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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo July/Dec. 2021

 

CARTA-CONVITE

 

Carta-convite

 

 

Berta Hoffmann AzevedoI; Ricardo Trapé TrincaII; Abigail BetbedéIII; Cibele Amaro Pires RaysIII; Claudia Amaral Mello SuannesIII; Denise Salomão GoldfajnIII; Gizela TurkiewiczIII; Helena Cunha Di CieroIII; Ludmila Y. Mafra FrateschiIII; Luiz Moreno Guimarães ReinoIII

IEditora
IIEditor associado
IIIEquipe editorial

 

 

A potência da diferença

Em um gelado dia de inverno os membros da sociedade de porcos-espinhos se juntaram para obter calor e não morrer de frio. Mas logo sentiram os espinhos dos outros e tiveram de tomar distância. Quando a necessidade de aquecerem-se os fez voltar a juntar-se, repetiu-se aquele segundo mal, e assim se viram levados e trazidos entre ambas as desgraças, até que encontraram um distanciamento moderado que lhes permitia passar o melhor possível. (Schopenhauer,1851/2009, p. 665)

Publicada originalmente em Parerga e paralipomena ii, a parábola do porco-espinho é bem conhecida dos leitores de Freud, que a citou na íntegra em uma nota de rodapé de Psicologia das massas e análise do Eu (1911/1921). Nela há tanto em tão pouco, que a parábola em si se torna uma criação artística quase autoexplicativa. Mas, ao nos determos sobre ela, notamos desenharem-se, de imediato, dois impossíveis: o frio e o espinho, como polaridades inconciliáveis. Impossibilidade de sobreviver distante do outro e simultânea impossibilidade de viver próximo. O frio, o anunciador da morte, nos impele em direção aos outros; o espinho, o convívio com quem aquece, nos repele uns dos outros. E o ser humano - porco-espinho que é - vive entre esses dois males: ou só e com frio, ou com o outro e seu espinho.

Não seriam os espinhos justamente o início de uma fronteira? Marcas de uma diferença, de uma especificidade do outro que se põe como obstáculo defensivo para uma possível invasão, assimilação ou indiscriminação? Nesse sentido, mais do que investigar a difícil tarefa de suportar a especificidade do outro, interessa-nos marcar a diferença como potência, como pré-condição para a criação de um coletivo.

O outro é descoberto no ódio, nos ensina Freud em 1915. Os efeitos dessa constituição primariamente paranoica do Eu se fazem ouvir agudamente em circunstâncias de ameaça a ele, quando os riscos de movimentos defensivos na direção da eliminação do diferente alcançam seu ápice. A dimensão dessa intuição pode ser vista tanto na clínica, como em fenômenos sociais e coletivos: na intolerância ao convívio com o diferente, nas experiências sociopolíticas que apontam para radicalismos, nos discursos de ódio ao estrangeiro, nos movimentos xenofóbicos das identidades nacionalistas, nas posições absolutas não abertas ao contraponto. Quando, para escapar ao trabalho de conflito, elimina-se o diferente, nos aproximamos de regimes e de sistemas autoritários. O estrangeiro desacomoda dogmas, confronta certezas, ameaça a integridade do Eu. Mas ele também amplia possibilidades, expandindo o mundo nas regiões e aberturas que apresenta.

A ilusão de homogeinização unificada, do eu e do outro, tende a favorecer polarizações defensivas capazes de desfazer complexidades, heterogeneidades e, portanto, o trabalho psíquico com o conflito. Esse movimento, especialmente evidente nas formações dos grupos, pode ser capaz de criar diferenças aparentemente intransponíveis, impeditivas de diálogo, e suporte para o pulsional destrutivo:

É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de agressividade. Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em rixas constantes, ridicularizando umas às outras, como os espanhóis e os portugueses, por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e os escoceses, e assim por diante. Dei a esse fenômeno o nome de narcisismo das pequenas diferenças... (Freud, 1930/2010b, p. 81)

Mas nem toda diferença se revela fonte de rechaço. Nem todo distanciamento garante a manutenção da vida. Lidar com a tendência sempre à espreita de sucumbir ao narcisismo das pequenas diferenças ou à busca por eliminar o diferente numa lógica do eu prazer purificado, é parte do trabalho da cultura.

