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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo jul./dez. 2021

 

A POTÊNCIA DA DIFERENÇA

 

Arrancando os olhos: reflexões sobre negacionismo

 

Gouging out the eyes: reflections on denialism

 

Arrancando los ojos: reflexiones sobre el negacionismo

 

Crever les yeux : réflexions sur le negationnisme

 

 

Roosevelt M. S. Cassorla

Membro efetivo das Sociedades Brasileiras de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e de Campinas (SBPCAMP). Professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP) - Campinas / roocassorla@gmail.com

 

 


RESUMO

O texto visa estudar o negacionismo do ponto de vista psicanalítico. Inicialmente se estudam personagens míticos propondo-se que Liríope, Édipo e Jocasta "fizeram vista grossa" para a realidade. Em seguida são discutidas situações clínicas em que os pacientes deformam a percepção da realidade atacando seu aparelho de percepção, em particular a visão. O estudo clínico se articula com a abordagem do negacionismo social. Propõe-se que, nessas situações, aquilo que se nega é substituído por uma nova realidade baseada em narrativas mentirosas que buscam recuperar mitos ancestrais idealizados. São discutidos também aspectos da formação analítica. O trabalho é concluído alertando-se para o risco de negar os perigos representados pelo negacionismo fanático.

Palavras-chave: negacionismo, negação, recusa, visão, formação psicanalítica


ABSTRACT

The text aims to study denialism from the psychoanalytic point of view. Initially it is studied mythical characters proposing that Liriope, Oedipus and Jocasta "turn a blind eye" to reality. Next, clinical situations are discussed in which patients deform the perception of reality by attacking their perception apparatus, in particular vision. The clinical study is articulated with the approach of social denialism. It is proposed that situations what are denied are replaced by new realities based on lying narratives that seek to recover idealized ancestral myths. Aspects of the analytic training are also discussed. The work is completed by warning of the risk of denying the dangers posed by the fanatical denialist.

Keywords: denialism, denial, disavowal, vision, psychoanalyst training


RESUMEN

El texto tiene como objetivo estudiar el negacionismo desde un punto de vista psicoanalítico. Inicialmente se estudian personajes míticos, proponiendo que Liríope, Edipo y Yocasta "hacían la vista gorda" a la realidad. A continuación, se discuten situaciones clínicas en las que los pacientes deforman su percepción de la realidad atacando su aparato de percepción, en particular su visión. El estudio clínico se articula con el enfoque del negacionismo social. Se propone que, en estas situaciones, lo negado es reemplazado por una nueva realidad basada en narrativas mentirosas que buscan recuperar mitos ancestrales idealizados. También se discuten aspectos de la formación analítica. El trabajo se concluye alertando sobre el riesgo de negar los peligros que plantea el negacionismo fanático.

Palabras clave: negacionismo, negación, desmentida, visión, formación psicoanalítica


RÉSUMÉ

Le texte vise à étudier le négationnisme d'un point de vue psychanalytique. Dans un premier temps, des personnages mythiques sont étudiés, proposant que Liríope, Odipe et Jocaste « ont fermé les yeux » sur la réalité. Ensuite, des situations cliniques sont discutées dans lesquelles des patients déforment leur perception de la réalité en attaquant leur appareil de perception, en particulier leur vision. L'étude clinique s'articule avec l'approche du negationnisme social. Il est proposé que, dans ces situations, ce qui est nié soit remplacé par une nouvelle réalité basée sur des récits mensongers qui cherchent à récupérer des mythes ancestraux idéalisés. Les aspects de la formation analytique sont également abordés. L'ouvrage se termine en alertant sur le risque de nier les dangers du déni fanatique.

Mots-clés: negationnisme, négation, déni, vision, formation psychanalytique


 

 

O bebê se conhece no olhar da mãe. Esta intuição winnicottiana nos mostra a importância do aparelho visual. A percepção do rosto da mãe por parte do bebê inclui outros órgãos sensoriais tais como audição, olfato, tato, além de importantes capacidades, menos conhecidas, que captam os afetos.

Existem, no entanto, situações em que a visão, o ver, se transforma em um problema. O conhecimento psicanalítico se iniciou justamente quando Freud descobriu que suas pacientes histéricas não queriam ver, isto é, entrar em contato com os afetos e lembranças decorrentes de supostas seduções realizadas por adultos próximos. Posteriormente Freud verificou que esses fatos podiam ser apenas fantasias, que eram reprimidas e substituídas por outras fantasias negacionistas em forma de sintomas e falsas lembranças.

O termo negacionista surge propositalmente neste texto pois foi ele que estimulou sua escrita. Iniciaremos sua investigação pelo estudo de mitos.

Em seguida, nos debruçaremos sobre a clínica. Ambos os aspectos nos auxiliarão na formulação de hipóteses sobre o negacionismo na sociedade.

 

Narciso: não ver si-mesmo

Sabemos que a ninfa Liríope engravidou após ter sido violentada pelo rio Céfiso. A beleza de seu bebê, Narciso, era tão grande que Liríope ficou preocupada. Havia o perigo do excesso, condenado pela cultura grega. Liríope consulta Tirésias, o adivinho cego. Ele vaticina que Narciso morrerá se se olhar.

Proponho que este era o desejo de Liríope: que Narciso não se visse. Que seu filho se visse apenas nela, assim como ela se via nele. Que ambos fossem Um, como antes de Narciso nascer. Como consequência Narciso não constitui mente própria e se torna inapto para viver na realidade, onde self e objeto estão discriminados. Os objetos serão espelhos, um prolongamento de seu self.

