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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo ene./jun. 2021

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

Formação psicanalítica em tempos de covid-19: considerações sobre o papel da Associação dos Membros Filiados na formação psicanalítica no Instituto Durval Marcondes

 

Psychoanalytic training in times of covid-19

 

Formación psicoanalítica en tiempos del covid-19

 

Formation psychanalytique en période de covid-19

 

 

Cibele Pires Rays; Ana Laura R. Araujo; Gizela Turkiewicz; Olivia P. Falavina; Paula F. R. da Silva

Membros da diretoria da AMF no período de 2019-2021. São Paulo / cibelerays@gmail.com / analauraracastro@gmail.com / gizela.turkiewicz@gmail.com / oliviafalavina@gmail.com / paulafrs@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Neste artigo, as autoras partem de uma retomada histórica sobre o papel da Associação dos Membros Filiados (AMF) em suas cinco décadas de existência e apresentam resultados de pesquisa realizada a propósito do impacto da pandemia da covid-19 nas formações, nas clínicas e nas vidas dos filiados. Descrevem como neste momento de pandemia a Associação aproximou-se de modo mais significativo de seus membros e se tornou ainda mais um espaço de escuta, de trocas e um porta-voz dos filiados diante da diretoria do Instituto Durval Marcondes e da SBPSP. Com base nessas reflexões, conclui-se que a AMF precisa, para conservar seu vigor e caráter, manter-se como um lugar reflexivo e independente, em que seus membros possam ser ouvidos, respeitados e a formação, debatida.

Palavras-chave: Associação dos Membros Filiados, formação psicanalítica, psicanálise, covid-19


ABSTRACT

In this article, the authors begin with a historical review of the role of the Affiliated Members Association (AMF) in its five decades of existence and report the results of research conducted on the impact of the covid-19 pandemic on the training, clinics, and lives of affiliates. They describe how, in this moment of pandemic, the Association came closer in a more significant way to its members and became even more a space for listening, exchanges and a spokesperson for the affiliates before the board of the Instituto Durval Marcondes and the SBPSP. From the reflections of the article we conclude that the AMF needs, in order to maintain its vigor and character, to remain a reflective and independent place where its members can be heard, respected and their training debated.

Keywords: candidates association, psychoanalytic training, psychoanalysis, covid-19


RESUMEN

En este artículo, las autoras parten de una reanudación histórica del papel de la Asociación de Miembros Afiliados (AMF) en sus cinco décadas de existencia y presentan los resultados de la investigación realizada sobre el impacto de la pandemia covid-19 en la formación, clínicas y vidas de los afiliados. Describen cómo, en este momento pandémico, la Asociación se volvió más significativa para sus miembros y se convirtió aún más en un espacio de escucha, intercambio y en portavoz de los afiliados junto el directorio del Instituto Durval Marcondes y de SBPSP. De estas reflexiones, se puede concluir que la AMF necesita, para mantener su vigor y carácter, permanecer como un lugar reflexivo e independiente, donde sus miembros puedan ser escuchados, respetados y discutida la formación.

Palabras clave: asociación de candidatos, formación psicoanalítica, psicoanálisis, covid-19


RÉSUMÉ

Dans cet article, les auteurs partent d'une reprise historique du rôle de l'Association des membres affiliés (AMF) au cours de ses cinq décennies d'existence et présentent les résultats d'une recherche sur l'impact de la pandémie de covid-19 sur la formation, les cliniques et la vie des affiliés. Elles décrivent comment, en ce moment de pandémie, l'Association est devenue plus significative pour ses membres et est devenue encore plus un espace d'écoute, d'échanges et de porte-parole des affiliés à l'Instituto Durval Marcondes et au SBPSP. Des réflexions de l'article, on peut conclure que l'AMF a besoin, pour conserver sa vigueur et son caractère, de rester comme un lieu de réflexion et d'indépendance, où ses membres peuvent être entendus, respectés et la formation peut être discutée.

