SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.54 número101Arrancando os olhos: reflexões sobre negacionismoSofrimento psíquico na universidade: reflexões sobre pertencimento e racismo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo jul./dez. 2021

 

A POTÊNCIA DA DIFERENÇA

 

Tecnonarciso: Eros e identidade no reino da imagem

 

Technonarcisism: Eros and identity in the image realm

 

Tecnonarciso: Eros e identidad en reino de la imagen

 

Tecnonarcisme : Eros et identité dans le domaine de l'image

 

 

Daniel Caio Modós Santos

Psicólogo (PUC-SP) e psicanalista com especialização em psicopatologia contemporânea (Sedes Sapientiae). São Paulo / danielcmsat@gmail.com

 

 


RESUMO

Partindo da crítica foucaultiana à hipótese repressiva de Freud, a qual pintava a dicotomia entre Eros e civilização como fundante da subjetividade, utilizaremos autores da teoria queer em favor de uma visão tecnoerótica do sujeito psicanalítico. Buscando entender as formas de ser e de amar em uma sociedade menos repressiva como a atual, articularemos a noção de narcisismo a visões de autores contemporâneos sobre amor, analisando os entrelaçamentos atuais entre Eros, ideal e imagem.

Palavras-chave: narcisismo, Eros, tecnologia


ABSTRACT

Beginning from Foucault's critique of Freud's repressive hypothesis, which painted the dichotomy between Eros and civilization as the foundation of subjectivity, we will use authors of queer theory in favor of a technoerotic view of the psychoanalytic subject. Seeking to understand the ways of being and loving in a less repressive society such as the current one, we will articulate the notion of narcissism to the views of contemporary authors on love, analyzing the current intertwining between Eros, ideal and image.

Keywords: narcissism, Eros, technology


RESUMEN

Partiendo de la crítica de Foucault a la hipótesis represiva de Freud, que pintó la dicotomía entre Eros y civilización como fundamento de la subjetividad, usaremos autores de la teoría queer a favor de una visión tecnoerótica del sujeto psicoanalítico. Buscando comprender las formas de ser y amar en una sociedad menos represiva como la actual, articularemos la noción de narcisismo a las visiones de autores contemporáneos sobre el amor, analizando el entrelazamiento actual entre Eros, ideal e imagen.

Palabras clave: narcisismo, Eros, tecnología


RÉSUMÉ

À partir de la critique de Foucault de l'hypothèse répressive de Freud, qui a peint la dichotomie entre Eros et civilisation comme fondement de la subjectivité, nous utiliserons des auteurs de théorie queer au profit d'une vision technoérotique du sujet psychanalytique. Cherchant à comprendre les manières d'être et d'aimer dans une société moins répressive comme celle actuelle, nous articulerons la notion de narcissisme aux points de vue des auteurs contemporains sur l'amour, en analysant l'entrelacement actuel entre Eros, idéal et image.

Mots-clés: narcissisme, Eros, technologie


 

 

Esta força que se deixa converter em capital não reside no bios, tal como se entende desde Aristóteles até Darwin, sim em tecnoeros, em corpo tecnovivo encantado e sua cibernética amorosa.
(Paul B. Preciado)

Qual a figura de Eros em nosso tempo? Preocupado predominantemente com a etiologia sexual das neuroses e com o mal-estar no ápice da era moderna, Freud nos falava de um Eros aviltado, reprimido, desviado, exaltado só raramente, quando aparecia pelas vias da sublimação. O Eros da cultura que ele descreveu foi consequentemente em grande parte confundido com uma força primal, de natureza irracional, que tinha de ser continuamente refreada e revelada pelas luzes da razão apontadas pela civilização. Hoje, temos o tecnoeros de Paul B. Preciado, Byung-Chul Han fala da Agonia do Eros e Bauman nos alerta quanto ao Amor líquido. O amor está na ordem do dia, mas certamente não se trata mais desse Eros reprimido de um disciplinado sujeito moderno. A figura mais fluida, tecnológica e "imagocêntrica" do Eros contemporâneo produz novos modos de sofrer e novas subjetividades de modo que a psicanálise, munida de seu amplo arsenal e apoiada pela sociologia e filosofia correntes, deve se propor a prover uma ou mais figuras teóricas que nos ajudem a explicitar as dinâmicas amorosas dos sujeitos atuais.

