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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.100 São Paulo jan./jun. 2021

 

RESENHAS

 

História de uma regra não escrita: a proscrição da homossexualidade masculina no movimento psicanalítico

 

 

Oswaldo Ferreira Leite Netto

Médico e psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / oswnetto@uol.com.br

 

 

 

Autor: Lucas Charafeddine Bulamah
Editora: Zagodoni, São Paulo, 2020
Coleção Ato Psicanalítico
Resenhado por: Oswaldo Ferreira Leite Netto, São Paulo

Há que ser lida e estudada a História de uma regra não escrita. Sobretudo por jovens, que procuram nossas instituições, referidas pela seriedade e rigor, mas que são herdeiras de problemas que vêm atravessando a história do movimento psicanalítico. Trabalho sério, de pesquisa histórica, debruça-se sobre a questão homossexual, como foi encarada desde o início por seus fundadores, Freud e seu círculo próximo em Viena. Debruçar-se sobre a questão homossexual, bem como sobre a proscrição de homossexuais na psicanálise, é contemplar a história do movimento psicanalítico desde seu início. É este trabalho que Lucas nos apresenta, fartamente documentado e contextualizado.

O livro não é um libelo contra a psicanálise, ou contra a IPA. É uma contribuição psicanalítica, porque traz aberturas, representa um desafio e um convite para que continuemos a apostar nas ferramentas legadas por Freud. Lucas expõe situações embaraçosas e constrangedoras em que muitos de nossos autores consagrados se viram envolvidos, mas nas quais também puderam refletir, reconsiderar e reposicionarem-se.

Nem sempre, nem em todos os lugares, mas situações e casos específicos atestam que houve e talvez ainda haja essa regra... agindo quem sabe de forma internalizada, inconscientemente, expressando a homofobia estrutural que existe em nossa cultura e nos meios de formação de analistas e profissionais de saúde mental. A homofobia atravessando a história da psicanálise e das instituições do início até momentos mais recentes. E isso é posto em evidência no estudo de Lucas, pela regra não escrita que proscrevia os homossexuais do acesso à formação psicanalítica.

Lucas é didático, claro, profundo e ousado. Mexe com "sacralidades", a meu ver, inadmissíveis no âmbito da psicanálise, seu ensino e difusão.

Homossexuais sempre se interessaram e se aproximaram da psicanálise, de seus praticantes e mestres, e alguns também se tornaram mestres, como Lucas nos conta em seu estudo. As vicissitudes da psicanálise na América do Norte são muito bem apresentadas e vinculam-se às questões ligadas à patologização da homossexualidade e a propostas terapêuticas que ganharam força nos Estados Unidos e se espalharam pelo mundo, num claro retrocesso para o freudismo.

A força e a presença da psiquiatria, na forma com que a psicanálise foi acolhida, apreendida e transformada, são bem analisadas e trazem importante compreensão desse assunto, essencial quando nos tornamos psicanalistas e adotamos um campo que não é médico, que é específico, peculiar, que exige um luto do olhar médico sobre o sofrimento psíquico e seu desastroso furor curandis e a medicalização irrefreada. Reforço o aspecto didático do livro; em seu apanhado histórico, os conceitos psicanalíticos sobre sexualidade são bem apresentados em sua criação e evolução, iniciando com Freud e passando por seus seguidores. E também, claro, os posicionamentos teóricos e clínicos diante da questão homossexual e da diversidade sexual.

É útil o alerta que o autor faz acerca de quão contraditória pode ser a institucionalização da psicanálise, que, em sua essência, questiona amarras e engessamentos do pensamento da autonomia e criatividade. Um ensino burocratizado, pouco livre, não forma psicanalistas, mas os formata segundo padrões que poderiam, ao invés disso, ser pensados, revistos, criticados e flexibilizados para reencontrarem a dimensão revolucionária do pensamento freudiano. O interesse para os que se candidataram à nossa formação excelente precisa ser informado de aspectos históricos nem sempre, nem todo o tempo, dignos de orgulho, para que os novos construam nossas instituições em outras bases.

E não podemos nos furtar, em nosso trabalho, de rever formulações e conceitos que possam porventura ter-se convertido em dogmas e que estejam alimentando posições moralistas, preconceituosas... patologizantes, não psicanalíticas. Como salienta Daniel Kupermann no prefácio do livro, resistências foram mobilizadas também internamente. As contribuições de Freud para o entendimento da sexualidade, as possibilidades de escuta dos profissionais instrumentalizados psicanaliticamente nessa clínica que amplia horizontes, que liberta seus pacientes das diferentes amarras e bloqueios que a vida civilizada pode providenciar individualmente, obviamente mobilizam também, como verificável no caso a caso, resistências... Ouvi no início da minha formação: tudo conspira contra a psicanálise! Desde o início Freud e sua doutrina experimentaram o estar à contracorrente.

