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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo jan./jun. 2021

 

CONEXÕES

 

Que dúvida pode haver?

 

What doubt can there be?

 

¿Qué duda puede haber?

 

Quel doute peut-il y avoir?

 

 

Eliane Fittipaldi Pereira

Doutora em Letras (Português, Inglês, Francês) pela USP. Autora do livro Trajetórias do Feminino em Narrativas de Clarice Lispector, Simone de Beauvoir e Agnès Varda pela Editora Hucitec. Tradutora de Orlando: uma biografia, de Virginia Woolf. São Paulo / elifitti75@gmail.com

 

 


RESUMO

Consciente das complexidades que a sexualidade humana implica, Virginia Woolf desconstrói, em Orlando: uma biografia, os binarismos redutores que tolhem o desejo e a liberdade. No corpo de seu protagonista (corpo feito de linguagem), ela tece uma crítica irônica aos estereótipos formados a partir dos conceitos que categorizam os seres humanos em dois gêneros sexuais distintos na sociedade patriarcal ocidental.

Palavras-chave: binarismo de gênero, desconstrução, ironia, personagem, ambiguidade


ABSTRACT

In her novel Orlando: a biography, Virginia Woolf deconstructs the sexual dichotomies that restrict human desire and freedom. Knowing how complex sexuality is, she produces the body of her protagonist by the means of an ironical language that criticizes the stereotypes formed by the concepts that categorize the human beings into two distinct genders in the patriarchal occidental society.

Keywords: gender binarism, deconstruction, irony, character, ambiguity


RESUMEN

En su novela Orlando: a biography, Virginia Woolf desconstruye las dicotomias sexuales que refrenan el deseo y la libertad de las personas. Consciente de las complejidades de la sexualidad humana, ella produce el cuerpo de su protagonista por medio de um lenguaje irónico que critica los estereotipos formados por los conceptos que categorizan los seres en dos géneros distintos en la sociedad patriarcal occidental.

Palavras clave: binarismo de género, descontruction, ironía, personaje, ambigüedad


RÉSUMÉ

Dans son roman Orlando : une biographie, Virginia Woolf déconstruit les binarismes qui restreignent le désir et la liberté humains. Consciente qu'elle est des complexités la sexualité, elle produit le corps de son/sa protagoniste par le moyen dun langage critique qu'ironise les stéréotypes formés par les deux genres sexuels distincts dans la société patriarcale occidentale.

Mots-clés : Binarisme de genre, déconstruction, ironie, personnage, ambigüité


 

 

O título e o subtítulo de Orlando: uma biografia, sexto romance publicado por Virginia Woolf, prometem contar ao leitor a história de uma vida (afinal, é disso que tratam as bio-grafias: elas são "registros de vida"). E prometem contar, em princípio, a vida de um homem, já que tradicionalmente, "orlandos" costumam ser homens.

Ocorre, porém, que romances, obras literárias que são, não têm por obrigação estabelecer os limites das promessas que fazem. Seu único compromisso é para com a verossimilhança interna, ou seja, para com o jogo que montam dentro de sua tessitura ficcional. E os leitores que não suspendem a descrença, que buscam sempre no mundo externo provas factuais para os fatos narrados, não devem entrar nesse jogo. Devem buscar outro tipo de leitura.

O jogo que este romance formula oferece, sim, um registro de vários acontecimentos verídicos ocorridos desde o século xvi até o início do século XX (na medida em que são verídicos os acontecimentos que a História faz chegar até nós). Mas tece-os com a mais deslavada fantasia. Quando o leitor que dele espera uma biografia convencional ou um Orlando convencionalmente "orlando" se dá conta, já está no meio do jogo, caso em que só lhe restam duas opções: suspender de todo a descrença e entregar-se à fantasia ou abandonar o livro - e abandoná-lo é perder irremediavelmente o jogo. Porque a leitura desse refinado romance é uma das raras experiências em que o virtuosismo da linguagem se combina à subversão de suas próprias regras e em que toda a construção de um universo histórico-social-político-literário alia-se à sua própria desconstrução a fim de proporcionar prazer e fruição a um leitor moderno que espera de um texto mais do que a simples historinha que conta.

