocasiões nos enfrentamos com o sintoma histérico; em outras, com diversos tipos de somatizações ou manifestações como acting out e passagens ao ato. Os corpos podem expressar-se simbolicamente por meio do sintoma ou podem não simbolizar o que expressam. Seus contornos e limites mudam nas anorexias e bulimias, em busca de respostas que podem conduzir eventualmente a situações extremas de vida ou morte.

Através dos corpos, como apontamos, estão em jogo problemáticas referidas à identidade sexual, à transitoriedade, à diferença sexual e à procriação. Essas questões atualizam temas já abordados na ficção científica, como a ameaçadora forma de reprodução dos aliens, que destrói o hospedeiro. Outro exemplo são os cyborgs, seres híbridos na fronteira da ficção e da ciência, metade homem e metade máquina. Similarmente, encontramos a quimera, que é resultado da combinação de material genético animal e humano, representando a transgressão de uma ordem predefinida. Trata-se de formas recursivas de um imaginário que procura expandir as fronteiras do corpo por meio de ficções, narrativas, experimentos biotecnológicos e virtualidades. Dessa maneira, é posto em jogo o impulso, individual e coletivo, de transcender os limites do corpo biológico. Nas intersecções dessas experiências confluem a ficção científica, a ciência e as fantasmáticas individuais e coletivas (Glocer Fiorini, 2008).

Ao discorrer sobre os corpos, é inevitável o cruzamento com o fator tempo. Sabemos que existe uma complexa relação entre a temporalidade cronológica linear vinculada à decadência dos corpos, por um lado, e, pelo outro, setores do psiquismo atemporais ou sujeitos a temporalidades não lineares. Soma-se a esse fato a tentação narcísica de superar e transpassar o limite sempre presente da temporalidade biológica. Devemos acrescentar o efeito estranho (Freud, 1919), que às vezes o corpo produz nas idades avançadas da vida, em contraste com a supervalorização narcísica dos corpos jovens e belos exaltados nas sociedades contemporâneas. Da mesma maneira, Duvignaud (1987) trata a questão dos corpos do horror, corpos mutilados, rituais iniciáticos ou políticos, ressaltando os tabus e mitos derivados do sangue menstrual, assim como as práticas, lendas e crenças localizadas no corpo feminino. Freud (1918[1917]) em "O tabu da virgindade" aborda amplamente essa temática.

Nesse contexto, o que pode dizer a psicanálise? Diante das mudanças citadas, que não são avanços tecnológicos ou informáticos neutros, mas em verdade se referem a operações sobre os corpos que impactam diretamente sobre as concepções referidas à diferença sexual, às formas tradicionais de reprodução, ao conceito de identidade, à relação entre mundo externo e mundo interno, à relação natureza-cultura; diante de todos esses desafios, qual é a posição do psicanalista? Serão oferecidas sempre as mesmas respostas, seja qual for a problemática que se apresente?

 

Os corpos da psicanálise

Existem vários caminhos na obra freudiana e na psicanálise contemporânea para refletir sobre o corpo e seus significados. Um ponto de inflexão é que o corpo no campo psicanalítico diverge do corpo da medicina e das ciências biológicas em geral. A experiência de Freud com as pacientes histéricas estabeleceu um marco de virada fundamental, já que o sintoma histérico constituiu um ponto-chave para conceitualizar a relação entre a psique e o corpo.

Do ponto de vista libidinal, o corpo das pulsões é um corpo marcado pelo primeiro outro. Representa a passagem do corpo como organismo à categoria de corpo erógeno, deixando de ser anatomia em estado puro. É o próprio corpo, mas marcado pelo outro e os outros. Freud (1923) afirma que o Eu é, antes de tudo, uma essência-corpo, estabelecendo uma confluência constitutiva entre o corpo e o Eu, o que torna estas duas categorias impossíveis de ser analisadas separadamente. Lacan (1949), com o estádio do espelho, contribuiu para a compreensão da constituição imaginária do Eu como imagem antecipatória unificada com base no corpo fragmentado. A forma total do corpo não lhe é dada senão como Gestalt desde uma exterioridade. Eu e corpo se apresentam como categorias indissolúveis. Esse autor também aporta uma distinção importante entre os registros do simbólico, do imaginário e do real para caracterizar as dimensões participantes nesse tema.