Para chegar a tal objetivo, de início destacamos que, se, de acordo com a psicanálise, as vicissitudes da libido fundam o sujeito, há que se esclarecer que esse sujeito não é universal, mas pertencente a seu tempo histórico, no qual a sexualidade é entendida socialmente de um modo específico. Como Foucault explicitou em seu extensivo História da sexualidade (Foucault, 1999), a ciência moderna ocidental se voltou para a criação de um corpo teórico de scientia sexualis (ciências sexuais), as quais, por meio da categorização e domesticação dos corpos, produziram um sujeito disciplinar disposto a vigiar seu próprio erotismo. Diferentemente dos orientais, que abordaram o tema alternativamente pela via da ars erotica (arte erótica), nossa fé iluminista habilitou dispositivos como a medicina, a academia e uma certa leitura da psicanálise na construção de práticas e discursos dentro dos quais Eros foi entendido sempre como parte fundamental da constituição humana, porém, como parte que, por ser considerada "selvagem" ou "primitiva", deveria ser continuamente revelada e controlada pelos esforços da ciência ou por técnicas confessionais e disciplinares. Mais precisamente, Foucault propõe que tal sexualidade foi uma fabricação: a teoria dicotômica que enxergava a sexualidade como força primitiva em oposição à civilização seria uma invenção dos discursos dominantes, pois serviria de justificativa às formas de poder hegemônicas, que visavam produzir um sujeito domesticado e docilizado.

Não é uma tese infundada. Emoção contra razão, Eros contra civilização, foi o tema clássico da modernidade reeditado inúmeras vezes na filosofia, na literatura e nas ciências até a metade do século XX. O projeto da modernidade e das Luzes foi, qual Psiquê no mito, iluminar Eros sem pudor e revelar-lhe os segredos. De fato, as ciências, com forte viés colonialista, utilizaram-se de tratados psicopatológicos e técnicas confessionais a fim de produzir a nudez de Eros criando disciplinas e discursos que instituíam a sexualidade como força a ser domesticada ou como inimigo primitivo a ser reprimido em nome da civilização (subentendida, claro, como civilização europeia). O pai da psicanálise não saiu ileso da tentação de por vezes apelar para explicações análogas. Se é verdade que em textos como "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna" temos argumentos em favor da libertação sexual e pela diminuição da repressão social, temos também em textos-chave como "Mal-estar na civilização" trechos que naturalizavam Eros como força primitiva aparentemente irreconciliável com a civilidade. Em outro texto, numa passagem polêmica, Freud chegou mesmo a propor a psicanálise como mecanismo disciplinador de tal força, sugerindo que no decorrer da análise o Isso deveria ceder lugar à presença do Eu, tal "qual a drenagem do Zuiderzee", na Holanda (Freud, 1933/2006c), o terreno selvagem do Eros colonizado pela técnica civilizada da psicanálise, o "caldeirão das pulsões" do Id dando lugar ao comedimento racional do Ego.

Mas, se, com Foucault, esta via de compreensão dicotômica e colonialista do desejo erótico nos parece historicamente datada e eticamente problemática, como seguir?

A crítica foucaultiana a tais modos de demonização do erotismo pelas ciências sexuais foi absorvida por Paul B. Preciado quando este se dispôs a pensar o desejo na contemporaneidade. Ele cunha um termo que nos pode ser útil, tecnoeros, enfatizando que o desejo nunca pode ser pensado como "natural" ou "selvagem", pois é, desde saída, marcado pela cultura. Seja por técnicas arcaicas como a instauração de zonas erógenas proibidas ou pela exaltação de determinadas formas de prazer, seja pela modificação hormonal ou medicamentosa que varia desde a castração química ao uso do Viagra ou da "pílula", é fácil constatar que transformações tecnológicas e históricas constroem as maneiras pelas quais nos é possível desejar. Essas formas do que ele chama somatopoder aumentam à medida que cada vez mais claramente nos vemos numa cultura baseada nos modelos de produção e consumo determinados pelas indústrias farmacológica e pornográfica. Para Preciado o desejo contemporâneo, produzido farmacologicamente e educado desde a infância pela expectativa espetacular pornográfica, é transformado em forma de desempenho pornô, em performance de si que mantém a sociedade farmacopornográfica. Nesta sociedade a sexualidade deixaria de ser proibida e passaria a ser estimulada para fins de produção e autoexaltação. O erotismo se tornaria uma forma de trabalho, e, igualmente, o trabalho se tornaria erotismo, no sentido de que são ambos regidos pela lógica pornográfica otimizada por fármacos que visa transformar o sujeito num "trabalhador-ciborgue" que deve "aumentar a potência orgástica planetária" (Preciado, 2018).

Ele retrata aí a passagem das formas de poder características da sociedade disciplinar descrita por Foucault, a qual restringia e domesticava a sexualidade a fim de criar sujeitos dóceis, adaptados ao Exército ou à produção nas fábricas, para uma sociedade chamada por alguns de "sociedade de controle" (Deleuze, 1992), cujo funcionamento difere da anterior por não mais restringir e docilizar o sujeito, mas sim por fomentar de um modo específico suas liberdades e prazeres. Nesta virada cultural sexo e trabalho deixam de ser predominantemente regulados disciplinarmente por instâncias hierárquicas e passam em grande medida a ser administrados por nós mesmos, tornam-se performances de alto desempenho com valor pornográfico, espetacular, isto é, centrado nas articulações entre Eros e imagem.