Mots-clés : association de candidats, formation psychanalytique, psychanalyse, covid-19


 

 

Os 50 anos da Associação dos Membros Filiados

Em 2020, a Associação dos Membros Filiados (AMF) ao Instituto Durval Marcondes, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), completou 50 anos desde sua fundação, data que seria comemorada em um simpósio organizado pela atual diretoria (2019-2021), em março de 2020. Com o simpósio, pretendia-se refletir sobre as "Inquietações na Formação", no eixo passado-presente-futuro. Para tanto, foram convidados ex-presidentes da AMF, representantes de cada uma de suas cinco décadas, colegas que estão em formação atualmente e dois eminentes psicanalistas na América Latina, Bernardo Tanis e Marcelo Viñar, para a discussão sobre o futuro da psicanálise com Gizela Turkiewicz, então presidente da AMF, representando a geração atual de membros filiados.

Quando nos propusemos a celebrar essa data, retomamos o caminho percorrido por outros antes de nós, tanto por registros históricos, quanto por entrevistas com os ex-presidentes da AMF, o que resultou na produção de um documentário, registro que ficará disponível para esta e para as futuras gerações.

As entrevistas mostraram de modo vivaz como foi significativo para cada um dos ex-presidentes a passagem pela Associação. Através delas foi possível conhecer como o lugar do membro filiado (outrora candidato) foi se modificando e se consolidando no Instituto e na SBPSP ao longo do tempo, e como em grande parte isso se deve às lutas que a cada época a AMF promoveu. Notamos, também, que as pessoas que passaram pela Associação se envolveram de tal modo com as questões institucionais, que muitos continuaram participando ativamente da vida institucional, mantendo-se ativos na reflexão a respeito de nossa formação.

Tanto a idealização desse evento, quanto a produção do documentário, além de manifestarem a valorização do registro histórico como fonte de conhecimento e base de transformação institucional, possibilitaram a reflexão sobre a importância da AMF dentro da instituição, como também sobre seu papel na formação dos membros filiados que dela fazem parte.

Para contextualizar, a SBPSP foi constituída em 1927, um ano após a fundação da Sociedade Psicanalítica de Berlim, e foi reconhecida pela International Psychoanalytical Association (IPA) em 1951. Sua fundação foi pautada por um movimento de vanguarda liderado por Durval Marcondes, na esteira da Semana de Arte Moderna de 1922, mas sofreu um fechamento ideológico e científico nos anos de 1960/1970 (Socha, Azevedo, Leite e Pupo Netto, 2015).

Em contrapartida a esse fechamento, no final dos anos 1960, começou um movimento impulsionado pelos analistas em formação, dentro do Instituto, que buscava promover alguma abertura à formação proposta na época.

Em 1967, foi criado o Jornal de Psicanálise, voltado a publicações que refletiam sobre a formação psicanalítica e a questões culturais e institucionais, o que propiciou um solo fértil para a criação do Centro Acadêmico Sigmund Freud em 1968, e dois anos depois, da AMF, fundada sob o nome de Centro de Estudos Luiz Vizzoni, que se mantém até hoje.

A AMF teve início em 1970, e, considerando as circunstâncias nacionais, surgiu na esteira de movimentos estudantis do final da década de 1960, pouco depois do golpe militar e da instauração do Ato Institucional número 5 (ai-5), de 1968. Havia entre os candidatos a necessidade de criar uma organização entre pares em busca de encontrar uma voz coletiva, que marcasse um posicionamento crítico diante do contexto em que estavam inseridos, procurando a reflexão e a participação ativa em sua formação psicanalítica. Este aspecto recupera algo da essência da psicanálise e do espírito de seu precursor, Freud, que é uma característica algo transgressiva.

Assim, intramuros, a SBPSP refletia o clima proibitivo do país. As conversas que hoje ocorrem dentro da sede da Vila Olímpia, nos corredores e no café, ocorriam literalmente extramuros, nas calçadas da Rua Itacolomi, em frente à sua primeira sede.

