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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo jul./dez. 2021

 

EDITORIAL

 

A potência da diferença

 

 

Berta Hoffmann Azevedo

Editora / bertaazevedo@hotmail.com

 

 

Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto
porque a manhã vai chegar.
(thiago de mello)

O verso de Thiago de Mello, escrito em 1965, no contexto da ditadura militar brasileira, inspirou o título da 34.ª Bienal de São Paulo, revelando um momento que, como aquele, exige um trabalho da esperança em face de uma força de desqualificação do diferente e a busca por um purismo monolítico e arbitrário.

A diferença como potência é uma aposta que contém um proposta. É uma aposta, pois só se sustenta animada por uma ética - sempre ameaçada de vacilar - de reconhecimento do conflito não apenas como inevitável, mas também como desejável. E contém uma proposta, pois visa devolver à alteridade sua capacidade de nos alterar.

A motivação de lançar o tema como pauta parte da constatação dos fracassos e hesitações nessa direção, que caminham para uma tendência sociocultural de apagamento das condições para o diálogo e o verdadeiro debate, resvalando para uma perspectiva que reduz o outro a um desvio a ser expurgado e combatido.

A psicanálise tem algo a contribuir para a superação desses impasses, e tornar essa contribuição pensável também pode incidir sobre os impasses instalados nela própria e em suas instituições.

O que é a relação analítica se não uma aposta na introdução de alguma diferença? Uma diferença que opere uma ruptura da repetição. O fundamento da escuta está precisamente na polissemia e na possibilidade de que um outro seja capaz de instaurar um novo sentido num mesmo som e, nesse ato, permitir uma abertura. A não coincidência é o que põe em movimento o pensamento e é capaz de uma tensão produtiva que protege a psicanálise e os psicanalistas da tão perigosa estagnação.

O movimento de diálogo é a prova viva dessa transformação permitida quando a diferença pode resultar em pensamento, reflexão e avanço. Quando o desencontro pode tornar-se espaço de criação e um motor de novas respostas, condição apenas possível se do outro pode ser suposto o aporte de algo de valor ainda não considerado. E tal movimento fica impossibilitado quando o Eu está ameaçado, quando a abertura para o outro faz estremecer o investimento próprio, e a diferença precisa converter-se em obstinação. É como se uma integridade precisasse ser protegida e uma totalização simplificadora do Eu e do outro resultasse na paralisia necessária a uma frágil afirmação.

Na clínica e na cultura não faltam provas do enrijecimento defensivo que torna surda qualquer tentativa de penetração de uma ideia dissonante, resultando na criação de pequenos ou grandes bolsões paralelos em que, à imagem dos algoritmos das redes sociais, ficamos encerrados na confirmação do mesmo. Assim, nossas ideias ficam protegidas dos contrapontos e das interrogações capazes de transformá-las. Diante do trabalho exigido pela diferença, diversas respostas são possíveis, incluindo a rejeição, a alucinação negativa ou a transformação de tudo em mesmo, numa subtração das nuances matizadoras.

Para que a psicanálise possa seguir vitalizada, ela não pode ficar protegida em um bolsão de iguais, pouco provocada e impermeável à ação do tempo e das vozes que chegam dos mais distintos lugares.

O Jornal de Psicanálise vem buscando contribuir com essa abertura inter e intrainstitucional não apenas com a introdução das seções Diálogos e Conexões, como também na tentativa de resgate da potência da diferença por meio da escolha do tema. O leitor pode acompanhar os desdobramentos dessa proposta nas seções Temática, Diálogos, Conexões, Entrevistas, Associação dos Membros Filiados e História da Psicanálise.

A seção Conexões enriquece a temática dessa vez até mesmo pela forma: conta com uma charge desenvolvida pelo cartunista Custódio. O quadro - como é de costume nesse gênero de ilustração - é capaz de condensar muito em pouco, numa crítica aguda aos impedimentos dialógicos.

O número 101 faz a reintrodução da seção Entrevistas, nessa ocasião realizada com as sociedades SBPRJ e SBPdePA, pioneiras no âmbito da Febrapsi na promoção de ações afirmativas para a entrada de negros e indígenas em seus institutos de formação. Essas ações, para além das motivações políticas envolvendo o reconhecimento de um apagamento ativo dessas vozes (como bem indicado por Maria José Tavares Irmã no artigo "Vozes negras"), são capazes de trazer maior diversidade às instituições psicanalíticas, o que tende a contribuir com aqueles que ingressam e com a instituição em si - a qual se torna mais sensível às novas perspectivas de escuta e vivências e, quem sabe, apta à ampliação do pensamento psicanalítico em novas direções. O acompanhamento reflexivo dessas experiências institucionais de implementação de medidas inclusivas pode oferecer modelo para outros institutos de formação que, também inquietados com o assunto, estejam discutindo formas de sua implantação.

Ao publicarmos, na seção História da Psicanálise, a transcrição da homenagem à colega Melanie Farkas, falecida em 2021 e figura de papel central na introdução do trabalho de cultura e comunidade na SBPSP, também reafirmamos a potência da diferença. Seu legado aparece na força que as ações da Diretoria de Atendimento à Comunidade da SBPSP (DAC) vêm ganhando ao longo dos anos, e na marca desses trabalhos como promotores de transformações bilaterais: nas comunidades em que os projetos se realizam e na própria psicanálise praticada pelos psicanalistas que se expõem aos novos repertórios apresentados. Nesse vaivém entre o conhecido e o diferente, entre o inovador e o conservador, entre o que se transmite e o que se aprende, se constrói um interessante jogo de forças trabalhando na psicanálise e em nossa instituição.

Boa leitura a todos!

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