Anzieu (1990), em seus estudos sobre o eu-pele, apresenta outro ângulo: o do corpo nas fronteiras como lugar de intercâmbios significantes. Aponta a pele como o primeiro órgão de intercâmbio significante.

 

É a anatomia o destino? A diferença sexual em questão

Quando Freud (1912) se refere à diferença sexual, declara - parafraseando Napoleão - que "a anatomia é o destino". Existem muitas interpretações sobre esta afirmação. Há, entretanto, um debate ineludível: qual é o papel e quais são os limites da anatomia pura na passagem natureza-cultura? O reconhecimento da diferença sexual anatômica ressalta a pregnância das formas e da percepção, mas também cabe sempre recordar que se trata de uma diferença que se sustenta em interpretações, discursos, códigos, estereótipos, que também delineiam os corpos.

É nesse contexto que me vou referir aos corpos da diferença sexual: corpos femininos, corpos masculinos e também corpos indeterminados que interpelam essa divisão masculino-feminino. Em outras palavras, de que falamos quando falamos de corpos masculinos ou femininos? Obviamente o corpo na psicanálise tem uma complexidade impossível de ser completamente abarcada, porém, claramente, vai além do biológico. Isso não significa eliminar o valor do congênito, da genética ou da anatomia, mas sim incluí-las em relações hipercomplexas. O conceito de performatividade (Austin, 2007; Butler, 2002) faz alusão justamente às marcas que os discursos deixam nos corpos. Para Austin, os discursos são ações por si mesmos. Adicionalmente, os corpos também produzem marcas nos discursos. Trata-se de uma via de mão dupla.

Dessa forma, falar da diferença dos sexos é abordar uma diferença que não é só anatômica ou genética. As teorias sexuais infantis (Freud, 1908) tratam de uma interpretação feita pelo menino sobre a diferença como sendo uma castração, e que a menina aceita como própria. E disso também tratam as teorias sexuais adultas (Glocer Fiorini, 2001).

Retomando a afirmação freudiana, se a anatomia é o destino e isso é aceito literalmente, pouco teria de fazer neste campo a psicanálise. Tudo já estaria definido. Então, que sentido teria falar do complexo de Édipo-castração como a explicação freudiana princeps para entender o acesso à diferença sexual, exogamia e inserção no universo da cultura? Trata-se simplesmente de um percurso para retornar à anatomia? Certamente, essas são dúvidas que vão muito além da necessidade de o complexo de Édipo ser revisitado à luz das novas configurações vinculares e das diversidades sexuais e de gênero.

É necessário enfatizar que existem duas vertentes que coexistem na obra freudiana. Por um lado, Freud desconstruiu as categorias homem/mulher ao propor o conceito de bissexualidade e de uma libido única, comum ao campo do feminino e masculino. Por outro lado, a lógica edipiana leva cada sujeito a assumir uma identidade simbólica masculina ou feminina no marco de uma resolução heterossexual de caráter normativo, sendo um de seus fins absolutos a reprodução. Ambas as vertentes constituem categorias discursivas não anuláveis entre si nas proposições freudianas edificadas sobre esse "núcleo duro" da realidade anatômica, que Freud também reivindica. No entanto, a isso se soma o fato de que o próprio Freud afirma que masculino e feminino são categorias de conteúdo incerto, colocando a problemática da diferença sexual numa trama de complexidades crescentes.

Só poderemos aproximar-nos desse debate se pensarmos em uma ana tomia em relação a uma história individual e social, aos discursos vigentes, à força pulsional, aos outros; nunca com base em uma anatomia descontextualizada. Podemos afirmar que os corpos sempre são uma construção, até mesmo os corpos da diferença sexual. Não se levam em consideração os dados de forma concreta, as teorias sexuais infantis indicam que organizamos os dados em complexas interpretações em busca de proporcionar significados à diferença sexual anatômica. E, nessa trama, a diferença é localizada no corpo da menina e no feminino em geral. Em outras palavras, ocorre um fácil deslizamento entre as dúvidas geradas pela diferença anatômica, e a localização das respostas no campo do feminino.