Não estamos longe aqui de Byung-Chul Han, que, também na matriz foucaultiana, descreve nossa sociedade como "sociedade do desempenho", que ele caracteriza como "dominada pelo verbo modal poder, em contraposição à sociedade das disciplinas que profere proibições e conjuga o verbo dever" (Han, 2017). Contemporaneamente, estaríamos na ditadura do desempenho que é medido pelo grau de potência individual exibido tanto no âmbito do trabalho quanto no âmbito sexual. Assim como Preciado, Han vê a sexualidade cada vez mais tomada como objeto pornográfico e de consumo, e isso o leva a concluir que o verdadeiro erotismo estaria agonizando. É que para ele o amor, o verdadeiro Eros, se daria com a abertura do sujeito para o Outro enquanto diferença inassimilável ao eu: no esquema social da busca de potência, do desempenho individualista e do consumo pornográfico do sexo, não existiria mais lugar para uma abertura efetiva à alteridade do parceiro. Em Han, o desejo atual seria balizado pelo narcisismo no qual o sujeito se relaciona não com o Outro, essa alteridade irredutível a mim, mas sim com outros, que seriam, na verdade, simples reflexos especulares de nossas projeções pessoais. Com o aumento da liberdade sexual e de consumo provido pelo neoliberalismo, a relação com os outros se tornaria parte de um "cálculo hedonista" regido pela capacidade alheia de fornecer um desempenho sexual performático satisfatório, ou de aumentar nossa potência ou nosso "capital sexual" imagético tornando-nos mais desejáveis no mercado dos afetos.

Bauman certamente concordaria. Famoso por criticar as formas do Eros no que chama "modernidade líquida", ele nos indica que, com a intensificação dos processos pós-modernos de liquefação das identidades e com a hegemonia capitalista, nossos vínculos afetivos tornam-se indistinguíveis de objetos comuns (Bauman, 2001). Em tal sistema as formas de prazer sexual seriam cada vez mais exaltadas enquanto liberdades irrestritas: o amante consumidor não precisa mais escolher ou formar compromissos relacionais, uma vez que, como no shopping ou no fast-food, a experiência sexual é rápida, prática e superficial. Bauman acrescenta que, enquanto Freud descreveu uma sociedade na qual o sujeito abria mão de seus desejos, trocando sua "liberdade em nome da segurança", hoje os sujeitos prefeririam mais liberdade e menos segurança, pois a liberdade maior garantiria formas de prazer diversas e abertura a potencialidades eróticas futuras. São sociedades que sofreriam não mais pelo excesso neurótico de renúncia pulsional, mas sim pelo excesso de insegurança resultante de se ampliarem quase ilimitadamente as satisfações individuais (Bauman, 1998).

Diante dessas considerações fica claro que o sujeito de hoje e suas formas de amar não se encaixam no esquema simples do duelo pulsão x civilização por vezes evocado por Freud. Devemos então simplesmente jogar a psicanálise no lixo enquanto arcabouço teórico relevante para descrever o erotismo dos sujeitos contemporâneos? Não exatamente. É evidente que Han e Bauman manifestamente já se inscrevem num diálogo com nosso saber, pondo em ação ideias familiares como o narcisismo, o desejo do Outro, e o mal-estar relacionado à cultura. Sugerimos que essa persistência da psicanálise na filosofia e teoria sociológica atual se deve ao fato de que o Eros de Freud não pode ser reduzido à imagem do "instinto" selvagem primitivo anticultural criticado por Foucault. Em grande parte de sua obra, ao contrário, o primeiro psicanalista não se cansou de nos demonstrar que a relação da sexualidade com a cultura é tudo menos de simples oposição.

A própria Judith Butler, referência da teoria queer constante de Preciado e leitora assídua tanto de Foucault quanto de psicanálise, põe em xeque a crítica foucaultiana à hipótese repressiva psicanalítica mostrando que em Freud Eros e civilização têm na verdade uma complexa relação de retroalimentação mútua, em vez de lugar fixo na oposição simples de dois termos antagônicos. Butler nos recorda que o processo de recalque freudiano, que leva à renúncia libidinal, é ele também mantido pela força libidinal. Dessa maneira o movimento do recalque não é só força oposta a Eros, mas é também, enquanto contrainvestimento repressivo, representante da cultura e do Outro, mantido pela libido que recalca: "uma ideia inteiramente própria da psicanálise e alheia ao pensamento habitual das pessoas ... Toda renúncia instintual torna-se uma fonte dinâmica de consciência, toda nova renúncia aumenta o rigor e a intolerância desta" escreveu Freud (Freud, 1928/2006a), clarificando que, uma vez realizado o recalque primário, as dinâmicas de Eros se tornam elas mesmas o motor da operação de entrada na cultura do sujeito e da manutenção do recalque. Eros e repressão nesse sentido não são simples forças opostas, sendo a maior parte das vezes "aliados" na produção das formas de amor e subjetividade possíveis. Para Foucault o sujeito é formado pelo poder e só depois investido de sexualidade, isto é, tem ambas sua sexualidade e sua subjetividade produzidas por meio de discursos e técnicas de poder. Butler contra-argumenta que num sentido psicanalítico esse não é um processo unilateral: sujeito e sexualidade são tanto formados pelo poder quanto formadores de poder. Pela via da consciência, do supereu, e a fim de manter as identificações com as pessoas ou ideais que ama ou amou, o sujeito reprime a si mesmo, assujeita a si mesmo, pelo movimento de Eros recalca e desvia o próprio erotismo para fins culturais (Butler, 2018). Nessas dinâmicas Eros e cultura estão mais entrelaçados num processo de cocriação do que em oposição eterna irreconciliável. Eros é formado pelas técnicas da cultura, mas a cultura e suas técnicas são formadas por Eros. Em sua leitura de Freud a cultura e suas técnicas são sempre eróticas, mas também o sujeito, o Eros e a subjetividade são sempre técnico-culturalmente produzidos - só haveria tecnosujeito, só haveria tecnoeros.

