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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo ene./jun. 2021

 

DIÁLOGOS

 

Comentários

 

 

Mara Caffé

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no curso de Psicanálise desse mesmo Instituto, doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, autora dos livros Psicanálise e direito: a escuta analítica e a função normativa jurídica e Crítica à normalização da psicanálise. São Paulo / maracaffe@uol.com.br

 

 

Agradeço o convite para dialogar com o texto "Preciado, Laplanche, Freud: desobstruindo a escuta psicanalítica do Sexual", de Rodrigo Lage Leite, cujas contribuições enriquecem o debate sobre problemáticas contemporâneas. Como sabemos, os estudos de gênero trouxeram importantes críticas à psicanálise, denunciando suas bases essencialistas, falocêntricas, colonizadoras e patriarcais, especialmente no que diz respeito aos conceitos de Édipo e castração. Os psicanalistas nem sempre levaram em conta essas questões e, em muitos casos, mantiveram seus modelos teóricos no formol das estruturas essenciais, atemporais e universais. Nos últimos anos, tal situação vem se alterando,1 dando lugar a estudos interdisciplinares fecundos, favorecendo, assim, a reinvenção e politização das práticas psicanalíticas. Entre esses estudos, encontra-se o de Leite, refletindo sobre os modelos teóricos e o trabalho clínico com "os derivados do Sexual" e a multiplicidade de gêneros.

Vemos que a escolha de Leite por Laplanche ofereceu pontes conceituais importantes à aproximação de um filósofo que se posiciona de modo bastante crítico aos psicanalistas, tendo recentemente lhes dirigido uma interpelação (acusação) bem ácida, durante a 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana, em novembro de 2019. Ressaltando as confluências entre noções da psicanálise e da teoria contrassexual de Preciado, Leite não se ocupou, porém, dos conflitos desse diálogo, os quais retornam indiretamente ao texto. Voltarei a esse ponto mais adiante.

Entre as qualidades do texto, vemos a discussão sobre sexualidade e gênero no âmbito das relações clínicas, sociais e políticas, e não apenas no campo epistemológico abstrato. Assim, o autor reflete sobre um caso clínico, trazendo também referências a filmes nacionais, body art e conversas com a cartunista Laerte, mobilizando diversos registros na abordagem do assunto. A interdisciplinaridade e a diversidade de linguagens beneficiam o pensamento clínico, metodologia, aliás, já adotada por Freud.

O autor discute as abordagens médicas e jurídicas diante dos bebês intersexuais, trazendo a excelente imagem das mesas de operações concretas e abstratas em que todos(as) sofremos as designações e redesignações de gênero. Observa que as hormonioterapias e as cirurgias de redesignação sexual de adultos revelam o peso do discurso normativo binário heterocentrado em seu reforço à relação corpo/gênero. Leite não defende, entretanto, o determinismo social absoluto na gênese dessas práticas, considerando as singularidades de cada sujeito no caminho de suas escolhas. Cita os depoimentos de Preciado e Laerte sobre suas transições de gênero, bem como leituras sobre a body art, reconhecendo elaborações sofisticadas e processos de reinvenção de si muito longe das rígidas adaptações à ortopedia social.

Outro ponto alto do artigo é a observação de que, ao analista, cabe a "observação do que é", algo distinto do que "deveria ser". Leite considera que o que se é sofre constantes deslocamentos e transformações segundo os jogos identificatórios. Diferentemente, o que se deve ser responde ao ideal do eu e aos mandatos superegoicos, admitindo formas menos plásticas. Ao final do texto, o autor esclarece que a

afirmação inicial sobre "o que é" - que poderia ser entendida como rígida e anacrônica ... aqui, diz respeito à verdade íntima e cambiável do sujeito, algo que só pode ser enunciado por ele, e, ainda assim, passível de movimentação. (p. 228)

Leite reforça uma concepção ética e política do ato analítico, segundo a qual:

Apesar de sublinhar o peso das determinações heterocentradas nas decisões de transformação corporal, entendemos que tais escolhas dizem respeito fundamentalmente aos sujeitos envolvidos. Frente à sua importância, cabe ao processo analítico favorecer o maior contato possível desses sujeitos com as fantasias inconscientes em jogo, se possível antes de intervenções sobre o corpo. (p. 222)

Atento às vicissitudes da transferência, especialmente no atendimento aos sujeitos que se afastam dos padrões heteronormativos, o autor aponta o risco de o analista reproduzir "imposições normativas, possivelmente injuriosas", apresentando como contraponto o modo pelo qual lidou com isso na condução do caso de Adriano. O relato clínico abre muitas possibilidades de conversa, o que atesta a qualidade psicanalítica de sua escrita.

Destacarei, agora, o que me parece que são dois problemas do texto.