Ora, essas interpretações são meras consequências das exigências do mundo pulsional expressado por meio das teorias sexuais infantis ou incluem também as teorias vigentes sobre a diferença sexual na cultura? Laqueur (1990), em seus estudos histórico-antropológicos, afirma que os discursos sobre a diferença sexual não coincidem necessariamente com a realidade material oferecida pelos corpos sexuados. Para Judith Butler (2002), os discursos sobre a diferença sexual são performativos. Os discursos marcam e delimitam os corpos, e seus valores, no contexto de relações de poder que outorgam aos corpos significações.

 

O sexo biológico organizou-se por meio de ficções filosóficas e médicas

Para Aristóteles, o corpo masculino era a forma e o corpo feminino era o amorfo. Segundo Bouillaud, o útero não era um órgão necessário para a mulher porque não existia no homem. Constatamos também que o corpo sintomático da histeria foi primeiramente sistematizado desde as práticas médicas (Foucault, 1984) e gradativamente homologado com o feminino. Nessa histerização do corpo feminino que erige o falo como significante mestre, não se estabelecem suficientes distinções entre histeria e feminilidade, em outras palavras, entre destituir a potência do desejo do outro ou apoiá-lo como tal na relação com o outro (Melman, 1985). Embora existam histerias masculinas, ao localizá-las no campo feminino, continua-se defendendo a equiparação de histeria = feminidade.

A organização dos saberes sobre o corpo da mulher expressa relações de poder. Há poderes e contrapoderes ocultos no uso e interpretação dos corpos. Além disso, o corpo da mãe primitiva, o corpo do poder e da onipotência, está presente em diversas mitologias e é objeto de fortes idealizações e defesas. Nessa linha, o corpo da mulher pode ser depositário de uma sexualidade perigosa e, ao mesmo tempo, objeto de fascinação; igualmente como objeto de apropriação ou como descarte. Os corpos das crianças também podem ser objeto de apropriação incestuosa ou pedofílica. Recordemos que o corpo e a sexualidade das crianças são marcados pela sexualidade parental: abrem-se zonas erógenas, e excluem-se outras. Mas, se esses processos de exclusão/inclusão são submetidos a relações de domínio, as crianças, independentemente do sexo, serão tomadas como propriedade dos adultos em geral.

Em todos esses discursos e práticas surge a dialética do senhor e do escravo, intrincada nas relações entre os homens e as mulheres, homo ou heterossexuais, cisgêneros ou transgêneros, adultos e crianças. Nessa trama de "saber e poder" encontramos nos enunciados sobre os corpos uma tendência a aplacar a angústia de castração.

Em síntese, a anatomia não resolve o problema da diferença sexual, porém, ao mesmo tempo, a diferença sexual não se constrói sem as informações provenientes da anatomia, sempre significada (Glocer Fiorini, 2007). Ainda mais, Laqueur (1990) nos apresenta outra disjuntiva: existe um corpo pré-discursivo ou estará o corpo marcado desde o início pelos discursos vigentes sobre a diferença? Em outras palavras, é o corpo uma tábula rasa?

Sabemos que os dados provenientes do corpo sexuado indicam desde o nascimento, e mesmo antes, uma posição e nomeação no campo do masculino ou feminino. Tem ou não tem? Esta é a primeira pergunta que aspira a atribuir ao recém-nascido uma identidade masculina ou feminina, ainda que, ocasionalmente, se confronte com as incertezas da anatomia e dos desejos parentais. Essa nomeação vai mais além da distinção macho/fêmea, própria do reino animal, já que tem efeitos de simbolização. Diversas disciplinas destacam que não há fato perceptivo puro, que seja independente de um campo de significações. A designação do sexo será uma ação humana que outorgará significação à diversidade anatômica. Aqui estão em jogo variáveis perceptivas organizadas em uma rede, atravessadas por mitos, preconceitos, ideais e desejos tramitados desde o campo parental, inconsciente e pré-consciente incluídos. Na maioria das culturas, a organização da hetero geneidade anatômica numa identidade sexual adquire uma forma dualística (masculina ou feminina) que se dá, para cada sujeito, "antes" do acesso à diferença sexual. Enfatizamos que isso sempre se expressa em um determinado contexto discursivo e normativo sobre a diferença. Simultaneamente, esse contexto depara com os desafios relacionados ao dualismo masculino-feminino apresentados pelas diversidades sexuais e de gênero nas culturas contemporâneas.2

O conceito de significante enigmático de Laplanche (1987) aporta a ideia de que o adulto propõe à criança significantes verbais e não-verbais, até mesmo comportamentais, impregnados de significados sexuais inconscientes. Aqui incluímos os enunciados maternos, com a mãe como porta-voz do projeto identificatório que antecede ao recém-nascido (Castoriadis-Aulagnier, 1975). Em síntese, há disjunções entre a heterogeneidade dos corpos biológicos, sua erogenidade e os discursos sobre a diferença sexual. Também há, porém, concordâncias e pontos de encontro.