Podemos julgar, assim, que as evidentes modificações culturais das formas eróticas que hoje testemunhamos, sua alteração por fármacos, pela mediação da pornografia ou de mídias tecnológicas, nada mais são do que a intensificação e reatualização dos processos de cocriação erótico-cultural já descritos por Freud. Seguindo o espírito freudiano da ideia de pulsão (Trieb), sujeita a marcas, desvios e inversões culturais que em nada nos remetem à naturalidade de um "instinto sexual", podemos ver as atuais transformações técnicas da sexualidade escancarando a estrutura de Eros, nos mostrando quão tecnoculturalmente produzida a sexualidade sempre foi, quão maleável e múltipla ela sempre foi. Eros, como montagem transformacional vinda do Outro, como produto de recortes e refinamentos das máquinas culturais, é, em todo sujeito, techno. Há uma leitura psicanalítica possível na qual a sexualidade assim como o sujeito são vistos como uma montagem retroalimentada de várias peças, um tecnoeros ciborgue em que a separação entre natural e artificial desaparece em favor de descrições de dinâmicas inconscientes históricas e produtivas dos caminhos sociais criativos do erotismo.

Nessa via interpretativa Eros ciborgue seria a imagem da libido contemporânea. Imagem que deriva da filósofa Donna Haraway, valorizada por Preciado e Butler, que foi a primeira a ver no ciborgue o modelo do humano não só do presente, mas de toda nossa história. Depreende-se de sua obra que, num sentido amplo, a humanidade foi produzida pela tecnologia, de forma que sempre fomos ciborgues, isto é, sujeitos tecnologicamente alterados. Se entendemos por tecnologia qualquer uso técnico da cultura que transforma nosso meio ou nós mesmos, fica claro que técnicas como o fogo, a arte, até a linguagem e, é claro, o erotismo podem ser vistos como tecnologias de produção de subjetividade. As próteses corporais e o uso de medicamentos seriam apenas exemplos dos desenvolvimentos mais recentes das transformações que a tecnologia impõe sobre nossos corpos e psiques (Haraway, Kunzru & Tadeu, 2009). Em nossa analogia, assim como o tecnoeros em nós é produzido por meio de técnicas discursivas, repressivas ou intensificadoras, vindas do Outro, mas que se tornam nossas e são por nós reproduzidas e alteradas à medida que crescemos, também o ciborgue é montado e remontado com partes vindas de outros, e pode vir a se autoproduzir e automontar à medida que vai ganhando autonomia. No ciborgue como no tecnoeros, não há nada de natural, nem tampouco de eterno. Suas partes podem ser refeitas, sua configuração é fluida e polimórfica (mas não "perversa", pré-cultural) e por isso pode ser a figura teórica ideal para dar conta do caráter culturalmente engendrado e intensamente líquido do erotismo contemporâneo.

Com efeito, o Eros ciborgue representa a mutação desidentitária de formas de desejo que cada vez menos se conformam a divisões binárias como heterossexualidade e homossexualidade, monogamia, ou a diferenças estanques de gênero. Entende-se que com a saída da sociedade disciplinar organizada hierarquicamente e definida pela repressão ou domesticação da sexualidade, as modalidades possíveis de Eros se ampliariam exponencialmente com organizações que se pautam cada vez mais pela valorização da liberdade de escolha. Uma vez que a sexualidade não mais se conformaria às dicotomias simbólicas do sancionamento tradicional do desejo em que os termos se excluem mutuamente (ou homem ou mulher, ou compromissado ou solteiro, ou hétero ou homo), rompem-se os dimorfismos tradicionais e o Eros ciborgue cria novas sexualidades e identidades. Haraway indica mesmo o caráter revolucionário do ciborgue que destruiria divisões tradicionais como natureza/cultura, agente/instrumento e até a divisão entre sujeito e objeto baseada no cogito cartesiano: o ciborgue é tanto objeto como sujeito de si mesmo, de maneira similar ao modo pelo qual o tecnoeros é tanto engendrado pela cultura do Outro como engendrador ativo desta cultura.