Durante as entrevistas para o documentário, ouvimos por diversas vezes dos ex-presidentes da Associação: "na nossa época, os candidatos não tinham voz". Por muitas décadas, o membro filiado ocupou um lugar infantilizado na instituição. As pessoas entravam para a formação com muitos anos de experiência profissional, por vezes com mais de 20 anos de formados, e eram vistos dentro do Instituto como inexperientes. Apesar das muitas conquistas, ainda hoje há um trabalho da AMF visando a que sejamos vistos como mais que alunos ou analistas em formação.

Socha, Azevedo, Leite, Pupo Netto (2015), integrantes da diretoria da AMF de 2013 a 2015, com apoio em uma reflexão baseada em extensa pesquisa histórica, afirmam que quando se entra para uma formação como a nossa, em que é preciso ser objeto da transferência para se apropriar da experiência, cria-se um pacto narcísico entre o indivíduo e a instituição em que ingressa.

Os autores dizem que é como se nesse pacto houvesse uma mensagem subliminar entre a instituição e o membro filiado, na qual, em troca de um sobrenome institucional e a proteção que isso traz, ele se propusesse a abandonar suas antigas referências e ser fiel às novas, o que seria empobrecedor tanto para o membro filiado como também para instituição, que deixaria de se ampliar com as ideias e experiências que esse novo membro traz. Se, entretanto, aprendemos algo com Freud em "A psicologia das massas e análise do eu" (1921/2011), texto que completa 100 anos este ano, é que, para se inserir em um grupo, suportam-se perdas, mas também se recebe algo em troca, que é de muito valor para o sujeito. Neste caso, além de uma formação de qualidade, recebem-se um suporte identificatório narcísico e a sensação de segurança. Sendo assim, o afiliar-se e a idealização da instituição estão sempre presentes e em constante tensão (p. 187).

A AMF entra nesse jogo justamente como elemento que traz a terceiridade, o que é, a nosso ver, de extrema importância. A Associação fica como um terceiro entre o membro filiado e a instituição (Instituto e SBPSP) (Azevedo et al., 2013), e, enquanto se mantiver independente poderá continuar como espaço de reflexão, em que se pode dialogar a respeito da formação e da psicanálise em âmbito local, mas também nacional e internacional, por meio de suas parcerias com representações de analistas em formação no Brasil e no mundo.

A formação em nosso Instituto é ampla e diversa, e acreditamos que, se o espaço reflexivo e crítico que a AMF proporciona se mantiver, ela pode contribuir para que os membros filiados fiquem menos presos à idealização e possam estabelecer um percurso autoral em sua formação, em que se enriqueçam com o que a instituição oferece, sem perder sua subjetividade e criatividade.

Ao longo dos anos, por intermédio do trabalho da AMF, os analistas em formação passaram a ter voz, puderam ocupar um lugar na comissão de ensino do Instituto, depois puderam votar nesta comissão, deixaram de ser chamados de "candidatos" (afinal, candidatos a quê?), e passaram a ser nomeados "membros filiados", o que ainda é uma solução de compromisso, mas que indica pertencimento. Filiado significa aquele que faz parte de um grupo, sociedade ou associação; remete-nos à palavra "filho", aquele que carrega a memória e as tradições dos pais e das gerações passadas, mas a quem também cabe inovar.

Por tudo isso, fica claro que a AMF nasceu com um caráter político, com o objetivo de que os membros filiados pudessem ter voz e autonomia, tornando-se autores de suas formações.

 

O assombro da pandemia se impõe

O futuro, entretanto, se fez presente antes do que imaginávamos, e, exatamente na semana em que aconteceria nosso simpósio comemorativo, foi decretado o isolamento social pela pandemia da covid-19. Tanto o evento comemorativo como nossos atendimentos presenciais, análises, supervisões e seminários foram suspensos. Pouco tempo depois, todas essas atividades foram reorganizadas e passaram a acontecer à distância, pelo telefone ou computador, levando a uma brusca transformação em nossa prática, o que nos tem trazido muitas questões.