A narração em terceira pessoa (relativamente onisciente) abre o cenário como o faria uma cortina de teatro ou uma tela de cinema e mostra a imagem do protagonista, um jovem de 16 anos, em plena ação, ou como se costuma dizer, in medias res (no meio da coisa). A primeira palavra enunciada na diegese refere-se diretamente a esse jovem por meio do pronome pessoal "ele" ("he" no original) - pronome esse indiscutivelmente masculino segundo qualquer dicionário de língua portuguesa ou inglesa:

Ele - pois não podia haver dúvida alguma quanto ao seu sexo, embora a moda da época fizesse algo para disfarçá-lo - estava desferindo golpes na cabeça de um mouro que balançava das vigas do teto. ... Os progenitores de Orlando haviam ... arrancado, de muitos ombros, muitas cabeças de muitas cores, e haviam-nas trazido para ficar penduradas nas vigas. Assim também faria Orlando, assim o prometia. (Woolf, 2019, p. 39, grifo meu)

Não basta, ao narrador, fazer sua primeira referência ao protagonista de Orlando por meio do dêitico marcadamente masculino. Mal enunciado o "ele" referente ao herói do romance, esse narrador inominado, par por excelência do protagonista na dança discursiva, faz-se presente para justificar o gênero desse "ele", ratificando tal masculinidade por meio de um comentário, uma ilustração e uma promessa de ação: a ação típica de um masculino agressivo, brutal e dominador.

Em tudo isso, o que mais chama a atenção do leitor atento ao pé da letra é essa intrusão no texto por meio do comentário grifado: "pois não podia haver dúvida alguma quanto ao seu sexo". Ora, se a palavra instauradora do ser fictício é o pronome pessoal masculino, por que haveria o leitor de ter dúvidas quanto ao sexo desse ser? Tal comentário não levantaria, ele mesmo, uma dúvida que de outro modo não lhe ocorreria?

O que "justifica a justificativa" do narrador é o fato de o sexo do herói estar disfarçado pela "moda da época".

Então tal leitor atento volta a perguntar-se: como é que a "moda da época" disfarça a masculinidade que o enxerido narrador faz tanta questão de asseverar?

Um olhar à primeira ilustração do livro basta para entender do que se trata: a imagem do intrépido Orlando que golpeia cabeças de mouros apresenta-se toda ornada com laços, rendas e bordados. Além disso, seus cabelos lhe passam dos ombros e uma franja reta lhe cobre metade da testa. Mas não se trata apenas disso: ele tem, como logo o narrador virá a relatar, um delicadíssimo rosto de efebo "coberto com uma lanugem de pêssego"; "lábios finos", cobertos por "dentes de uma delicada brancura de amêndoa"; um "nariz afilado em seu voo curto"; "orelhas pequenas coladas à cabeça" e "olhos como violetas encharcadas" (Woolf, 2019, pp. 40-41).

Esse leitor pode ficar, de início, um tanto confuso com tantos qualificativos próprios do feminino numa personagem que lhe foi apresentada como indubitavelmente masculina. Já nota aí que o texto solapa suas próprias asserções. E não precisa ser assim tão atento para compreender, à medida que a narrativa começa a desenvolver-se, que o herói de Orlando não é na verdade o típico herói dos romances de ação que parecia ser à primeira vista: que ele não levará a cabo sua promessa de arrancar cabeças a gentios e que (como já adiantamos) sua história não se mostrará inteiramente verídica, nem a História da Inglaterra que aí se registra inteiramente fidedigna.

Acontece que, a Orlando, ser-lhe-á dado iniciar essa História no século xvi como o rapazinho de 16 anos que é e terminá-la com 38 anos... no início do século XX - ou seja, viver 400 anos em 22. Assim, vicariamente, será dado ao leitor viver intensa e condensadamente, nas poucas horas que dedicar a essa leitura, os 400 anos que essa personagem vive em apenas 22. E viver esses 400/22 anos com a personagem significa não apenas repassar episódios importantes da História, da vida social, política e literária da Inglaterra, mas absorver de tudo isso as emoções sentidas em várias épocas e o modo muito peculiar de ver o mundo de uma escritora modernista do século XX.

De fato, não o ler é uma perda e tanto.