De um ponto de vista crítico, porém, seria uma armadilha entender essas novas configurações de Eros e da identidade como puras libertações revolucionárias. Eros ciborgue pode representar uma libertação em relação ao modelo disciplinar anterior, mas não devemos supor que a liberdade ela mesma não possa ser fomentada e direcionada para fins de controle do desejo e para a manutenção das formas de poder hegemônicas. O ciborgue é um literal self-made man facilmente adequável ao pensamento neoliberal que torna cada um de nós um "empreendedor de si mesmo" voltado para o máximo desempenho. Certamente, Haraway e Preciado também estão atentos a tal problema, concedendo que sob a égide do ciborgue o capitalismo pode produzir o "devir-ciborgue-do-trabalhador-do-sexo" dentro do qual a força tecnoerótica é utilizada para transformar sexo em trabalho e produção à medida que nos tornamos máquinas famacopornograficamente construídas que existem somente para aumentar nossa performance (Preciado, 2018). Eros ciborgue é mais livre e mais líquido, sim, mas só é assim seguindo uma lei, que não é mais hierárquica e repressiva, mas não é por isso menos absoluta. Falamos aqui dessa lei da performance, da imagem, condicionada pelos ditames do espetáculo dentro de um circuito narcisista que nos força a trabalhar para exibir uma potência cada vez maior, cada vez mais espetacular.

Nosso tecnoeros ciborgue livre e fluido é também então um Eros Narciso, sua face em um espelho sempre cambiante de formas múltiplas, mas não infinitas, pois sempre transformadas sob as exigências de um alto desempenho. Han alude a isso ao falar do narcisismo como o modo erótico predominante na atualidade. Se por um lado o sujeito de hoje não teria mais seu desejo continuamente reprimido e docilizado por instituições hierárquicas totais, por outro lado a energia erótica de que dispõe seria captada e direcionada por um circuito narcisista que mantém sempre acesa a hélice perpétua do desempenho. Para Han o sujeito narcisista neoliberal é livre, mas livre apenas para buscar sucesso. Sucesso e bons resultados trariam consigo uma espécie de confirmação de si pelo outro, pois é no olhar do outro enquanto espelho de mim mesmo que encontro reconhecimento de meu sucesso e do valor de minha performance. Por isso a vida erótica atual seria para ele "o inferno do igual" em que toda relação com o outro comportaria uma evitação da diferença, cada novo encontro seria o reencontro de nossa própria identidade narcísica sancionada pelo sucesso do desempenho que mostramos. Isso se torna compreensível se entendemos que o narcisismo de Han não se baseia na ideia do retorno total da libido ao ego em detrimento dos investimentos nos objetos do mundo, muito pelo contrário, é um narcisismo produzido e mantido socialmente por um jogo de espelhos em que somos continuamente reafirmados identitariamente pelo outro numa "dialética do reconhecimento" em que o semelhante não é nunca plenamente visto como Outro, em sua alteridade radical irredutível ao eu (Han, 2017).

Esse pequeno outro que nos espelha e que se diferencia do grande Outro, definido por Han como alteridade inassimilável, nos sugere claramente a origem lacaniana dessa forma de pensar, mas nos confronta com o problema, também lacaniano, de como a Lei opera e sobredetermina processos inconscientes narcísico-imaginários (especulares). Por meio de que mecanismo o circuito narcisista seria regulado pela lógica do desempenho? Para resolver esse problema retomamos uma divisão feita por Freud e retomada por Lacan entre as instâncias do Supereu e do Ideal de Eu. Na leitura de Lacan, os dois cumpririam funções próximas, porém, diferentes: enquanto o supereu repressivo estaria atrelado à lógica simbólica, da palavra e de seu ordenamento social, o ideal de eu teria uma função imaginária (ou seja, imagética), zelando por uma imagem ideal de si que mantém o sujeito no nível das gratificações identificatórias narcísicas. De sua parte, os imperativos do Supereu (Über-Ich, literalmente sobre eu) pairam sobre nós e nos punem com um "tu deves" vindo desse grande Outro simbólico inquestionável; já o Ideal de Eu (Ich-Ideal) está sempre adiante, nos leva a relações especulares projetivas com outros (imagens de outros) que de alguma forma nos mantêm o mais perto possível da imagem ideal que temos ou gostaríamos de ter de nós mesmos. Lacan resume a distinção dizendo que "o supereu é constrangedor e o ideal de eu exaltante" (Lacan, 2009), o primeiro nos pressiona desde a lei da ordem simbólica do Outro, e o segundo nos exalta ou diminui diante da imagem idealizada que passa pelo outro.