Notamos que desde março de 2020 houve muitos webinars, tanto da SBPSP quanto de outras instituições psicanalíticas, para se discutir a migração on-line da clínica, mas poucos para se falar sobre a formação e as mudanças impostas aos seminários, análises dos analistas em formação e supervisões.

Havia se perdido o espaço de socialização das sedes da SBPSP, locais em que os membros filiados desfrutavam da oportunidade de se conhecer ou se reencontrar, geralmente às segundas-feiras, e onde se encontravam pessoas de todo o estado de São Paulo, e de outros estados brasileiros. Nos intervalos do café ou em pequenos grupos conversava-se informalmente sobre como caminhava a formação, a clínica e a família de cada um, novos projetos surgiam, e trocas de bibliografia eram comuns. Enfim, toda uma experiência afetiva marcante em nossa formação, que compõe cenas de nossa história pessoal e profissional. Assim, a economia pessoal foi se contraindo, em termos não só financeiros, mas também emocionais, escassa de vivências e encontros.

 

O papel da AMF durante a pandemia

O isolamento social e a pandemia causaram um grande impacto na vida de cada um de nós, nossos pares, familiares e pacientes. Na verdade, não há no mundo quem não tenha sido atingido de alguma forma.

Entre tantos movimentos que a pandemia trouxe, houve um que surgiu na Itália, em março de 2020, que convidava as famílias a estimular suas crianças a desenharem com as cores do arco-íris, em associação à frase "Vamos todos ficar bem", colocando os desenhos nas janelas de casa ou nas redes sociais. Era uma mensagem àqueles que estavam no front, lutando contra a pandemia, para dizer que estávamos em casa fazendo nossa parte, e também um ato de esperança para reconfortar e assegurar crianças e adultos, apreensivos diante de algo tão desconhecido e inquietante.

A AMF, como entidade representativa dos membros filiados diante do Instituto e da SBPSP, no início do distanciamento social tomou a iniciativa de ampliar seus canais de comunicação com os colegas, realizando jornadas internas, fóruns virtuais, e criando um grupo de trocas de mensagens instantâneas (via WhatsApp). A intenção foi semelhante àquela dos desenhos expostos nas janelas, ou seja, estabelecer uma conexão entre a Associação e os membros filiados, e entre os colegas, para ampliar a possibilidade de trocas.

No texto de abertura de uma dessas jornadas internas, Gizela Turkiewicz apontou para o fato de que a mensagem "Vamos todos ficar bem" colocada nas janelas ou nas redes sociais estabelecia-se no espaço entre o mundo interno e o mundo externo, pondo-nos em contato com o que acontecia lá fora, no mundo intersubjetivo, mas também nos convocando a olhar para o que acontecia intrapsiquicamente, dentro de cada um de nós, de nossas casas e clínicas. No entanto, a mensagem de esperança traz em si um grande temor: vamos mesmo todos ficar bem?

Pontalis fala sobre como nos estabelecemos na vida em função de "Quando". Estamos o tempo todo comparando o presente com o que veio antes ou com o que virá depois, escapando assim do agora.

Diz o autor:

"Era melhor antes." Quantas vezes senti que essa convicção se impunha, em todos os tipos de situações... Exemplos, retirados ao acaso, da preciosa desordem do saco da minha memória, onde, tal qual em uma bolsa de mulher, o fútil se esconde do olhar dos outros e o indispensável, de meus próprios olhos. ... Quando, e quando, e quando... (2013, p. 9)

Quando aludimos ao tempo em que tudo vai ficar bem, viajamos para o futuro com a intenção de escapar da apreensão inquietante e perturbadora da realidade em que estamos mergulhados no agora, e sonhamos com o que tínhamos antes ou com o outro lado do arco-íris. Sonhamos sobreviver, e que tudo ficará bem, sonho que nos garante a manutenção da esperança e a sobrevivência psíquica diante da hostilidade do momento atual.