Lucas não deixa de mencionar o grupo de estudos de psicanálise e homossexualidade que trouxe essa discussão para nossa sociedade, que adotava a política do don't ask, don't tell, como foi chamado o procedimento utilizado nas Forças Armadas americanas. Participei desse estudo motivado sobretudo por constatar em colegas muita desinformação e preconceitos sustentados em apreensões errôneas dos próprios pressupostos psicanalíticos, utilizando-os para justificar empenhos curativos, desqualificadores, atemorizados diante da diversidade e das possibilidades eróticas dos sujeitos. E, na experiência clínica, recebendo homossexuais muito prejudicados por analistas consagrados e conhecidos, incapazes de perceber de fato suas questões analisáveis. Tenho visto pacientes, mas também amigos que procuraram analistas, e não ficaram! Porque não foram acolhidos e percebidos em suas demandas... por conta da suposta perversão.

É intrínseco ao trabalho psicanalítico, e exigido de cada psicanalista, que se ponha à prova, mobilize sua coragem, abra-se à experiência do unheimlich, diante de cada caso. E "converse" com os autores, contextualizando-os historicamente. Como não questionar o machismo no próprio Freud, tão escancarado em certos escritos? Outros campos do saber, bem como outros autores fora de nosso campo psicanalítico, também questionam a psicanálise, e podemos nos enriquecer e aprender com eles, continuando psicanalistas, contribuindo com a emancipação de pessoas que nos procuram, compreendendo melhor e mais profundamente o alcance e o sentido da revolução freudiana. Que não alimenta procedimentos adaptativos, que não oferece explicações etiológicas para comportamentos que podem, por serem incomuns e diversos, impactar ou mesmo escandalizar.

Os estudos de gênero, a visibilidade dos representantes da diversidade sexual, sua aceitação pela sociedade e suas instituições não podem nos deixar em nossas instituições psicanalíticas como defensores de valores que podem ser revistos e relativizados e redimensionados.

Lucas pode ajudar os que acham justas as críticas contra a psicanálise, que se recusam a ler ou estudar Freud, por julgarem-no homofóbico e machista.

Há no trabalho de Lucas rigor e seriedade, que por vezes não são atribuídos por intelectuais aos estudos gays e lésbicos, das teorias queer... Lucas não é um militante pelos direitos das minorias, mas contribui com a psicanálise e sua transmissão. E seu livro não pode ser acusado de academicismo, de divagações para debates universitários. Ao contrário, apreciam-se nele uma escrita agradável, um pensamento claro e rigoroso, ordenado. Contribui conosco, que nos esforçamos para manter nossa escuta que pensa a singularidade de cada caso. E estamos atentos e receptivos a reinvidicações que se passam na contemporaneidade, de minorias que nos procuram e contam conosco. Muitos erros e excessos foram cometidos e são levantados e apresentados por Lucas, mas nós, com o senso crítico alertado, podemos nos fortalecer para continuar a sustentar a hipótese do inconsciente, trabalhando com nossos pacientes, ajudando-os a conhecer e se apossar de seus desejos. O autor nos mostra como Freud ainda é interlocutor destacado para os queer studies, para autores como Judith Butler, Paul B. Preciado, como o foi para Michel Foucault.

Compromisso ético com a singularidade dos sujeitos, sua emancipação e liberdade. Isto é psicanálise, e este é o compromisso dos que formam psicanalistas que não serão escolhidos por terem determinados gostos ou determinadas práticas para satisfazer seus desejos e viver seus amores. Psicanálise é revolucionária, rompe com os aspectos diagnósticos prescritivos e curativos da medicina. É subversiva. Mas, como todas as forças pulsionais de vida, pode ser detida ou atropelada por forças contrárias, estagnantes, das pulsões de morte.

Trata-se de livro de grande interesse para os praticantes da psicanálise na contemporaneidade. Portanto, o trabalho de Lucas Bulamah, psicanalista, é em defesa da psicanálise, sobretudo do que ela tem de revolucionário, subversivo.

 

 

Recebido em: 29/3/2021
Aceito em: 5/4/2021

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