1) Leite identifica com clareza algumas ambiguidades do pensamento freudiano, trazendo excelentes citações a respeito. Propõe, entretanto, uma certa depuração entre os seus elementos, filtrando, segundo a ótica histórica presente, os achados preciosos e revolucionários dos aspectos ideológicos e conservadores. Aproxima-se, assim, de um projeto revisionista da psicanálise, tal como Harris qualifica "os movimentos teóricos de Laplanche", uma vez que "preservam e reformulam os modelos freudianos" (p. 11). Não estou de acordo com essa opinião, especialmente no que diz respeito às formulações de Laplanche acerca do Sexual e do gênero. A preocupação em "preservar" Freud muitas vezes desativa a enorme produtividade das tensões internas de sua obra. Penso não ser possível - e tampouco desejável - isolarmos o essencial da descoberta freudiana de seus aspectos históricos ideológicos, tal como se praticássemos "a dissecção dos músculos e das fáscias [com] a delicadeza de separar estruturas muito aderidas, sem danificá-las" (p. 17). A vicissitude do saber psicanalítico não o permite. A meu ver, podemos reconhecer os elementos patriarcais e misóginos em conceitos pivôs da psicanálise tanto quanto os seus elementos disruptivos e fundadores de uma nova epistemologia, considerando a relação entre eles como algo da ordem do pa radoxo, e não da contradição. Ou seja, como algo da ordem do movimento, e não da preservação. Nesse sentido, rigorosamente falando, a psicanálise não comporta projetos revisionistas. A fundação é o modo princeps de sua transmissão - outro paradoxo.

Retomo agora, nas palavras de Leite, o que talvez seja uma leitura revisionista da psicanálise, hoje em voga, cujo risco é conduzir a "tudo como dantes no quartel de Abrantes". Acompanhemos o autor: "Proponho que ler Preciado ajuda a reler Freud per via di levare, retirando camadas de pigmento que revestem e obscurecem a descrição bruta e sagaz da sexualidade infantil perversamente polimorfa..." (p. 214). Ou então:

o pensamento de Preciado parece encontrar o ponto nodal da descoberta freudiana, a sexualidade infantil perversamente polimorfa, que, livre de direcionamentos externos rumo à "configuração definitiva normal", poderia, a priori, desembocar em inúmeras configurações eróticas e identitárias. (p. 215, itálicos meus)

E, mais à frente, Leite afirma que devemos indagar criticamente a psicanálise, a fim de chegarmos ao que seria o seu "essencial". Talvez o "essencial" seja a escultura a que chegaríamos per via di levare, uma vez retirada a camada ideológica que "revestem e obscurecem a descrição bruta e sagaz da sexualidade infantil" (p. 214).

Entendo que a noção freudiana de sexualidade infantil perversamente polimorfa inclui seus sucessivos e às vezes contraditórios desenvolvimentos, nem sempre lineares e contínuos, muitas vezes interrompidos em certas linhas, não sendo esse "conjunto" - ou melhor, "não-conjunto" - decomponível. Isto é o que faz do texto "Três ensaios", com seus inúmeros acréscimos no decorrer de décadas, um referente impressionante da escrita e da obra freudiana. Esse texto resiste às formas convencionais de uma síntese, reúne sem integrar as sucessivas afirmações de Freud sobre a sexualidade e a pulsão. Num certo sentido, parece haver, aqui, uma forte homologia entre forma e conteúdo, de modo que se transmita algo essencial da noção freudiana de sexualidade.

Não há em "Três ensaios" um esforço de coerência, ainda que veicule linhas desenvolvimentistas, mas não apenas; ainda que se dirija aos sexólogos da época, mas não apenas. Freud não passou o texto a limpo, e o reapresentou muitas vezes durante a vida. Como, então, separar o joio do trigo no que diz respeito à teoria da sexualidade infantil, na tentativa de obter a sua conformação "bruta e sagaz" antes de ela ser deturpada, pelo próprio Freud, pela meta genital normativa? Como filtrar, no âmbito da teoria, seus bons aspectos e seus desvios, sem alterá-la completamente? Fazer trabalhar as tensões internas da obra, em vez de desativá-las, parece ser a única forma de sua exegese.

2) As reflexões de Leite sobre o caso clínico de Adriano se constituem com base nos conceitos clássicos de Édipo e castração, apresentados sem considerações críticas, o que produz certa estranheza, dadas as formulações teóricas iniciais do autor. Embora mencione as concepções tardias de Laplanche sobre esses conceitos (conforme nota de rodapé na p. 20), enfatizadas por Silvia Alonso em texto citado, é surpreendente que Leite opere com os termos psicanalíticos mais convencionais e conservadores a respeito do Édipo e da castração. Vemos, assim, o "imbróglio triangular" (p. 15) constituído pela mãe atraente, incestuosa e engolfadora, pelo pai interditor e distante e pelo filho menino-rei necessitado da intervenção paterna, no melhor estilo do Édipo familiarista e patriarcal discutido por Laplanche no texto mencionado por Leite.