Mas como estamos agora? Como é viver o tempo presente? E será que vamos mesmo ficar bem? As cifras com o número de mortos no Brasil e no mundo não param de crescer. Tivemos a primeira onda, a segunda, e nem sabemos mais em que onda estamos agora, pois não parece haver intervalo entre elas em nosso país. O fato é que não sabemos quando a pandemia e a crise dela decorrente vão acabar, e se chegaremos vivos até o fim. A sensação durante muitos meses era que vivíamos uma vida provisória, de curta ou média duração, mas agora começa a pairar a percepção de que o provisório se instala e não sabemos mais com o que contar e como nos organizar.

As vacinas chegaram, mas não há delas para todos. No Brasil, estamos imersos não apenas nos temores do vírus, mas desamparados pela inexistência de instituições que garantam condições mínimas para a população, e estamos capturados pela incapacidade política de nossos governantes.

Nesse contexto, o Instituto Durval Marcondes fez um grande esforço, e em um mês se reorganizou para que os seminários fossem retomados de modo remoto, porém, não foi criado um espaço de escuta para que os membros filiados pudessem compartilhar o espanto sobre o que estávamos vivendo e para pensar, até mesmo de modo prático, sobre como se daria a retomada da formação.

Diante disso, a AMF procurou criar espaços para que pudéssemos ter trocas de experiências, conversarmos e pensarmos juntos sobre nossas formações no momento atual. Espaços em que os colegas têm compartilhado suas experiências nos seminários clínicos e teóricos, análises, supervisões, e atendimentos clínicos, além de trazerem indagações sobre a crise política e questões sociais. Paradoxalmente, são esses espaços virtuais que também têm nos permitido trocar informações sobre dificuldades e descobertas desse novo modelo de interação virtual.

Puget e Wender, em um artigo intitulado "Analista y paciente en mundos superpuestos" (1982), apontam a dificuldade de separar o campo analítico da realidade externa quando há um excesso de informações e acontecimentos na vida real, que assolam tanto analista quanto paciente, como os que ocorrem no momento atual.

O mundo externo contamina o campo analítico, violando-o. Disto pode decorrer uma distorção da escuta e a perturbação na função analítica, na medida em que as informações que traz o paciente sobre a pandemia e a crise política são as mesmas que assombram o analista. E, se temos a mesma visão social e política que nossos pacientes, é difícil, porque podemos nos amparar nisso, mas se temos visões muito distintas pode ser um desafio ainda maior manter a função analítica e não enveredar por discussões de fatos da realidade.

Além disso, o enquadre habitual, protetor do processo analítico, foi rompido duplamente, pela realidade superposta e pela impossibilidade de mantermos os atendimentos presenciais.

Precisamos recorrer ao setting interno para dar conta tanto da mudança de espaço físico do consultório para o mundo virtual, quanto para nos centrar em nossa função analítica, que é ouvir, para além dos fatos, as questões do inconsciente. A atenção flutuante fica ainda contaminada pela necessidade de atenção de que precisamos dispor para garantir a manutenção da conexão digital, com suas diferenças e instabilidades.

Puget e Wender afirmam que o mundo superposto pode ser comparado aos tendões de Aquiles do psicanalista e do analisando, pois suas problemáticas se inscrevem nos dilemas não resolvidos entre a realidade externa e a análise. Quando a realidade externa se faz presente de modo tão concreto e pungente, a escuta do inconsciente pode ficar obturada.

Os autores finalizam seu artigo dizendo que o mundo superposto é "um momento de eclipse analítico" (p. 518).

O eclipse ocorre quando a posição de um objeto em trânsito coincide temporariamente ou atravessa o campo de visão de outro, mais distante. Significa um obscurecimento. Há quase um ano o distanciamento social se sobrepôs aos nossos espaços de encontro, relacionamento e convivência, onde sustentávamos o devir da psicanálise. Continuar a formação em psicanálise nesse contexto, em paralelo com a sustentação de todas as outras demandas da vida, tornou-se um desafio. Como a AMF poderia contribuir para contornar o isolamento?