Narciso desperta paixões que, orgulhoso, não considera. Ele não precisa do outro, se sente autossuficiente. Em determinado momento encontra a ninfa Eco, que estava condenada a repetir os últimos sons que ouvia. Era um castigo por distrair Hera, contando-lhe histórias enquanto o marido, o poderoso Zeus, a traía com jovens mortais. O castigo de Eco era refletir o outro.

Narciso não vê Eco, apenas um reflexo. Imagino que, em um tênue momento de acesso à triangularidade, percebe-a como um ser diferente. Sente-se aterrorizado e diz que prefere morrer a ceder ao amor da ninfa. Instantaneamente retoma a organização narcísica, que já é uma espécie de morte em vida.

Agora Narciso se aproxima de uma lagoa. Olhando para a água, vê um belo rapaz, de quem se enamora. Após um jogo de sedução, Narciso se atira na água em busca do amante e morre afogado. Trata-se de um suicídio como fusão com o objeto idealizado. Um parto ao contrário (Cassorla, 2019b).

A dialética ver/não ver faz parte do mito. "Ver" implica entrar em contato com a triangularidade, com o mundo da realidade - tanto gratificante como frustrante. "Não ver" se vincula a "não dar à luz", em constituir uma simbiose indiscriminada com o objeto primário. Estamos no Paraíso, em que antes que surja qualquer necessidade ela já foi satisfeita. "Ver a luz", nascer, é cair no Inferno onde o terror de aniquilamento está sempre presente.

O modelo das pulsões de vida e de morte se impõe. Enquanto Narciso prefere manter-se emocionalmente morto (fugindo da vida ameaçadora), adiante veremos Édipo se digladiando com as vicissitudes de sentir-se vivo.

 

Tirésias

Conta-se que o jovem Tirésias viu duas serpentes copulando e matou a fêmea. Por esse motivo foi transformado em mulher. Anos depois, teve a mesma percepção e matou o macho. Tornou-se homem.

Hera, enciumada das traições de Zeus, o defronta com sua infidelidade. Este argumenta que a mulher tem mais prazer sexual que o homem. Hera, inconformada, manda chamar Tirésias, que havia sido homem e mulher. Este confirma Zeus dizendo que o prazer da mulher é 9 vezes maior que o do homem (Brandão, 1991).

Hera, embravecida, pune Tirésias com a cegueira. Podemos supor que Hera - como objeto interno - castiga pela curiosidade e ataques ciumentos e invejosos à cena primária, representada tanto pelas serpentes como pelo casal divino.

Trata-se do mesmo dilema visto anteriormente: os perigos da discriminação, agora entre o bebê e a dupla parental. A solução (também punição) é perder o órgão excitantemente curioso e invejoso. Na Bíblia encontramos: "Se um dos teus olhos te faz pecar, arranca-o, e lança-o fora de ti..." (Mateus 18,9). Para não perder os olhos podemos fingir que nada vemos. Talvez acreditemos que demos à luz nós mesmos.

O final da história nos leva a outra direção. Pois Zeus, para compensar o castigo de Hera, dá a Tirésias a capacidade adivinhatória. A perda da capacidade de ver a realidade material é compensada com o olhar para dentro, "ver" aquilo que não é visível. Freud nos alertará que o psicanalista deve cegar-se para melhor poder ver a luz (carta a Lou Andreas Salomé) (Bion, 1970). O ofuscamento pela realidade material compromete a capacidade de "in-tuir", ver dentro.

O paciente concreto, voltado para a realidade material, se cega para as nuances das emoções devido ao déficit da função simbólica. Vê demais porque não pode ver.

 

Jocasta e Édipo

Se Narciso não vê para evitar o contato com a triangularidade, Jocasta e Édipo tentam escapar dela. O leitor cuidadoso se dá conta de que Jocasta "fecha os olhos" para as evidências de que Édipo é seu filho e que ele matou Laio (Cassorla, 1993; Steiner, 1985).

Jocasta quer ter, de novo, seu filho dentro dela, como antes de ter "dado à luz". Não só consegue como tem quatro filhos que serão também irmãos de Édipo. Suponho que Jocasta adora estar grávida, fusionada com seus bebês.

Mãe e filho haviam criado outra realidade em relação a origens e negavam fantasias homicidas e incestuosas. Édipo constituiu uma espécie de delírio ainda que se defrontasse, constantemente, com evidências que o deixavam confuso e frente às quais tinha novamente que cegar-se. Propus, em outro texto, que a peste revelava a loucura que não conseguiu ser mantida encistada quando Édipo atingiu a mesma idade em que Laio foi morto (Cassorla, 2017b).

Quando se torna impossível negar a verdade Jocasta se mata. Édipo arranca os broches das roupas da mãe/esposa e fura seus olhos, os olhos que viram, mas não queriam ver. Cego como Tirésias, também se tornou sábio.

A complementaridade entre Narciso e Édipo e a cegueira existente em ambas as configurações emocionais nos fazem lembrar que em todo ser humano encontramos um Narciso que deseja continuar Narciso; um Narciso transformando-se em Édipo que, assustado com a triangularidade, tenta voltar a ser Narciso; um Édipo que vive na triangularidade, mas sente medo e tem saudades de ser Narciso; um Narciso que anseia por ser Édipo, mas se assusta com isso; e assim por diante. Essas posições oscilam, e isso faz parte da vida.