Bourdieu (1998) mencionou nos estudos sobre os camponeses da Cabília que a gestualidade e as posições corporais se determinam com base nos lugares e posições atribuídos a mulheres e homens, e descreveu como isso se naturaliza. Ações cotidianas como a postura corporal das mulheres e o lugar ocupado na casa por cada um expressam mensagens que os corpos e as subjetividades aceitam.

De outro ângulo, já apontamos o fato de que as sexualidades e identidades migrantes das culturas contemporâneas ocidentais são um desafio à divisão rigorosa dos sexos própria da modernidade. Enlaçadas com os corpos mistos das iconografias medievais, com o mito do andrógino e os seres duplos de Platão, com as transformações xamânicas, são apresentações que procuram ir mais além da polaridade masculino-feminino.

Nessa linha, podemos destacar que os corpos são corpos da cultura e estão inseridos nela. Ao mesmo tempo, as pulsões investem e traba lham em uma direção própria, que pode ou não coincidir ou até mesmo exceder as significações dadas pela cultura. Trata-se de uma interação em que nenhuma dessas categorias anula a outra. Tampouco se trata de duas linhas independentes que em um determinado momento se cruzam, mas sim que sua interpenetração e interdependência são inerentes à própria estruturação subjetiva.

 

Interfaces: o corpo nas fronteiras

O corpo fala e é falado. Existe a linguagem do corpo e sobre os corpos. Se abordamos os discursos e narrativas da cultura sobre os corpos, devemos também incluir a linguagem do corpo: simbolizações sintomáticas, narrativas psicossomáticas. Precisamos refletir sobre o corpo como significante e sobre o impacto dos significantes nos corpos. Pensar nas linguagens do corpo demanda considerar seus silêncios, os aspectos não simbolizados e seus vazios, lembrando que o desejo sempre excede as tentativas de classificar o corpo em categorias predefinidas.

Os corpos somente podem ser pensados como categorias em intersecção. São marcados por discursos vigentes que tentam moldá-los e, em sua condição de produto, adquirem certas significações, porém, também são produtores: emitem sinais e linguagens, assim como se reservam silêncios e enigmas. (Glocer Fiorini, 2008)

Nesse contexto, devemos lembrar que os corpos também são objetos a serem possuídos por meio de ações de dominação. Fenômenos como pedofilia, abuso sexual e violência sexual são ações sobre os corpos em que existem poderosas moções de poder-domínio. São conhecidas as reflexões de Foucault (1979; 1990) sobre as práticas disciplinares ligadas às formas modernas do exército, da escola, do hospital, da prisão, com o fim de incrementar a utilidade do corpo e produzir corpos "dóceis". Esse conceito é útil para estudar a subjetividade e a diferença sexual no campo psicanalítico.

Nesse relato enfatizamos que o corpo sempre é corpo interpretado no campo do humano, e que também é um suporte necessário da subjetividade. É importante acrescentar que conserva em si um resto de otredad2 que o torna alheio e estranho ao Eu. A nosso juízo, essa condição de otredad se duplica quando é localizada no feminino e no materno.

A partir da etnologia, F. Héritier (2007) argumenta sobre a existência de um modelo arcaico que rege as relações entre os sexos no mundo, até mesmo no Ocidente, apesar das modificações comportamentais e das leis vigentes. O uso do corpo das mulheres é enfatizado como pedra angular. Para Héritier, a construção dos corpos sexuados está fundada em uma assimetria baseada no domínio e apropriação do corpo feminino para a procriação. Trata-se de sistemas de pensamento e construções arcaicas que nos regem e condicionam. Para Bourdieu (1998), a inércia do pensamento nos discursos vigentes sustenta essas construções em termos de hierarquias.