No primeiro fórum virtual que realizamos, em 5 de maio de 2020, estabeleceu-se um diálogo sobre o desafio de enfrentar esse futuro próximo. Surgiu ali o interesse em nos conhecermos melhor enquanto grupo, até mesmo para podermos dialogar com as diretorias do Instituto e da SBPSP em bases mais realistas. Para tanto, foi realizada uma pesquisa sobre o impacto da pandemia em nossa formação, intitulada "Formação psicanalítica em tempos de covid-19", com questões centradas nas transformações na vida prática dos colegas em formação. Compunha-se de vinte questões de múltipla escolha com possibilidade de acréscimo de comentários às respostas.

 

Resultados da pesquisa: formação psicanalítica em tempos de covid-19

Descreveremos a seguir os resultados obtidos nessa pesquisa, com o objetivo de apresentar evidências que nos apoiem na ampliação da discussão sobre a formação psicanalítica em nosso Instituto, mas que talvez também possam contribuir para a expansão da psicanálise enquanto instituição e ciência, especialmente neste momento disruptivo mundial, que tem exigido dos psicanalistas repensar as bases de seu ofício.

Foram convidados a responder a pesquisa, em situação de anonimato, os membros filiados ao Instituto Durval Marcondes da SBPSP. O período de coleta de dados foi de 15 a 31 de maio de 2020. Responderam à enquete 131 membros filiados, que iniciaram a formação entre 1999 e 2020, e mais da metade (52,8%) iniciou a formação entre 2016 e 2020.

Entre os colegas que responderam ao questionário, 65,6% residem e trabalham na Grande São Paulo e 34,4%, em outras cidades do estado de São Paulo ou de outros estados. Estes dados nos permitem vislumbrar as características de nosso grupo e o quanto a instituição contribui para a capilarização da psicanálise pelo país. Nesse sentido, o formato das atividades, que passaram a ser on-line em sua totalidade, facilitou e trouxe o acesso a todos, o que pode nos levar a refletir a respeito da possibilidade de que a formação à distância possa ser mantida para as pessoas fora da Grande São Paulo.

Quanto à formação, cabe ressaltar que, em nosso Instituto, ela é baseada em um tripé que inclui análise, supervisão, seminários clínicos e teóricos (modelo Eitingon). A análise didática tem a duração mínima de cinco anos, com a frequência de quatro a cinco sessões semanais. Entre os colegas que responderam ao questionário, 36,6% já haviam concluído o período oficial da análise didática, 58% seguiam suas análises, seja por meio virtual ou presencial, e 5,4% haviam interrompido, seja por razões do analista, seja do analisando. Entre os colegas que continuavam em análise, em torno de um terço teve a necessidade de renegociar financeiramente os contratos analíticos.

No momento da pesquisa, 58,8% dos colegas informaram que não estavam realizando supervisão oficial, 36,7% continuavam por modo on- line, e 4,6% a tinham suspendido. Entre os colegas que continuaram, de forma semelhante ao que se deu com a análise didática, um terço teve necessidade de rever as condições financeiras.

No que se refere aos seminários teóricos e clínicos da formação, 92,4% dos membros filiados puderam continuar suas atividades, de forma virtual, o que trouxe conforto, pela possibilidade de dar continuidade à formação, e também pela possibilidade de trocas de experiências a respeito da nova modalidade de atendimento. No entanto, 29% dos membros filiados relataram que suas atividades foram apenas parcialmente retomadas e 7,6% tiveram todos os seminários interrompidos.

Quanto à prática clínica, todos os entrevistados referiram ter continuado os atendimentos clínicos durante a pandemia; 78,6%, apenas virtualmente e 21,4% mantiveram parcialmente seus atendimentos presenciais.