As configurações se tornam confusas enquanto não há elaboração adequada. Estamos diante do dilema hamletiano: "Ser ou não ser, eis a questão". Ser é viver na realidade, em que existem frustração, ciúme, inveja, sexo e impulsos assassinos. Ser é Édipo. Não ser é a não vida narcísica. Viver (na triangularidade edípica) ou morrer (o suicídio narcísico), eis a questão.

 

"Nunca vi esses homens..."

Quando Sílvia entrou na sala, com sua mãe a tiracolo, sua calma estranha se contrapôs ao meu cansaço, despertando-me curiosidade. Era mais um paciente que atendia no Ambulatório e sabia que havia outros. A mãe me conta que ela perdeu a memória, não se lembra do que ocorreu nos últimos dias e não reconhece seu pai e irmãos. Sílvia olhava para o nada, como se não estivesse ali. No entanto, tinha a sensação de que ela me esquadrinhava. Antes de sair da sala a mãe se lembrou: ela não reconhece nem o namorado.

Em seguida Sílvia confirma o relato da mãe. Um dia acordou e percebeu que estava morando em uma casa com estranhos. Sua mãe - que ela reconhecia - lhe "apresentou" seu pai, o tio e seus dois irmãos. Um rapaz desconhecido a havia visitado e a mãe lhe disse que era seu namorado.

Sílvia falava sem qualquer emoção, ou melhor, ao tentar mostrar alguma era evidente que o esforço era falso. A emoção era minha por me ver frente a uma dissociação histérica "de livro". Logo se impôs um fato: todas as pessoas "estranhas" eram homens.

Na consulta seguinte me disse que nada havia mudado. Seu namorado tentava fazê-la lembrar-se de episódios que haviam vivido juntos, mas ela não tinha a menor ideia do que ele dizia. Contou-me que era um rapaz bonito e se sentia contente com a preocupação dele com ela. Percebo-a sedutora.

Na terceira consulta me conta que, graças ao namorado, se lembrou de alguns fatos ocorridos na véspera de seu esquecimento. Os dois haviam ido a uma festa. Lembra-se da intensidade do som e da luz. Conta que essas percepções a atormentam, dentro de sua mente, desde que se lembrou delas. Enquanto me conta, já associando livremente, me diz - sem qualquer emoção - que seu namorado lhe contou que haviam transado, pela primeira vez. Não se lembra, mas admite a possibilidade.

Durante as semanas subsequentes Sílvia passa a reconhecer o pai e os demais homens da casa, retoma o namoro, mas não quer ter relações sexuais e tem dúvidas se a relação sexual esquecida realmente ocorreu. Não quer contar para a mãe e teria horror de consultar uma ginecologista. No entanto, Sílvia parece muito à vontade em contar-me tudo isso.

Aproveito a vinheta para discutir os ataques à percepção da realidade, que já vimos nos personagens míticos. A alucinação negativa de Sílvia não se dirigia apenas aos objetos, mas ao que eles - traumaticamente - despertavam. Estamos frente ao que Freud (1925/1976d) descreveu como Negação (Verneinung). "Este não é meu namorado - é um estranho" revela a necessidade de expelir algo mau - juízo de atribuição - que, em seguida, deixa de existir. O namorado e os homens não reconhecidos são, por condensações e deslocamentos, representantes da relação sexual traumática que, por sua vez, através de uma complexa rede de significantes retroagiria a traumas edípicos vinculados a traumas primitivos.

Podemos dizer que Sílvia ataca o funcionamento de seu órgão visual e fica "cega" para aspectos da realidade. O termo escotomização foi também utilizado por Freud. Em outro texto (Cassorla, 1993) usei a expressão "fazer vista grossa" como tradução do inglês "turn a blind eye", usada por Steiner (1985). Esta frase teria origem na lenda de que Lord Nelson, no cerco de Copenhagen (1801), recebeu ordens para recuar, mas fingiu não ver os sinais, colocando sua luneta no olho que havia perdido em uma batalha anterior.

Em O fetichismo, Freud (1927/1976b) avança no estudo desses fenômenos estudando a Recusa (Verleugnung). Ele se refere ao ataque à percepção da falta do órgão masculino na mulher, assunto que vai derivar para o amplo tema da castração. O trauma do contato com a falta faz com que o ego se cinda: uma parte aceita a castração e outra a recobre com uma realidade criada pelo indivíduo. Essa neorrealidade se chama fetiche. Freud propõe que o fetiche se forma a partir das percepções anteriores e posteriores ao evento traumático.

A instauração de um fetiche parece antes obedecer a um processo que lembra a detenção da memória na amnésia traumática. De modo semelhante, ... a última impressão antes do que foi traumático, inquietante, seria conservada como fetiche. Assim, o pé ou o sapato deve sua preferência como fetiche - ou parte dela - à circunstância de que a curiosidade do menino olhou a partir de baixo, a partir das pernas, para o órgão genital da mulher; veludos e peles - como há muito se presumia - fixam a visão dos pelos púbicos, à qual seguiria a ansiada visão do membro feminino; as peças íntimas de roupa, tão frequentemente tomadas como fetiche, retêm o instante do desnudamento, no qual ainda se podia imaginar a mulher como fálica. (Freud, 1927/1976b, p. 247)

Com Sílvia podemos considerar o som da festa como uma espécie de fetiche. O não reconhecimento do sexo masculino fazia com que não reconhecesse que existiam dois sexos. A não existência de homens impediria que ela se desse conta de sua incompletude. Incompletude ainda mais traumática por ter descoberto que o pai e os irmãos (e por deslocamento todos os demais homens) eram tabus.