A aparente indeterminação sexual na caracterização do protagonista de Orlando também pode ser detectada na moça por quem ele se apaixona, que o decepciona e que será seu inesquecível amor por quatrocentos anos. É do seguinte modo que, pela primeira vez, ele vê Sasha, a princesa russa:

percebeu, vindo do pavilhão da Embaixada Moscovita, uma figura de rapaz ou moça, pois a túnica solta e as calças à moda russa serviam para disfarçar -lhe o sexo, que lhe suscitou a maior curiosidade. A criatura, qualquer que fosse seu nome ou gênero, tinha estatura mediana, silhueta muito delgada e vestia-se inteiramente de veludo cor de nácar, rematado com uma estranha pele esverdeada. Mas esses detalhes eram ofuscados pela extraordinária força de sedução que emanava de toda a sua pessoa. As imagens e metáforas mais imoderadas e extravagantes se entrelaçaram e rodopiaram em sua mente. (Woolf, 2019, pp. 58-59, grifos meus)

Em Orlando, as normas de gênero e de vestimenta e os protótipos de ação estão intimamente interligados (assim como, obviamente, a linguagem que produz isso tudo) por um fio crítico e por vezes irônico, de modo que encobrimentos - na vestimenta, na ação e sobretudo na linguagem - promovem ambiguidades de gênero. Esse fio delicado e fino, mas reluzente, mostra que tais ambiguidades provêm de convenções que atrapalham a espontaneidade e a naturalidade da atração entre as pessoas (fictícias, sim, mas nem por isso menos pessoas que as de carne e osso). E que a atração à margem de tais convenções não deixa de ocorrer, ainda que à custa de conflito. A habilidade narrativa de Virginia não apenas é capaz de nos dizer isso, mas de gerar esse conflito no discurso, principalmente por meio dos recursos da repetição, da oposição, da intensificação e da gradação. E, obviamente, da comparação e da metáfora:

Quando o rapaz, pois, infelizmente, rapaz tinha de ser - nenhuma mulher seria capaz de patinar com tanta velocidade e vigor - deslizou perto dele quase na ponta dos pés, Orlando estava prestes a arrancar os cabelos de irritação pelo fato de a pessoa ser do seu próprio sexo e, portanto, todos os abraços estarem fora de questão. Mas o patinador chegou mais perto. As pernas, as mãos, a postura eram de um rapaz, mas rapaz algum jamais tivera uma boca como aquela; rapaz algum tivera aqueles seios; rapaz algum tivera olhos que olhavam como se houvessem sido pescados do fundo do mar. Finalmente, detendo-se e fazendo com a maior graciosidade uma reverência ao Rei, que passeava lentamente de braço dado com algum fidalgo, o patina dor desconhecido parou. Estava a menos de um palmo de distância. Era uma moça. (Woolf, 2019, p. 59, grifos meus)

A tradução de um texto literário sempre requer um tipo muito especial de leitura, e as diferenças entre as línguas colocam os tradutores diante de escolhas que vêm a determinar, por sua vez, outras leituras - as leituras de outros. Quando Katia Orberg e eu deparamos com a palavra "skater" ao transpor o trecho acima para o português, não tivemos a opção de uma equivalência neutra para manter o suspense quanto ao gênero de Sasha, ainda não revelado pelo narrador e por Orlando, que enunciavam seu encantamento em uníssono no discurso indireto livre. Ou escolhíamos o masculino, "patinador", ou o feminino, "patinadora". Mas não podíamos nos adiantar à revelação que viria quase a seguir em uma frase de efeito curta ("era uma moça"), gramaticalmente paralela à que posteriormente viria a formular a própria transformação de Orlando e mudar o rumo da história ("ele era mulher"). Optamos, portanto, por traduzir o neutro "skater" por "patinador" - para manter o suspense como o texto exigia. Outras dificuldades bem maiores surgiram ao longo de nosso trabalho. Mas esse pequeno exemplo já mostra como a estrutura das próprias línguas determina gênero e como, no próprio processo de transposição de uma cultura para outra, o tratamento do gênero não ocorre sem percalços.