Até o momento em que a pesquisa foi realizada (maio/2020), uma parcela importante dos rendimentos das clínicas dos membros filiados havia sido afetada: 37,4% dos colegas referiram perdas financeiras situadas entre 10% e 25% da renda do consultório. Ainda, 27,5% sofreram perda de renda na ordem de 25% a 50% e 8,4% tiveram a renda reduzida a menos da metade.

Com relação às perdas financeiras em geral, não apenas na clínica, mas considerando o impacto e a redução das rendas de outros membros da família ou de outras fontes de renda, 69,5% relatam reduções maiores do que 10%, e em 26% dos casos a renda familiar foi reduzida entre 25% e 50%. Em 16% dos casos foi reduzida em mais de 50%.

Resulta disso que 44,3% dos membros filiados apresentavam naquele momento impedimentos financeiros para dar continuidade à formação no Instituto. Apesar das dificuldades, apenas 14 pessoas (10,6%) procuraram negociar com a diretoria do Instituto, e metade avaliou que a renegociação foi satisfatória, e a outra metade, que foi insatisfatória.

Cruzando o eixo de respostas relativo às negociações da análise didática e da supervisão com um segundo eixo relativo às perdas financeiras, percebemos que 35% dos membros filiados que responderam à pesquisa tiveram perdas financeiras consideráveis, mas não negociaram suas análises e supervisões. Pela perda financeira, supomos que eles perderam pacientes ou aceitaram renegociar seus honorários, mas não fizeram o mesmo com seus analistas e supervisores. Por que isso teria se dado?

As respostas obtidas nas questões abertas da enquete nos ajudam a esclarecer essa dúvida. Selecionamos algumas passagens em que essa questão foi respondida. Seguem-se exemplos:

"vejo que em breve não conseguirei sustentar o custo"; "ainda não negociei"; "imagino que em um futuro breve terei a necessidade de negociar"; "ainda durante alguns meses está sendo possível manter"; "ainda estou negando a dificuldade, e arcando com o prejuízo".

É notável a recorrência do advérbio "ainda", usado possivelmente sem a necessidade gramatical, mas como uma necessidade psíquica.

Pelo que foi exposto acima, deduzimos que uma parcela de membros filiados ficou hesitante em negociar com seus analistas ou supervisores e, provavelmente, estava usando suas reservas financeiras para manter a situação inalterada.

Podemos nos questionar sobre o porquê dessa hesitação. Por que se sustenta esse mal-estar em vez de pô-lo em análise e na análise? Abrir isso em análise ou em supervisão seria se expor e se dar a conhecer, como também conhecer o posicionamento de seu analista e supervisor. E saber se ele(a) negociaria ou não, do que aceitaria ou não abrir mão e o que considera essencial no enquadre. Consideramos que todos esses diálogos, ainda que caibam em sua especificidade a cada dupla analisando-analista, sejam essenciais como parte de nossa formação.

Os resultados dessa enquete foram levados pela AMF à diretoria do Instituto, que se comprometeu a comunicar por carta os analistas didatas sobre a situação, sensibilizando-os a renegociar seus honorários, com o cuidado de não interferir nos processos analíticos.

Além disso, a diretoria do Instituto se dispôs a agir junto aos coordenadores que haviam interrompido seus cursos ou modificado seus horários, para apoiá-los em dar sequência às atividades; e foi solicitada a possibilidade de negociação das mensalidades do Instituto para os membros filiados que estivessem com maiores dificuldades financeiras.

 

Considerações finais: a função de fratria da AMF

Ao considerarmos o papel da AMF, não somente em suas lutas ao longo destas cinco décadas, mas no momento em que vivemos, fica evidente a importância de estarmos reunidos e organizados como grupo. Neste momento, em que o distanciamento social se impôs entre nós, a função da AMF tem sido juntar o que estava separado, e, mais uma vez, escutar e dar voz às inquietações dos membros filiados, institucionalmente.