Se podemos dizer que as diferenças entre as exigências impostas nas formas de subjetividade e erotismo hoje e as formas disciplinares que imperaram até metade do século XX dependem do papel cada vez mais preponderante da imagem nas mídias, a atuação do Ideal de Eu se torna fundamental. De maneira esquemática diríamos que o Supereu foi o grande disciplinador repressivo das subjetividades disciplinares, e o Ideal de Eu seria hoje o parâmetro do valor da imagem do eu (e do outro) nas sociedades de controle. Regulado pela régua ideal de um eu que mostre "sucesso" ou "desempenho" o sujeito contemporâneo vive seu erotismo num enredamento profundo com as imagens de si e dos outros que lhe garantem valor e gratificação no todo social. Não por acaso os autores que vimos insistem sobre a predominância da pornografia como eixo da sexualidade hoje: Eros cada vez mais opera pelo âmbito do visto, pelo que vemos dos outros e pelo que mostramos de nós. A troca de nudes, a proeminência das selfies e o flerte de caráter imagético nas redes sociais e nos aplicativos de relacionamento explicita o funcionamento altamente imagetizado das trocas tecnoeróticas contemporâneas. Sem moralismos, é fácil perceber como tais tecnologias e práticas culturais em si mesmas nada têm de negativo, pois ampliam nossas formas de satisfação e abrem portas para a invenção de formas de prazer erótico jamais experimentadas. Propomos, porém, que a aptidão ciborgue de tecnoeros pode ajustar-se a valores imagéticos neoliberais, que se acoplam ao ideal de eu, forçando o sujeito a continuamente reformar e adaptar sua aparência e suas práticas rumo a imagens idealizadas. É que o mesmo ideal de eu que exalta pode se afastar, depreciando a autoestima egoica e gerando quadros patológicos narcísicos como a depressão, ou pode manter o sujeito em tal autoexigência maníaca de performance, que seria forçado a constantemente se aperfeiçoar, mudando sua autoimagem e suas relações amorosas narcísicas rumo a um desempenho cada vez maior.

O engajamento de tecnoeros na imagem diante dos parâmetros do ideal de eu sugere que erotismo e identidade se misturam nos circuitos narcísicos, sendo regidos cada vez mais pelo parâmetro de um ideal de "transformabilidade" espetacular. Nesse sentido específico não viveríamos simplesmente no "inferno do igual" de Han, mas sim num processo constante de mutação de identidades e sexualidades, buscando a exibição e o consumo de imagens ideais, por mais "estranhas" que elas sejam. Esse aspecto foi muito bem captado por Bauman, para quem um traço universal de nosso tempo seria a "angústia relacionada a problemas de identidade e a disposição para se preocupar com toda coisa 'estranha'" (Bauman, 1998). Um processo complexo, pois se, por um lado, intensificam-se as exclusões de certas formas de diferença social (racial, de religião, de preferência sexual), por outro, o capitalismo estimularia uma "paixão do estranho" (heterofilia), um desejo de entrar em contato ou viver identidades diferentes, de incessantemente desfazer e criar novos vínculos relacionais e correspondentes novas identidades. Para o autor, sob essa exigência a vida erótica e a identidade se tornariam líquidas, mais livres; poderíamos dizer mais "ciborgues", mas também mais narcísicas. Espelhadas pelo outro na condição de "igual" reafirmador de meu valor social ou de "estranho" desejável/rejeitado, as imagens do circuito narcisista exigem uma constante transformação rumo ao ideal. Olhando no espelho líquido e cambiante do outro, que varia entre o igual e o estranho apaixonante ou infamiliar, tecnoeros se autotransforma definindo-se e modelando-se pelas imagens do ideal de eu narcisicamente instituído e socialmente reafirmado. No espelho do mundo somos TecnoNarciso, forçados a continuamente mudar para adequarmos o que exibimos de nós no sistema de gratificações espelhadas que são confirmadas ou deslegitimadas pelo olhar que o outro nos devolve.

Com efeito, o caráter narcísico do ideal faz com que as exigências de transformação não recaiam tanto nas conquistas do eu, e sim no verbo exibir, o imperativo de sucesso e da "transformabilidade" do eu depende do olhar do outro. Em 1968 Debord escrevia que na Sociedade do espetáculo o "valor do ser derivaria do aparecer" (Debord, 1997), e cinquenta anos mais tarde seu texto ainda se revelaria profético. No ciberespelho das redes sociais e da mídia nosso Eros tecnonarcísico subsiste no âmbito do visto, pelo que vemos dos outros e pelo que mostramos de nós. Isso não surpreende, pois, devido às mudanças sociais das últimas décadas e ao avanço da tecnologia da informação, a imagem ganhou cada vez mais o lugar privilegiado de representação hegemônica antes reservado em grande parte à palavra como organizador social produtor das subjetividades (Flusser, 2019). Podemos dizer que vivemos hoje no reino da imagem. Nesse novo império a sexualidade e a subjetividade estariam progressivamente mais condicionadas a um sistema imagético, em que a imagem do eu e a imagem do outro recebem seu valor por adequação ou inadequação a certas imagens ideais que remetem a outras imagens, que remetem a outras imagens mais etc., num sistema hermenêutico significativo próprio quase descolado das palavras e da realidade material (Baudrillard, 1991). Narciso submetido (ou exaltado) pelo ideal de eu entra aqui inegavelmente como o mediador central dessa mudança rearranjando como as formas especulares de Eros se regem nos novos sentidos imageticamente produzidos. Podemos entender assim finalmente a ligação estreita entre Eros e imagem tão em evidência na atualidade: já que a vida erótica não necessariamente se emaranha com profundidade nos circuitos da linguagem verbal, certamente vai fazê-lo nos circuitos técnico-imagéticos. Se as sociedades disciplinares com seu Eros logocêntrico tiveram as cartas de amor, os longos romances franceses de quatrocentas páginas, ou votos de casamento; nossa sociedade imagética prefere relações por aplicativos de fotos, a troca de "nudes", a pornografia e o flerte em páginas de redes sociais "imagocêntricas". Tudo isso, é claro, pautado pela perpetuação ideológica de imagens ideais socialmente compartilhadas que compõem parte de nosso ideal de eu.