De fato, o pronome "ele" do início não será o tempo todo "ele". Aos trinta anos de idade, o herói do romance mudará de gênero: aquele Orlando a respeito de cujo sexo masculino o narrador afirmara "não poder haver dúvida alguma" passará a apresentar-se como mulher, vestir-se como mulher, comportar-se como mulher, desejar como mulher e sofrer as injunções sociais que uma mulher sofre. Esse Orlando virá a experimentar o papel feminino em sua plenitude e desfrutará do corpo da mulher com todas as suas capacidades e funções biológicas, pois engravidará e dará à luz um menino. Esse Orlando que antes de mais nada é tecido de palavras, corpo fluido e complexo de significações geradas pelo mais alto grau de polivalência - esse Orlando que somente existe enquanto dura nossa relação com essas palavras por meio da leitura, esse - quero dizer, essa - Orlando, como que por um passe de mágica dos deuses da Verdade, da Franqueza e da Honestidade e contra a resistência de uma trindade agourenta - a Pureza, a Castidade e a Modéstia (as três virtudes exigidas das mulheres ao longo dos séculos pelos poderes patriarcais) -, esse Orlando caído em sono profundo quase mortal desperta e, sem surpresa alguma, vê-se ao espelho, nu(a), combinando, "em um mesmo ser, a força do homem e a graça da mulher" (Woolf, 2019, p. 142). Parodiando os contos de fadas em que uma personagem simplesmente se transforma no que/em quem deseja como prêmio, ou em algo/alguém abominável como castigo, o texto aqui ironiza a opinião comum de que, de um momento para outro, é possível alguém simplesmente descobrir que faz parte do gênero oposto ou decidir mudar de gênero. Como se o outro gênero nunca houvesse estado subjacente ao seu corpo e como se a transformação não fosse um processo contínuo (Crawford, p. 178). Isso até que poderia, sim, ocorrer na ficção, mundo do "impossível crível" como diz dele Aristóteles, mas não é o que se dá em Orlando. O leitor atento que vem recolhendo os indícios de masculinidade e feminilidade na caracterização das personagens pode até surpreender-se com a ousadia dessa reviravolta narrativa, mas não pode dizer que ela não havia sido preparada no próprio corpo do texto, que esse próprio corpo não se estava gradualmente processando para resultar no clímax da cena de transformação:

Ficou de pé completamente nu diante de nós e, como as trombetas troavam "Verdade! Verdade! Verdade!", não temos escolha a não ser confessar - ele era mulher. (Woolf, 2019, p. 142, grifo meu)

Vejam, o narrador não diz, de imediato, que Orlando se transformou em mulher.

A impressão que se tem aqui é de que até então algo em Orlando estava sendo dissimulado e encoberto, protegido pela trindade conservadora que é venerada por "aqueles que proíbem; os que negam; os que reverenciam sem saber por quê, os que elogiam sem entender..." (Woolf, p. 141). Algo estava sendo disfarçado sob o próprio disfarce e que não encontrava meios legitimados de manifestar-se caso não se encaixasse em uma categoria distinta pré-estabelecida. E, como sabemos, as categorias são apenas duas, excludentes: masculino e feminino. Isso em uma cultura cuja língua pronominaliza o neutro. Mas que o utiliza, como pronome, apenas com referência a coisas e animais, o que o torna pejorativo quando aplicado ao elemento humano. Para esse, a língua não tem pronome neutro.

Antevendo então as possíveis questões relativas às ideias de veracidade e verossimilhança que a transformação de sua personagem é passível de suscitar e para poder seguir adiante em busca de uma verdade humana que transcenda a mera referencialidade, Virginia Woolf leva seu narrador a abordá-las:

Muitas pessoas ... considerando que tal mudança de sexo é contra a natureza, têm feito grandes esforços para provar (1) que Orlando sempre foi mulher, (2) que Orlando é nesse momento um homem. Deixemos que os biólogos e os psicólogos decidam. Basta-nos afirmar o simples fato; Orlando foi homem até os trinta anos; então, tornou-se mulher e assim tem permanecido desde então. (Woolf, 2019, p. 143)

Percebe-se um gracejo nesse discurso - uma brincadeira com os que tentam "resolver" tais questões por meio da razão, da ciência e dos estudos da mente e que ficam enumerando argumentos lógicos, embora estes sejam apenas dois e resultem na obviedade: ou Orlando já era mulher e se apresentava como homem, ou Orlando ainda é homem e apenas troca de gênero. Woolf e seu narrador fazem uma leve zombaria dos que, a essa altura, ainda não perceberam que estão mergulhados na ficção e que as leis da ficção em nada têm de corresponder às das outras ciências; que os fatos literários, ao enunciar-se, instauram realidades em um universo próprio; e que, quando se imagina, os limites da imaginação são muito mais elásticos que os da realidade, ainda que esta alimente aquela.