 

O mau-olhado

José, após 3 anos de análise, me surpreende contando que quando criança um professor havia solicitado que todos os alunos contassem sobre a profissão do pai. Meu paciente, que era órfão, disse que ele era piloto de avião. Após a aula condenou-se pela mentira e, no dia seguinte, envergonhado procurou o professor e lhe contou a verdade. Felizmente o professor apenas corrigiu a informação em suas anotações sem qualquer comentário. Era evidente que, em uma parte de sua mente, José mantinha seu pai vivo e entre os possíveis fatores descobrimos a vergonha de sentir-se inferiorizado e o ódio por seu pai tê-lo abandonado.

Soube, tempos depois, que o paciente havia ouvido - no passado - que uma pessoa havia levitado, como metáfora de ter morrido, e ido para o Céu. Instantaneamente associou essa palavra a voar. Não foi difícil conectar essa lembrança com sua fascinação por aviões, associada ao terror de morrer em um acidente aéreo. Ficou também evidente que o sofrimento do paciente era acentuado pela inveja dos coleguinhas que tinham pai vivo.

Já Alice, uma paciente mitomaníaca encaminhada para laudo psiquiátrico, ficava "cega" frente a determinadas pessoas. O estudo cuidadoso mostrou que ela deixava de ver somente algumas pessoas. Logo ficou evidente que seus gestos e "não olhares" revelavam componentes depreciativos invejosos. Era capaz de saudar várias pessoas de um grupo e pular aquela que "não via". Ao mesmo tempo que difamava essas pessoas, transformava-se em outra quando precisava de algo da pessoa desprezada. Esta voltava a ser "vista". Uma vez conseguido seu intento a pessoa era novamente "não vista". O estudo detalhado mostrou a relação entre o "não ver" os outros e "não ver" sua parte invejosa que, por sua vez, se associava à identificação desses "outros" com objetos arcaicos. A aparente dissociação histérica era acompanhada por componentes perversos.

O leitor deve lembrar-se de situações sociais desse tipo, principalmente na infância e adolescência, em que pessoas são consideradas "não existentes", passando-se ao largo delas como se não existissem. No entanto, era evidente que elas existiam em forma incomodativa por provocarem raiva e inveja. Pessoas infantilizadas usam os mesmos mecanismos quando adultas e se percebe seu "olhar torto", isto é, seu conflito entre ver e não ver o objeto invejado.

O medo do "mau-olhado" indica a percepção do perigo que o ódio dessas pessoas representa. O "olho gordo" revela a voracidade invejosa em que o olhar vê (e procura não ver) muito mais do que realmente existe. A etimologia de inveja ("in-vidia") indica penetrar com os olhos em forma malvada.

 

Cegueira e vista grossa

Richard, 38 anos, foi encaminhado por seu oftalmologista devido a uma progressiva diminuição da acuidade visual. A despeito de sofrer de uma retinopatia, o médico pensava que existia um fator emocional em sua doença. Logo após a queixa inicial me conta, espontaneamente, a data exata de morte de seu pai, dia do mês e ano. Essa informação me impacta, sem que eu saiba precisamente o motivo. Posteriormente me daria conta de que, nesse momento, estava sendo recrutado a participar de uma complexa trama de mistério e terror que tomaria o campo analítico por muitos anos.

O enigma que nos desafiava era aparentemente simples: o pai de Richard havia sido assassinado ou cometera suicídio? O relato de uma cena, de grande impacto visual, foi repetido dezenas de vezes, sem alterações. Nela há um lago e um barco a remo na margem. É um local deserto. O pai de Richard se encontra dentro do barco, ferido, ensanguentado. Richard, com 14 anos de idade, observa a cena de cima de um morro, a uns 300 metros de distância. Está paralisado. Ao lado, mas em nível inferior, há uma dezena de pessoas, também paralisadas, apenas olhando. Ninguém faz nada. Alguém foi chamar o médico numa cidade próxima, mas este não chega. Passam duas a três horas. Todos sabem que o pai está ferido, talvez morto, mas a cena é estática. Ninguém se mexe.

O relato da cena é acompanhado de intenso choro entremeado por soluços que se transformam em gritos desesperados. Richard bate em seu corpo, arranha o rosto, puxa os cabelos, levanta-se do divã e volta a deitar-se. Minha sensação é que não se trata apenas de uma lembrança, mas de uma alucinação terrífica que está sendo vivida no aqui e agora.

Sinto-me impactado pelo contraste entre a agitação do paciente e a paralisia da cena. Imagino os personagens como mortos-vivos, tanto o pai ensanguentado como os observadores paralisados. O desespero de Richard me lembra rituais de luto de certas culturas em que mulheres gritam e rasgam suas vestes. Minha impressão era de que Richard havia ficado paralisado justamente para evitar sentir esses afetos.

Ao escrever uma sessão, me passou pela cabeça a tela de Goya, Os fuzilamentos de 3 de Maio [1808]. Ao revê-la me surpreendi ao ver que, no quadro, existiam pessoas que tampavam seus olhos para não ver as cenas de sangue e de morte.

