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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo ene./jun. 2021

 

DIÁLOGOS

 

Comentários

 

 

Julio Frochtengarten

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / juliofro@uol.com.br

 

 

O convite dos editores para um contraponto ao artigo "Preciado, Laplanche, Freud: desobstruindo a escuta psicanalítica do Sexual", de Rodrigo Lage Leite, é uma oportunidade para retomar questões e conceitos im-perfeitos para os ouvidos dos psicanalistas. A procura por entendimento e conceituação de masculino, feminino, sexualidade, gênero e sexual traz sempre o risco de que os tomemos como qualidades dadas pela natureza, perdendo então toda a riqueza da proposta de uma psicossexualidade.

Apoiado nas ideias do filósofo Paul B. Preciado, o artigo de Rodrigo Leite pode ser visto como uma atualização do texto inaugural de Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2016). Este teve, na ocasião de seu lançamento, impacto revolucionário, e ainda hoje vivemos o que podemos considerar expansões da sexualidade e dos conceitos correspondentes.

A proposta do texto de Rodrigo Leite é, desde seu título, "desobstruir a escuta psicanalítica do sexual". Vale ressaltar a observação de Preciado sobre a insuficiência ou, ainda mais precisamente, os descaminhos que, por intolerância às dúvidas, nos levam a atribuir ao simples olhar, através dos órgãos sensoriais visuais, o papel demarcador e definidor do sexual, operando dentro de uma prototípica teoria sexual infantil para a qual nós, psicanalistas, não deveríamos deslizar. Foi a essa tendência que considerei como naturalização da sexualidade.

Se por um lado as designações conscientes e os ruídos inconscientes nas primeiras relações, e com o analista, podem operar como injunções sobre as identificações de gênero e a orientação sexual do analisando, por outro lado a relação entre ambos no processo psicanalítico é uma ocasião privilegiada para a constituição da subjetividade e, em particular aqui, da sexualidade. Em minha forma de ver, esta se constrói e se constitui sempre dentro de relações objetais, como é possível entrever na ilustração clínica. Porém, não é esse o aspecto que Rodrigo Leite privilegia em seu texto, mas sim a dimensão pulsional com sua evolução na história do sujeito. Apesar dessa ênfase na dimensão pulsional, ele destaca e faz coro às formulações de Laplanche quando este "sublinha a singularidade, força e inexorabilidade da constituição erótica dos sujeitos, urdida na intersubjetividade" (p. 221). Temos então esses dois caminhos de abordagem teórica: a dimensão pulsional e a relacional e, certamente, elas estão relacionadas. Se, teoricamente, essas duas linhas são passíveis de conviverem e se relacionarem, clinicamente o analista terá que fazer sua escolha; esta deveria recair, segundo minha forma de compreender, naqueles aspectos que podem ser acessíveis à experiência emocional da relação do analista e analisando.

O que suscita minha discussão aqui é a lida com a sexualidade que força um borramento de possíveis discriminações entre evidências anatômicas, genitais, e constituição psíquica. Freud nos deu a noção, no trabalho citado, de que o corpo passa a fazer parte da mente pela presença de instintos e relações desde o início da vida, fazendo, assim, com que a sexualidade passe a ser inscrita, desde então, no que consideramos mental, psíquico, singular na subjetividade. Como esse processo é contínuo, ele se estende para a relação com o analista, a qual, reciprocamente, é afetada pelas experiências passadas, sendo, ao mesmo tempo, uma nova experiência. A partir do estudo das pulsões se desenvolveu boa parte da psicanálise, chegando-se mesmo a organizar as experiências de vida em várias etapas atingindo a genital na sua maturação. Mas essa organização e classificação não me parece dar conta do que se apresenta a um enfoque psicanalítico.

Explorando a vertente trazida por Freud, André Green escreveu:

Freud faz uma distinção entre Eros (instintos amorosos e de vida) e a Sexualidade, que é apenas uma função; e que a libido é a representante de Eros. Freud sublinhou que a Sexualidade não pode ser confundida com Eros, mas se tomarmos agora a relação entre Vida e Amor chegamos à conclusão de que Eros, exprimindo-se como um Instinto de vida, funciona como um vinculador psíquico. Enquanto qualidade de um instinto amoroso, vincular (ligar) significa unir-se a um objeto. A referência à sexualidade sublinha que o objeto de amor é principalmente prazeroso. Portanto, subentendemos que o objeto proporciona segurança, paz, tranquilidade e assim por diante, que são precondições do prazer; mas apenas prepara o caminho para a experiência, uma experiência que liga mais estreitamente o ego inicial a seu objeto nutridor. (1995/1997, p. 216)