Se a questão que aqui importa é a do binarismo sexual e de gênero que Virginia Woolf corajosamente aborda em Orlando, numa Inglaterra de valores tradicionalistas remanescentes do puritanismo e do moralismo vitorianos, pensemos se é mesmo apenas de binarismo que se trata. Pois não se entenda, a partir de sua transformação, que Orlando simplesmente alterne papéis, ou que viva "um lado homem e outro mulher", como se costuma dizer. Qualquer pensamento excludente do tipo "ou/ou" e "não só/mas também" restringe muito seu alcance simbólico. Tampouco se entenda que ele/a é mulher mas também homem, ou que é homem mas também mulher. Orlando é, sim, multiplicação. Mas, na verdade, é outra coisa além disso: é um constante devir que transita entre múltiplas fronteiras permeáveis de gênero, tempo, espaço - que habita seus interstícios. É um "processo de fabricação", como ele/a próprio/a diz de si. É um desejo que continuamente se reagencia, um eu que continuamente se desloca utilizando os códigos tradicionais de representação de gênero e de comportamento porque a sociedade assim o exige, mas que os subverte à medida que esses códigos se mostram limitantes e os reinventa a seu favor. Orlando, metáfora que é (e metáfora é palavra de origem grega que significa "mudança") pode viver praticamente ao mesmo tempo uma ampla gama de possibilidades de experimentação da sexualidade que vá muito além da binaridade dos sexos e uma ou outra de suas combinações:

Ela, aparentemente, não tinha dificuldade alguma para sustentar os diferentes papéis, pois mudava de sexo com muito mais frequência do que podem ima ginar aqueles que usam apenas um conjunto de roupas; tampouco pode haver alguma dúvida de que ela fazia uma dupla colheita por meio desse artifício: os prazeres da vida eram intensificados e suas experiências, multiplicadas. A probidade das calças, ela a substituía pela sedução das anáguas e fruía do amor de ambos os sexos igualmente. (Woolf, 2019, p. 205, grifo meu)

Não se entenda, por essas palavras, que Virginia afirma serem as roupas o que determina o gênero, mas que elas são - assim como a própria língua, a linguagem e as ações - uma forte marca, nos corpos, das estereotipias formadas a partir das relações sociais que compõem as identidades de gênero. E a linguagem que ela própria utiliza - repleta de uma ironia poética e um humor filosófico; de uma verdade paradoxal, fluida, e uma fantasia seriíssima; de uma retórica tradicional e uma sutil mas vigorosa resistência às estruturas normativas - essa linguagem configura o corpo literário de Orlando como pura vitalidade aberta às diferenças, pura hibridização de gêneros (literários inclusive), desreferencialização e desconstrução dos binarismos redutores que tolhem o desejo e a liberdade.

Orlando é espaço ou terra (or land) onde todas as experimentações (da sexualidade e da linguagem) se fazem possíveis e críveis, e onde o humano testa todas as suas possibilidades de ser. Assim também, a personagem Orlando é palavra carregada de inúmeros sentidos (direções, caminhos) irrequietos, metáfora ou encruzilhada móvel e mutante em que esses sentidos se imbricam e se movimentam, gerando faíscas que iluminam o nosso próprio funcionamento como homens, mulheres e tudo aquilo que ainda não sabemos nomear.

 

Referências

Crawford, L. (2015). Woolf's Einfiihlung: an alternative theory of transgender affect. Mosaic: a journal for the interdisciplinary study of literature, 48(1),165-181.         [ Links ]

Woolf, V. (2019). Orlando: Uma biografia (E. F. Pereira e K. M Orberg, Trad. e notas). Martin Claret.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 30/4/2021
Aceito em: 1/5/2021

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