 

 

Exatamente um ano após a morte do pai, Richard perdeu quase toda a visão de um dos olhos. Há 10 anos teve um descolamento de retina do outro olho que foi salvo por uma cirurgia de emergência. Logo percebo que os dois episódios poderiam ser considerados Reações de Aniversário (Cassorla, 1986). A data da entrevista comigo também, pois estava ocorrendo 24 anos após a morte do pai, próximo à data. Essas hipóteses foram confirmadas durante a análise, quando outros eventos surgiam em datas próximas.

A análise de Richard me desafiou como analista. Os fatos relatados e vivenciados no campo analítico me estimulavam interpretações óbvias sobre situações edípicas que se repetiam compulsivamente.

O primeiro exercício que o analista vai ter que efetuar é tentar deixar entre parêntesis a teoria do complexo de Édipo, que lhe vem à mente imediatamente. Isso não é fácil, pois tudo se encaixa tão bem... Em outras palavras, o analista tem que cegar-se contra o excesso de luz... Intuía que conversar sobre fantasias homicidas em relação ao pai apenas aumentaria seu desespero. Percebi que minha principal função era acompanhar detalhadamente seus estados emocionais dando-lhe significados pontuais, principalmente no aqui e agora da sessão. Interpretações transferenciais não cabiam enquanto não se constituísse uma rede simbólica capaz de dar significado a seus terríveis sentimentos.

Após algum tempo me dei conta de que suas fantasias homicidas eram evidentes também para ele, o que estimulou minha aproximação a elas. Surgem lembranças e narrativas que levam em direção a fortes hipóteses sobre seus sentimentos, percepções e lembranças, mas Richard nada discerne. A despeito de sua inteligência, parecia um deficiente mental, ou... um cego. Nessa época ainda não conhecia o termo to turn a blind eye, mas me era evidente que ele não queria enxergar nada que lhe provocasse dor. Às vezes eu tentava assinalar algo que era por demais claro: Richard não ouvia, não entendia e se eu insistisse se tornava violento.

O negacionismo de Richard foi acompanhado pela criação de uma nova realidade delirante. Havia cortado relações com todos os parentes: achava que eles eram os responsáveis pela morte de seu pai. Uns porque lhe haviam dado desgosto, outros porque teriam tramado sua morte, para ficarem com a herança. Convencera sua mulher e filhos e a família vivia isolada, ruminando ódio e vingança. As cisões e identificações projetivas eram intensas, os objetos persecutórios se generalizavam e o esvaziamento levava a sentimentos de despersonalização. Logo passei a defrontar-me com um paciente predominantemente psicótico durante as sessões: aterrorizado, sem capacidade de formular pensamentos com clareza, com sua capacidade de contato com a realidade prejudicada. Fazer vista grossa se articulava com curiosidade, estupidez e arrogância, a tríade psicótica descrita por Bion (1958). A estupidez era o que mais chamava a atenção.

A descrição teve como objetivo mostrar uma forma clínica de negacionismo em que o paciente parece mentir para si mesmo. O tema mentira será abordado em sequência. O leitor curioso encontrará dados sobre o processo analítico com Richard em outro trabalho (Cassorla, 1993).

 

Mentiras e negacionismo

Todos os personagens estudados mentiam para si mesmos e, alguns, para os outros. O mentiroso consciente deve conhecer a verdade para cobri-la com mentiras. Logo, sua capacidade de simbolizar é sofisticada. Além disso, o mentiroso tem o trabalho de fazer com que a mentira tenha certa congruência com a verdade para que seja convincente (Bion, 1970; Meltzer, 1983).

Diferenciamos mentira de falsidade. Esta se refere a um erro de percepção ou juízo. Por exemplo, o Sol se pondo no horizonte leva à falsa ideia de que gira em torno da Terra. O Inquisidor, que sabe que a Terra gira em torno do Sol, mente quando condena Galileu.

O paciente, cujas defesas inconscientes atacam a percepção da realidade, não está mentindo porque não tem acesso a suas defesas. É o caso da maioria dos personagens estudados anteriormente, ainda que suspeitemos que, por vezes, eles sabiam conscientemente que estavam mentindo.

Embora possamos desfazer as defesas inconscientes e, dessa forma, aproximarmo-nos da verdade, ela sempre nos escapa. Faz parte de sua natureza incognoscível. Os delirantes, os místicos e os fanáticos têm certeza de que a encontram.

Existem mentiras protetoras em um extremo de um espectro em que as mentiras perversas estão no outro extremo. Retomo partes de um texto anterior (Cassorla, 2018) em que classifico as mentiras em função da relação com o outro, utilizando como modelo o continuum narcisismo <-> socialismo (Bion, 1992). Em área de social-ismo, onde existe respeito pelo objeto, identificamos as mentiras heroica e altruísta (quando alguém mente para salvar a vida de outro, por exemplo), a piedosa (para evitar sofrimento) e a protetora (para proteger alguém ou um grupo).

Em direção ao narcisismo encontramos a mentira autoprotetora e a mentira narcísica. Esta ataca, conscientemente, a alteridade. Segue-se a mentira perversa, que envolve maldade.

Outro enfoque revela um gradiente que vai de uma mentira amena, na fronteira com a argúcia e a inteligência, proferida alegremente e com elegância, até uma polaridade negativa de utilização obrigatória, generalizada, crescente e, sobretudo, hostil, destrutiva e autodestrutiva (Ferro & Stella, 2019).