Na tradição kleiniana, o conceito de identificação projetiva ganhou posição central, caracterizando novamente um movimento de vinculação. Esta, através da nutrição e da segurança, passa a ser a fonte de constituição da vida psíquica, e não apenas o sexo. É nessa vertente que tomo os trabalhos de Bion, especialmente suas experiências com grupos e a questão dos tropismos que se impõem a cada indivíduo. Também a identificação projetiva, como ele a considera, expressa no ideograma ♀♂, continente-contido, que representa a realização emocional relativa ao aprender. Esse aprendizado acontece com a busca de expressividade que se realiza no encontro com um interior, configurando um acasalamento entre um continente e um contido. Assim como o contido são sentimentos, ideias, imaginações e fantasias em "busca" de expressão, o continente "busca" ativamente conter: uma parceria sexual amorosa que resulta em concepções e representações.

Dessa forma, aprender condensa ideias e emoções, desejos e medos, talentos, e é indissociável do modelo sexual. Expressiva dessa forma de compreensão é a seguinte passagem de Uma memória do futuro:

BION Em resumo, "ser" alguma coisa é diferente de "entendê-la". O amor é o máximo em "tornar-se" e não entender-se.

ALICE (olhando para Rosemary) Eu me "tornei" alguma coisa, e essa coisa, se eu pudesse descrevê-la, poderia depender de eu dizer "Eu amo".

BION Ou talvez você tenha se tornado alguém que está amando?

ALICE Não, eu amo Rosemary.

BION Se você estiver certa, deve ter se tornado capaz de amar.

ALICE Eu achava que, como psicanalista, você iria afirmar com a maior certeza que eu era homossexual.

BION Muito pelo contrário, na medida em que sou capaz de "ser", em vez de "afirmar que sou" psicanalista, acho que você está errada em dizer que ama Rosemary se for homossexual; você deve ter se tornado capaz de amar. Tornar-se sexual faz parte da maturação física. O amor real não é uma função da coisa amada, mas da pessoa que ama. Isso faz parte da maturação física. O amor real não é uma função da coisa amada, mas da pessoa que ama. Isso faz parte da maturação mental e não é obstruído por características acidentais da coisa ou da pessoa amada.

EU MESMO Entre essas características que você chama de "acidentais", você estaria incluindo aquilo que chamamos de sexo da pessoa?

BION Com toda certeza; o sexo se aplica à anatomia e à fisiologia, e, como geralmente ocorre quando falamos em mente, foi dominado pelos psicanalistas, pelo fato de termos que funcionar com uma linguagem que foi inventada para a vida física ou a "experiência sensorial". "Amor passional" é o mais próximo que consigo chegar de uma transformação verbal que "represente" a coisa-em-si, a realidade última, "O", como eu a chamei, aproximando-se dela.

ROLAND Então você acha que Alice poderia me amar?

BION ... Ela é capaz de amar você. Isso não significa que ela iria querer estar com você, seja para um episódio efêmero, para toda a vida, ou para objetivos anatômicos ou fisiológicos...

(Bion, 1975/1991, pp. 196-197)

Enfatizo que, como penso hoje, a sexualidade é prelúdio para o pensamento e também uma forma de pensamento que se expressa através do amor - este se dá entre sujeitos e não entre pulsões e objetos. Assim, podemos pensar que o físico, o corporal, é de onde brotam as bases para o aprender com a experiência, o pensamento, desde os mais simples aos mais abstratos? E que estas se realizam na constituição da vida mental? E, inversamente, também na vida sexual (como na religiosidade, na sociabilidade) estão inscritos os modos de organização da mente? Uma unidade psicossomática ou somatopsíquica?

No mesmo artigo citado anteriormente, André Green escreve:

Se meu trabalho não estragou demais a análise, e se o paciente não é muito psicótico, minha esperança, ao fim da análise, será, conforme as diretrizes de Freud, que meu analisando esteja apto a aproveitar um pouco mais a vida do que podia antes de procurar tratamento ou, como diz Winnicott, que esteja mais vivo mesmo que os sintomas não tenham desaparecido de todo. Seria o nosso puritanismo psicanalítico responsável pelo fato de considerarmos a sexualidade desprezível nesse aproveitamento? (1995/1997, p. 216)

 

Referências

Bion, W. R. (1991). Uma memória do futuro: o sonho (P. C. Sandler, Trad., Vol. 1). Imago. (Trabalho original publicado em 1975)        [ Links ]

Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 6). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)        [ Links ]

Green, A. (1997). Sexualidade tem algo a ver com psicanálise?. Livro Anual de Psicanálise, 11,217-229. (Trabalho original publicado em 1995)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 4/3/2021
Aceito em: 7/4/2021

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