Como exemplo cultural evocamos a década de 1920, especialmente em Paris, que, como outras cidades do mundo, viveu uma época que ficou conhecida como années folles (anos loucos), marcada pela celebração da vida, após anos de intenso sofrimento social, causado pela gripe espanhola, que vitimou cerca de 40 milhões de pessoas, e a Primeira Guerra Mundial. Esse período nefasto antecedeu um despertar de enorme pujança econômica e cultural. Nos années folles, cerca de 3 milhões de imigrantes ingressam na França, tornando-a um epicentro de produção artística e intelectual. A alteridade, como um caldeirão de cultura, faz fervilhar a potência de diferenças que foram progressivamente incorporadas na cultura francesa da época.

A alteridade, também traumática, participa da constituição subjetiva e introduz a noção de diferença no coração do conflito, seja ele intrapsíquico ou intersubjetivo. O homem psicanalítico é, incontornavelmente, dividido, palimpséstico e múltiplo. Podemos dizer assim que, desde seu início, a ideia freudiana de inconsciente inclui a noção de uma alteridade (potente) que produz efeitos significativos sobre a consciência e o comportamento. A tarefa psicanalítica compreende a possibilidade de transformar conflitos em potências, e potências em ações frutíferas.

Encontramos tanto em Edgar Morin - que desenvolve a ideia de pensamento complexo, ao fazer uma crítica às simplificações totalizantes, com suas proposições que impactaram a psicanálise contemporânea, e que apontam para a importância de articular elementos muitas vezes postos como pares de opostos - como em Emmanuel Lévinas - que mostra como a radical alteridade exige um trabalho de esforço e, portanto, de sofrimento para a assimilação completa ao já conhecido - formas distintas de trabalho com a alteridade que podem ser aproveitadas pela psicanálise. O termo visitação, de Lévinas, tem justamente esse significado, ou seja, de passagem do outro em sua alteridade.

A psicanálise, em sua disposição para a escuta, também exige uma condição de descentramento para a abertura ao que não lhe é idêntico, à escuta de um outro universo sem o risco de reduzi-lo ao conhecido, tal como apontam as noções de desejo do analista em Lacan, ou as recomendações de um analista sem memória, desejo e compreensão, em Bion.

Os conflitos político-institucionais - incluindo aqueles dentro das instituições psicanalíticas, como nos mostra a história do movimento psicanalítico - dão provas de que o convívio com o diferente não configura tarefa fácil. Como assumir a hipótese da potência do conflito e da tensão produtiva na clínica e também em nossos grupos institucionais? O que determina que o conflito deixe de ser produtivo?

Como considerar as diferentes facetas que experimentamos nas sustentações transferenciais ou a capacidade negativa necessária para a abertura ao que não lhe é idêntico? Como dar potência à multiplicidade de tendências teórico-clínicas que, convivendo entre si, exigem mutuamente esforços de desenvolvimento? Qual a importância da troca interinstitucional e da pluralidade de psicanalistas com características e vivências diferentes para o surgimento de novas perguntas e a ampliação de novos recortes de escuta?

Propomos pensar a diferença como potência nos desdobramentos na clínica e na cultura, e como essa aposta comparece na escuta e na ética psicanalíticas. Para tanto, convidamos os autores a escreverem suas reflexões em torno do tema "A potência da diferença", em artigos a serem encaminhados para avaliação até a data-limite de 16/08/2021. Lembramos que também serão aceitos artigos não temáticos e que as normas para publicação encontram-se ao final de cada número do Jornal ou em normas-portugues.pdf (sbpsp.org.br).

 

Referências

Freud, S. (2010a). Os instintos e seus destinos. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 12). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (2010b). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 18). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 15). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

Lévinas, E. (1993). Humanismo do outro homem. Vozes.         [ Links ]

Morin, E. (2015). Introdução ao pensamento complexo. Sulina (Trabalho original publicado em 2005)        [ Links ]

Schopenhauer, A. (2009). Parerga y paralipómena ii (P. L. de Santa María, Trad.). Trotta. (Trabalho original publicado em 1851)        [ Links ]

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