Todos os tipos descritos se insinuam uns nos outros e podem coexistir, por vezes em forma confusa e cindidos do resto da personalidade. Novas mentiras tentam justificar outras e se constitui uma complexa rede de mentiras.

Mentiras perversas podem ser usadas para dominar pessoas e grupos humanos. Sofisticados sistemas de propaganda convencem as pessoas de "verdades" que interessam ao grupo dominador. As vítimas ficam inseguras e confusas em relação ao que é verdadeiro. A destruição do conhecimento facilita a conquista de algum tipo de poder que "salvará" as pessoas da insegurança. Essas mentiras vão além das mentiras políticas - supostamente para o bem do povo - defendidas por Platão e Maquiavel (Arendt, 1967).

As mentiras e falsidades se articulam com o negacionismo, fato social que tem se tornado mais evidente nos últimos tempos. Inicialmente usado para negar fatos históricos, se ampliou em outras direções. O negacionista despreza as evidências, que ele considera falsas ou mentirosas. Comumente cria outra realidade, oposta àquela que ele nega. O negacionismo pode ser acompanhado do fanatismo. O negacionista está convencido de sua verdade. Existe o falso negacionista cujo único objetivo é beneficiar-se. Entre os dois temos o adepto idiotizado, que não se preocupa com a verdade ou a mentira: apenas precisa de um líder que o faça sentir-se existente. Penso que a maior parte dos negacionistas se encaixa nesta terceira espécie.

A nova realidade criada pelo negacionista tem características próprias: apela-se para um imaginário mítico envolvendo aspectos ancestrais do indivíduo, do grupo ou da humanidade, transformados em construções idealizadas. Essa hipótese retoma a ideia freudiana de que existiria um fragmento de verdade histórica - neste caso idealizada - conectado à história ou pré-história do grupo, que contribuiria para o sentimento de convicção (Freud, 1937/1976a).

Existe uma estreita relação entre o desamparo e a necessidade de idealização. Recordemos que a fantasia universal da morte, como fim, não faz sentido emocional. Após a morte nos espera um mundo idealizado. Essa outra vida se confunde com as ideias de Paraíso, volta ao útero materno, retorno à mãe-terra. Essa fantasia parece ter sido importante para nossa sobrevivência como espécie. Onipotentemente se cria um mundo perfeito clivado de um mundo ameaçador. O homem-bomba islâmico, assim como o cristão das Cruzadas será conduzido ao Paraíso após matar os infiéis. Os grupos fanáticos de Jim Jones e Heaven's Gate se matam com a certeza de vida especial após a morte (Cassorla, 2010; 2019b, 2021). O adepto das Testemunhas de Jeová prefere morrer a receber uma transfusão de sangue.

A fantasia de onipotência é projetada nos mitos, ideologias e religiões, mas persiste dentro da mente primitiva. Grupos humanos se sentem, como o bebê mítico, "criadores do mundo", fanáticos possuidores da Verdade. Para sentir-se superior é indispensável que existam grupos inferiores. O perigo permanente é que a Verdade seja atacada pelos rivais invejosos. Por isso eles devem ser controlados, dominados ou, em última instância, eliminados.

Os fanatismos e negacionismos se tornam mais evidentes em fases de intensas mudanças sentidas como traumáticas, tanto nos indivíduos - por exemplo na infância e adolescência - como nos grupos sociais. As pessoas se sentem confusas e desamparadas e são alvo fácil de líderes a quem se entregam cegamente. O estudo da origem do nazismo na Alemanha mostra sua relação com a situação de desamparo, ódio e ressentimento da população em consequência da derrota e das indenizações devidas após a Primeira Guerra Mundial.

Retomemos o texto de Freud (1927/1976b) sobre fetichismo. Como vimos, o fetiche representa uma percepção ocorrida pouco antes ou após o evento traumático - originalmente a castração. Esse modelo nos servirá para aprofundar nosso estudo.

Suponhamos que o recém-nascido foi expulso do Paraíso (vida intrauterina) sofrendo o terrível trauma de cair no Inferno. O Paraíso será retomado na primeira mamada e o Inferno retornará em algum momento. Entre momentos no Paraíso e no Inferno a experiência com o outro permite que possa viver na Terra onde se administram as assombrações infernais em conflito com os deuses idealizados. O que nos importa, neste modelo, é o fetiche que o bebê (ou a humanidade) cria para substituir o trauma da expulsão do Paraíso: a completude total, o sentimento oceânico (Freud, 1927/1976c) que será encontrado em grupos fanáticos que prometem o Paraíso na terra e/ou no céu.

É possível que a pletora de fanatismos e negacionismos atuais seja influenciada pela dificuldade dos seres humanos de conviver em sistemas democráticos. O poder e as transformações devem ser negociados o tempo todo e de forma transparente. Os conflitos são permanentes e levam a diferentes graus de instabilidade. Existirão aqueles que preferem sacrificar a liberdade em nome de uma "ordem". Comumente essa "ordem", que dá origem a governos repressivos, visa restituir privilégios que foram suspensos pelo sistema democrático.