Fazemos a ressalva de que precisamente pela prevalência da ideologia não é lícito pensar que o ideal de eu, por sua função imaginária (imagética), estaria já completamente desarticulado do registro simbólico dos discursos ou completamente autonomizado no reino da imagem e definitivamente alheio às intervenções do supereu (simbólico). As imagens do outro e as nossas com que o ideal de eu nos permite manter um circuito de satisfações narcísicas são imagens intensamente idealizadas, se estabelecem e se transformam diante de exigências sociais que não deixam de ter apelos simbólicos, como as ideias de "sucesso" e "desempenho" citadas por Han ou ainda a lógica de consumo de Bauman. A diferença essencial seria então o que "diz" o supereu atual que rege as imagens do ideal de eu. Não se trataria mais do supereu disciplinar e repressivo que diz "tu deves" ou "não deves". Inversamente, como na obra tardia de Lacan o supereu diz "goze!" (Lacan, 2008), e tal imperativo é cooptado culturalmente para as imagens gozantes, sorridentes e sexuais baseadas nos ideais de eu que definem nossas relações eróticas mais e mais. No entendimento de Dani Robert Dufour, enquanto para Freud a neurose clássica seria resultado de um supereu que grita "não tenha prazer! Gozar é errado!", ao que o sujeito resiste fazendo o sintoma que o gratifica secretamente ao mesmo tempo em que respeita a proibição e a lei restritiva; atualmente, por oposição, a nova lei seria a falta de restrição ela mesma, o supereu contemporâneo gritaria "goze! Mais e mais, e não pare! Pense só os prazeres que você poderia estar vivendo agora...", ao que o sujeito responde gozando sem vergonha ou se envergonhando por não estar gozando o suficiente. Para Dufour, assim como os autores que vimos antes, a nova lei superegoica do gozo seria pornográfica, na medida em que visa expor o gozo em lugar de escondê-lo (Dufour, 2013).

Chegamos então à imagem ciborgue do eu que deve continuamente gozar instalada no ideal de eu. Ela nos permite compreender uma série de fenômenos relacionados ao Eros tecnonarcísico contemporâneo. As formas do amor líquido nos revelam a busca incessante por um gozo análogo ao contínuo descarte e renovação das imagens midiáticas que consumimos em redes sociais, na televisão, no cinema. O medo de não estarmos "aproveitando a vida o suficiente" perde seu valor de reflexão existencial e se torna uma ordem social: "você deve estar sempre gozando o suficiente!". Mudar de relacionamento sempre que o gozo idealizado nele não é encontrado, consumir mais e mais imagens pornográficas identificando-se com o gozo do ator ou atriz pornô, gozar nas imagens das selfies que mostramos ao mundo ou que vemos dos outros, são fenômenos que revelam a imagem do gozo como nova lei universal. "Tu deves gozar", diz o supereu representante da sociedade, mas "deves gozar de maneira que se mantenha a sociedade de consumo", claro. Tal imperativo coaduna-se com o fato bem sabido de que o desejo é insaciável. A imagem ideal do tecnonarciso gozante está sempre adiante, se transformando liquidamente na próxima identificação do circuito especular que confirmará nosso desempenho de bons cidadãos da sociedade do espetáculo (Birman, 2017).