Analisamos a relação dos corpos e suas formas com os processos de sexuação e aquisição de uma identidade de gênero que pode ou não coincidir com os caminhos do desejo. Isso significa, como foi apontado, estabelecer diferenças entre o corpo anatômico/biológico, o corpo pulsional, erógeno, o corpo das significações subjetivas e o corpo dos discursos vigentes. No marco do grande debate natureza versus cultura, enfrentam-se um corpo de certezas versus um corpo de interrogações.

É nesse contexto que se impõe distinguir entre o corpo pulsional e os corpos da diferença sexual. Isso implica considerar o caráter de construção da diferença sexual diante da tendência do campo pulsional e do desejo de transbordar as categorias da diferença. No entanto, analisar os corpos da diferença supõe situar-se em um espaço intermediário para evitar o risco, tanto de desmerecer a ancoragem corporal da diferença sexual, como o de outorgar poderes definitórios supremos aos dados provenientes do corpo biológico. Nunca a biologia define por si mesma a construção da subjeti vidade sexuada. Pelo contrário, se torna imprescindível privilegiar a construção subjetiva do corpo em inter-relação com os outros. Estas zonas de cruzamento e intermediação são fundamentais para analisar a pluralidade de elementos no campo. O corpo é fronteira e, ao mesmo tempo, ponte entre o si mesmo e os outros.

Em outras palavras, o corpo é portador de um núcleo de heterogeneidade radical a respeito da subjetividade. A relação de cada sujeito com o seu corpo sexuado é paradoxal e exige um trabalho psíquico complexo, com reflexos de maior ou menor conflituosidade.

Então, se o corpo feminino é considerado como representante da diferença, no sentido de uma carência imaginaria, devemos destacar que há nisso um movimento psíquico que implica pôr o estrangeiro, o hostil, no outro, o feminino. Diante das teorias da castração, diz Kristeva (1986), a menina pode submeter-se, porém não se reconhece verdadeiramente. Trata-se de fixações no "semblante" em que se enlaçou a fantasmática masculina. A nosso juízo, é necessário relocalizar o enigma da diferença, e isso não significa anular a noção de diferença simbólica, mas sustentá-la em sua condição de enigma sem deslocá-la a uma de suas polaridades: o feminino (Glocer Fiorini, 1998; 2001).

Em conclusão, há uma relação de síntese disjuntiva entre o papel que desempenham os discursos vigentes e aquilo que vem determinado tanto desde o biológico como desde o pulsional próprio de cada sujeito. Verifica-se pela necessidade de formular perguntas abertas cujas respostas unicamente podem ser pensadas com base nas interseções que refletem a heterogeneidade constitutiva da subjetividade.

Entre os corpos silenciados das essências platônicas e dos corpos foucaultianos do prazer, entre os corpos sintomáticos e psicossomáticos, virtuais e "reais", masculinos e femininos, tatuados, transexuais e travestis, clonados e transgênicos, privados e públicos, se desdobra um amplo espectro de discursos e silêncios que constroem a complexidade dessa temática.

Nesse sentido podemos pensar que o corpo é produto e produtor simultaneamente, desde uma posição de interfaces: no limite, nas fronteiras, nas intersecções.

 

Referências

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Recebido em: 23/3/2021
Aceito em: 23/3/2021

 

 

Tradução: Marco Rovere
Revisão Técnica: Abigail Betbedé
1 Artigo originalmente publicado na Docta Revista de Psicoanálisis (2014, n. 10, pp 74-81), da Asociación Psicoanalítica de Córdoba (Argentina).
2 Em uma publicação posterior (Glocer Fiorini, 2016) propôs pensar a categoria "diferença" em seus múltiplos níveis, concordantes ou discordantes: diferença psicossexual, de gêneros, anatômica, linguística e discursiva, entre outras. A "diferença" é uma operatória simbólica decisiva para a construção da subjetividade, não redutível ao reconhecimento da diferença sexual e que implica o reconhecimento da alteridade.
3 Otredad não possui tradução, significa algo que vem do outro, da alteridade. Por se tratar de um termo reconhecido no meio psicanalítico, optou-se por deixá-lo no idioma original. (NT)

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