Estamos conscientes da complexidade dos fenômenos estudados, que demandam aprofundamento interdisciplinar. Corremos os riscos inerentes ao reducionismo, à especulação selvagem e aos vieses etnocêntricos (Abella, 2018). Valorizamos as contribuições de cientistas sociais que têm mostrado a relação entre as situações de desamparo e o sistema capitalista, o neoliberalismo, a hipertrofia da razão, a idealização do mercado, a modernidade líquida, a sociedade narcísica, o declínio da função paterna, a necropolítica - resultando na desumanização -, temas que não poderemos abordar.1 Este texto propõe que o comportamento fanático e negacionista é, ao mesmo tempo, produto e reação contra essas instabilidades sociais vinculadas a fatores individuais.

As hipóteses efetuadas nos ajudam a lançar algumas luzes sobre as escolhas negacionistas que, como vimos, visam o retorno a um passado idealizado. Esse passado pode ser recente (por exemplo, saudades da ditadura no Brasil) e comumente se vale de ideias anti-iluministas.

Quando a religião se sente ameaçada reforçam-se os grupos fundamentalistas, isto é, aqueles que se valem das Escrituras, evidentemente interpretadas da forma que interessa ao fanático. A negação da ciência implica um Ser superior que tudo determina e que nos protege se seguirmos suas ordens e ensinamentos. O darwinismo é vivenciado como um inimigo - seu erro é supor que nós, os Homens criados por Deus à sua imagem e semelhança, somos apenas um elo da evolução. Os racistas e os supremacistas brancos são nostálgicos do tempo em que constituíam a raça superior, dominando todas as raças "inferiores". Os nazistas recuperaram mitos das origens como descendentes dos arianos, raça superior. O modelo de Mussolini era o poder de Roma antiga. Grupos evangélicos têm se apropriado de símbolos judaicos na expectativa da vinda do Messias, que fará a conversão dos judeus ao cristianismo.2 O negacionismo do poder das vacinas repousa também em uma fantasia de que tudo o que é "natural", isto é, fruto de Deus, nos salvará. Não há que preocupar-se com mudanças climáticas, como se pudéssemos voltar ao início dos tempos em que Deus mantinha a natureza intacta e o homem apenas usufruía dela. As mulheres e os homossexuais ameaçam por estimularem desejos e necessidades em seres considerados superiores.

Curiosamente o risco de guerra nuclear (Segal, 1997) não é mais discutido. Le Goff (1994) nos mostra como o imaginário medieval se mantém presente em nossa cultura. Seria uma época onde existia ordem, cavalheirismo e fidelidade. Essa idealização da classe dominante (os nobres e os donos das terras) ignora convenientemente a população miserável, submissa e oprimida.

O fanatismo pode manifestar-se também naqueles do campo oposto. Ao fanático que se vale das Escrituras se opõe o fanático que quer destruir qualquer resquício de tradição. Por vezes, fanatismos se digladiam dentro dos mesmos grupos religiosos e ideológicos, cada qual se considerando mais "puro" que o outro.

O fanatismo e o negacionismo atacam o indivíduo ou grupo que se vale da razão, que permite e busca o debate, a controvérsia, que respeita as evidências e opiniões dos demais. A maior ameaça para o fanático é a liberdade de pensamento. Por isso, atrás de todos os negacionismos, sempre existe em forma latente o ódio pela liberdade, pela criatividade, pela convivência fértil com o outro, pela capacidade de pensar, sentir e transformar o mundo a partir do aprender com a experiência.

O negacionista fanático não suporta a alteridade. Há fortes indícios de que falhas iniciais em seu desenvolvimento o fizeram aderir-se simbiótica ou parasitariamente a objetos idealizados, formações reativas contra o terror e o desamparo. A essas configurações emocionais se acrescenta a inoculação de ideias fanáticas, principalmente quando bebês, crianças, adolescentes e/ou em situações de forte desamparo. Constituem-se organizações narcísicas destrutivas e perversas que se sentem ameaçadas por tudo aquilo que é não self. O inimigo deve ser seduzido, conquistado, ameaçado ou eliminado. Eventualmente pode ser atacado o próprio aparelho de percepção e o comportamento fanático se confunde com o psicótico (Cassorla, 2019a).

Atualmente se observa a expansão do chamado populismo destrutivo, cujo objetivo é destruir as instituições democráticas, especialmente aquelas que buscam mitigar o sofrimento social (Bollas, 2020). Os afetos onipotentemente destrutivos se idealizam e a função continente da sociedade democrática é deformada ou destruída. Isto implica a escalada permanente de excitantes atos destrutivos que visam manter a relação simbiótica do narcisismo destrutivo (Zienert-Eilts, 2020).

Milhares de pessoas se deixam influenciar porque querem acreditar. Populações vulneráveis em busca de soluções mágicas se deixam convencer. O líder se vale da influência emocional. Utiliza a prosódia, a entonação melíflua e/ou ameaçadora que acompanha a fala. Variações da intensidade vocal, o timbre, as pausas, induzem emoções através de atos da fala (Austin, 1962/1990). A música marcial reflete os batimentos cardíacos da mãe, ouvidos pelo bebê. Klemperer (2009) mostrou como o nazismo transformou mentirosamente o significado das palavras. Orwell (1949/2009) descreve, em seu livro 1984, a "newspeak" (traduzida por novilíngua). A propaganda política utiliza os mesmos mecanismos também nas democracias. Todos esses recursos são ampliados pelas redes sociais que usam sofisticados artifícios para atacar a capacidade de pensar de suas vítimas, que por sua vez estão em busca de certezas. Tem se utilizado recentemente os termos pós-verdade para a mentira induzida emocionalmente e truth decay (declínio da verdade) para sua deformação.