Assim, por exemplo, Laplanche discute

a universalidade do complexo de castração em sua forma rígida, em sua oposição lógica "fálico/castrado" ... [indagando se ele] é incontornável, se não existem modelos de simbolização mais flexíveis, mais múltiplos, mais ambivalentes. (Laplanche, citado em Leite, 2020, p. 20)

Segundo esse autor, a castração poderia ser vista como um dispositivo ideológico que tem seu fundamento na lógica binária do terceiro excluído, transmitido ao infans pelo pequeno socius que o rodeia, sendo um código entre outros possíveis, não tendo o caráter exclusivo e universal no ingresso à cultura. Ainda que mencione esses aportes críticos, Leite, entretanto, não os integra em sua análise clínica, entendendo a castração "no sentido de uma elaboração dos limites, potências e impotências deste 'menino-rei' no mundo imaginário, mas tão frustrado, 'brochado', incapaz de discriminar seus próprios desejos e trabalhar por eles" (p. 225). Leite qualifica a castração como "rocha incontornável" (pp. 227-228), como recurso simbólico decisivo instituído pela função paterna.

Desse modo, no processo analítico com Adriano, "o sonho do incesto é frequentemente retomado por ele e por mim, lançando luz à dificuldade da 'saída da cama da mãe'. Tal incesto gradativamente passa a incomodá-lo" (p. 224; o itálico é meu). Ligada a essa insistência, vemos outra correlata, a que impele Adriano a aproximar-se do pai (pp. 226-227). À "alcova incestuosa" da mãe (p. 227) se opõe a função interditora do pai. Ligam-se aqui, como em muitos escritos psicanalíticos, o incestuoso à mãe e a interdição ao pai. E de pronto, respectivamente, ao feminino e ao masculino. Assim, os pares mãe-feminino e pai-masculino vão se afirmando, de modo intermitente, mas resoluto. Não estamos longe das bases patriarcais da psicanálise, que reproduzem a hierarquia e o domínio de gêneros, desqualificando a mulher como sujeito político e atribuindo ao homem a função princeps civilizatória. As interpretações de Leite sobre o trabalho com Adriano destoam de suas formulações na primeira parte do texto, e também de suas próprias afirmações sobre a função ética e política do analista, conforme citadas mais acima. O autor parece sensível a isso, no plano da transferência, advertindo a si mesmo quanto ao "cuidado de, ao mesmo tempo, validar a sustentação das diferenças percebidas em relação ao pai e a preservação de fundamentais pontos de identificação com a mãe" (p. 226). O que, de todo modo, não altera a direção das interpretações analíticas.

Nesse ponto específico do artigo de Leite, podemos entrever, ainda que de modo velado, as críticas de Preciado à psicanálise, enquanto prática normativa reprodutora da tecnologia heteropatriarcal. De fato, o autor explorou bem o diálogo criativo e colaborativo entre Preciado e as teorias psicanalíticas, deixando de lado seus atritos e divergências, não sendo este, de todo modo, o escopo do seu artigo. Está claro que o interesse na discussão clínica orientou os seus recortes, não havendo o propósito de uma apresentação exaustiva do filósofo. Preciado formula, entretanto, críticas radicais e ruidosas à psicanálise, sendo difícil convidá-lo para uma conversa sem dar lugar a seus protestos. No artigo de Leite, mesmo que elidido no plano manifesto do texto, podemos entrever Preciado em suas críticas aos dispositivos normalizadores, entre eles, o Édipo e a castração em suas formulações freudianas "seminais", ainda que no interior dessas mesmas formulações haja também elementos subversivos inovadores. Daí a importância de trabalharmos criticamente com esses conceitos, cuidando para não reproduzirmos "imposições normativas, possivelmente injuriosas", sendo também o que permite o ingresso da noção de gênero, bem como outras noções advindas dos estudos pós-coloniais, no campo propriamente psicanalítico. Laplanche traçou linhas importantes nesse sentido, conforme indicado no artigo em discussão.

Enfim, Leite nos oferece um texto rico, pulsante, com referências e problemas da prática psicanalítica contemporânea, apresentando francamente suas inquietações clínicas e um retrato das dificuldades e desafios com os quais lidamos atualmente em nossa área.

 

 

Recebido em: 18/2/2021
Aceito em: 18/2/2021

 

 

1 O que se deu, entre outras coisas, em decorrência do surgimento dos estudos pós-coloniais e culturais, revolucionando as ciências humanas de um modo geral.

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