Suannes e Bracco (2014) afirmam que a instituição psicanalítica é um "espaço intersticial" (termo de Roussillon adotado pelas autoras) que propicia troca, e, assim, vozes individuais podem ganhar espaço para serem ouvidas e terem compartilhadas suas questões.

Com tudo isso exposto, há um ponto que sobressai nas articulações deste artigo, que é a capacidade da AMF de reunir os membros filiados, um grupo de semelhantes, que ocupa o mesmo lugar institucionalmente, mas que também é diverso, marcado por trajetórias e posições distintas.

Durante estes tempos pandêmicos, vimos um número significativo de colegas interagindo por mensagens virtuais, o que possibilitou a ampliação das trocas que aconteciam em pequenos grupos para um espaço maior. Nesse espaço, tivemos inúmeras trocas férteis, reflexivas, sobre a psicanálise e sobre a vida. Descobrimos colegas que, além de psicanalistas, são pintores, atores, cantores, músicos, poetas, fotógrafos, entre outras coisas. Construímos juntos uma biblioteca virtual diversa, trocamos indicações de pacientes, de seminários e supervisões. Assim, este grupo constituiu uma fratria, com todas as qualidades e complexidades que as relações de irmandade nos impõem.

Desde Freud, pensamos no papel do outro na formação do sujeito e aqui podemos ampliar isso para nossa constituição enquanto analistas. Dentro do grupo de membros filiados encontramos pares, rivais, que nos compreendem, nos inquietam, nos acolhem e desestabilizam, como numa fratria.

Suannes e Bracco (2014) consideram que a metáfora de irmandade para tratar o grupo de membros filiados traz em si a ideia de uma nova geração, que promove a abertura para pensarmos entre pares, para preservar a memória e os ensinamentos das gerações anteriores, mas também a possibilidade de renovação. Assim como em "Totem e tabu" (1913/2012), no mito da horda primitiva, cada um em sua singularidade apropria-se da herança do pai a sua maneira, e dela constitui algo novo.

Ao retomarmos a história da AMF pela voz de seus ex-presidentes, percebemos que nossas diretorias também têm essa função de fratria. É preciso herdar as conquistas que já estão consolidadas, mas manter vivas as nossas inquietações para que este espaço de interlocução e reflexão criado pela Associação se amplie e se renove a cada geração.

Ao final de nossa gestão, constatamos que foi possível caminhar enquanto enfrentávamos algumas lutas que fazem parte das reivindicações de nossos colegas, mas ainda há muitas outras aspirações a conquistar. É preciso que a AMF continue a ocupar o lugar de terceiro entre o membro filiado e a instituição (Instituto e SBPSP), mantendo sua independência, que possibilita a saída do pacto narcísico a que todos nos comprometemos, e, assim, podermos nos apropriar de nossa formação, tornando-a um processo autoral.

 

Referências

Azevedo, B. H., Peiter, C., Porto, T. da S., Rosenzvaig, A. M., Socha, A. (2013). Para que a AMF? Jornal de Psicanálise, Vol. 46, n. 84.         [ Links ]

Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 11). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)

Pontalis, J.-B. (2013). "Quando?". In J.-B. Pontalis, Antes (L. Aratangy, Trad.). Primavera.

Puget, J. & Wender, L. (1982). Analista y paciente en mundos superpuestos. Psicoanálisis, Vol. IV, n. 3, pp. 502-532.

Roussillon, R. (1988). Espaços e práticas institucionais. O quarto do despejo e o interstício. In R. Kaës (Org.), A instituição e as instituições (pp. 133-149). Casa do Psicólogo.

Socha, A., Azevedo, B. H., Leite, R. L. e Pupo Netto, S. T. (2015). AMF 45 anos - releituras. SBPSP.

Suannes, C. A. M. & Bracco, M. K. O. (2014). Da horda à comunidade psicanalítica: a função da fratria na transmissão da psicanálise. Jornal de Psicanálise, Vol. 87, n. 87.

 

 

Recebido em: 30/3/2021
Aceito em: 30/3/2021

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