Sabemos que multidões perdem a capacidade de pensar e se deixam levar por atos impulsivos, manipuladas por líderes perversos (Canetti, 1960/1983; Freud, 1921/1976e). Esse bloqueio na capacidade de avaliar a realidade ocorre também em grupos menores e entre a dupla analítica. A mente se torna torporosa e o indivíduo toma como realidade o que é, na verdade, produto de identificações projetivas massivas que recrutam o indivíduo a tornar-se aquilo que o outro deseja (Bion, 1961; Joseph, 1989). Esse torpor se manifesta como estupidez e arrogância escondida em colusões psicóticas inconscientes (Bion, 1958; 1961; Cassorla, 2013; 2017a; 2017b).

Não podemos concluir sem abordar o movimento psicanalítico. Psicanalistas são seres humanos. É arrogante atribuir superioridade ao ter "sido analisado". Sabemos do apoio de psicanalistas ao nazismo, a governos ditatoriais, a situações de violência social. A própria formação psicanalítica corre riscos: existem Institutos em que determinados autores e ideias são desprezados - um tipo de negacionismo. Existem certezas sobre o "que é psicanálise" e o "que não é psicanálise" a partir de crenças e ideologias. Existem formações em que se estuda apenas um autor. Pode ocorrer de o pensamento ser obstruído porque determinados autores são tomados como se fossem Sagradas Escrituras. Existem verdadeiras seitas em que os discípulos seguem um determinado mestre. Disputas pelo poder político podem dificultar a investigação criativa. Existem psicanalistas racistas e homofóbicos. Enfim, nada diferente do que ocorre em outros grupos humanos.

Curiosamente o prestígio da psicanálise tem feito com que ela se misture com crenças e religiões. Em nosso meio tem havido uma tendência de os profissionais de saúde mental se intitularem psicanalistas, mesmo que não conheçam ou utilizem o conhecimento psicanalítico. Mais perigoso tem sido a utilização do termo por grupos de pastores evangélicos que têm formado mais de três mil "psicanalistas" em cursos de dois semestres. Esses grupos pressionam o governo a regulamentar a profissão usando critérios como... dois semestres de curso... As Sociedades brasileiras ligadas à International Psychoanalytical Association (IPA) têm lutado contra essa regulamentação, mas tudo indica que ela acabará acontecendo.

A psicanálise tem algo a oferecer no tratamento de mentirosos, fanáticos e negacionistas? A maioria das pessoas com essas características não busca a psicanálise e costuma ser seu adversário. Entretanto, podemos identificar essas defesas em alguns pacientes que nos procuram por outros motivos e ajudá-los a se conhecerem melhor. Sem a pretensão - também arrogante - de transformar o paciente em alguém "melhor".

Nosso maior desafio é descobrir formas para que as descobertas da psicanálise possam beneficiar a sociedade. Estamos em uma encruzilhada. Muitos estudiosos - que não poderemos abordar neste texto - têm trazido valiosas reflexões sobre a relação entre o conhecimento psicanalítico e a violência que se manifesta nos grupos humanos. Por outro lado, existem colegas que argumentam que a psicanálise não deve dedicar-se a essas áreas. Minha posição pessoal é divergente.

Este texto se deteve em um pequeno recorte de um complexo conglomerado que podemos nomear como Maldade. Finalizo da mesma forma que em um texto anterior sobre Fanatismo (Cassorla, 2019a), apelando à terrível descrição de Green (2010) da desobjetalização/desumanização em seu grau quase máximo.

"Você não existe". ... Eu não preciso, nem mesmo fechar minhas narinas para me proteger dos cheiros fétidos que de você emanam porque não sinto mais nada que vem de você. Cheirar o que você emite, ver o que você me dá ver, ou escutar o que você deixa ouvir, seria admitir implicitamente a tua existência. Ora, você não a tem. Você não chega a ser nem uma merda. Você é um monte de cinzas, poeira. E tua morte é retroativa. Você existiu somente por acidente, uma falha na humanidade que deve ser reabsorvida. Você não pode tampouco se tornar objeto de memória, culto ou lembrança. O luto do qual você tornar-se-ia objeto, te daria uma existência retroativa. Portanto, este luto não pode realizar-se. Você é um não lugar. (Green, 2010, p. 118)

O maior perigo é "fazer vista grossa" para os fanáticos e negacionistas imaginando que eles são apenas estúpidos e não causarão problemas. Sabemos que isso é falso e mentiroso - a história nos mostra como eles ampliam seu poder constantemente até que, em algum momento, a desumanização se torna regra, envolvendo violência e eliminação dos adversários.

Nossa compreensão do desumano deixa a desejar. Frente a ele nos sentimos perplexos, horrorizados e impotentes. Podemos ignorá-lo ou conformar-nos. Também corremos o impressionante risco de, ingenuamente, imaginarmos que podemos combater o desumano através de mais desumanidade. Devemos "indagar a maldade com sua própria lógica, para que, a partir da denúncia de suas falsas premissas, ela possa vir a se desfazer ou... ser colocada em evidência quando tenta se camuflar" (Chuster, Soares & Trachtenberg, 2014, p. 119).

 

Referências

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Recebido em em: 2/8/2021
Aceito em: 5/9/2021

 

 

1 Uma revisão dos aspectos sociais pode ser encontrada em Aylesworth (2015).
2 O historiador Michel Gherman discute o uso mítico de símbolos judaicos por grupos evangélicos (Demori, 2021).

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