Sob nossa hipótese, à medida que a imagem ligada ao ideal de eu se torna tanto mediadora como causadora dos movimentos de tecnoeros, o circuito narcisista ganha certa autonomia da realidade material. No reino da imagem as representações pictóricas do gozo se relacionam com outras imagens de gozo em um sistema próprio interconectado, no qual as identificações com o gozo do outro (e do outro comigo) formam um circuito identificatório em que o gozo pela imagem se mantém especularmente. Como sugere Han, esse sistema mantém o eu narcísico numa experiência ilusória de plena autonomia da instância do Outro (alteridade). Trata-se, porém, de uma autonomia precária e sempre ameaçada pelo mesmo outro que a mantém. Isso porque é notório o caráter paranoico das relações narcísicas, dado que na relação especular subsiste o perigo de tal sistema de gozo se tornar rapidamente ameaçador na medida em que projetivamente meu gozo sobre o outro torna-se o gozo do outro sobre mim, isto é, na medida em que o outro ameaça minhas possibilidades livres de prazer. Numa ordenação social que preza um Eros sempre livre, potente e independente, o outro pode sempre também se tornar uma figura sádica poderosa que me desvalida, aparecer como um "estranho" perigoso que potencialmente restringe minhas possibilidades, ou ainda como alguém que avilta minha autoimagem narcisicamente estabelecida.

Nessa linha, Bauman afirma que nossa sociedade heterofílica amante de estranhos também é heterofóbica, visto que certos "estranhos" não se conformariam à liquidez e à liberdade exigidas no erotismo contemporâneo. Para ele a perpetuação da liquidez e o caráter heterofílico da sociedade atual têm por contrapartida uma forma também mais exacerbada de exclusão dos "estranhos" vistos como "viscosos", ou seja, os estranhos não líquidos cuja identidade parece inescapável, não fluida, que não se conformam aos ditames do líquido ideal de eu contemporâneo. Num polo, a estranheza (e a diferença, em geral) continuará sendo edificada como a fonte da experiência agradável ligada ao ideal de eu; no outro, como aterradora corporificação da viscosidade, será ritualmente expulsa e desvalorizada. De um ponto de vista psicanalítico, conhecemos bem como a imagem do estranho acoplada ao narcisismo das pequenas diferenças facilmente se apropria da pulsionalidade com fins de marginalização ou para criação de funcionamentos fascistoides (Freud, 1921/2006d). O sistema narcísico das identificações que mantém o Eros mais livre e fluido pode ser paradoxalmente o mesmo sistema que preza o conservadorismo e a exclusão de formas de libertação sexual e identitária. Sobre isso Bauman mesmo já nos alertara em 1997 que "Só se precisa, afinal, dirigir uns poucos quilômetros para se encher o tanque vazio do nacionalismo com combustível racista" (Bauman, 1998). Não é difícil ver atualmente o combustível narcisista enchendo o tanque dos preconceitos com o auxílio das redes sociais e das mídias imagéticas.

Em resumo, atualmente a potência ciborgue de nosso tecnoeros é presa de um circuito narcisista enredado nas deslumbrantes malhas especulares (e espetaculares) da imagem. O erotismo, que na sociedade disciplinar foi reprimido ou domesticado, na atualidade passaria a ser estimulado, liquefeito, refinado e continuamente transformado em pleno tecnoeros para fins de manutenção da imagem do gozo, de exibição espetacular ou de desempenho farmacopornográfico. Pode até mesmo ser alienado em usos fascistoides e excludentes, seja pelos que prezam a liquidez capitalista levada ao seu máximo, seja pelos que pretendem se agarrar de maneira conservadora ao que resta de sólido na modernidade líquida. Argumentamos que as imagens do ideal de eu são pivô de todos esses processos, indicando uma mudança cultural na direção de uma hegemonia da imagem como âmbito de produção e controle das subjetividades e do desejo contemporâneo. A lógica "imagocêntrica" de tecnoeros reformula muitos dos modos de regulação social típicos da modernidade fazendo-nos ter de reavaliar como pensamos o erotismo quando este apresenta uma face tecnonarcísica de constante transformação acoplada aos circuitos identificatórios da imagem e aos ditames ideológicos de um ideal de eu que ordena uma modalidade imagética de gozo.

Fica a questão, porém, de se a força libertária e autotransformadora de tecnoeros ciborgue permanecerá atrelada aos circuitos narcísicos, ou se encontrará uma saída de exercício erótico que concretize seu potencial revolucionário. Talvez aqui o uso da imagem como mediador cultural predominante seja uma oportunidade de as novas formas de tecnoerotismos experimentarem a plasticidade imagética para alcançar novos horizontes, fazendo aparecer por meio da tecnoestetização do Eros algo de artístico que comporta algo de disruptivo, algo de Real (Dolto, 1998), que nos leve além da ideologia da imagem. As possibilidades autoengendradoras de Eros e da identidade apontadas por Butler lembram que a performance de si não é só alienante, mas também uma oportunidade de dissenso e de criação cultural, de praxis criativa, inovadora, de ser e de amar. A imagem tecnoeroticamente estetizada autoengendrada poderia vir a ser a saída para tecnoeros criar-se além dos circuitos narcísico-identitários, levando-nos a uma sexualidade não acoplada aos ditames do ideal de eu definido ideologicamente. A tecnologia, a cultura e o tempo dirão sobre o alcance efetivo de tal possibilidade.

 

Referências

Baudrillard, J. (1991). Simulacro e simulação. Relógio d'Água.         [ Links ]

Bauman, Z. (1998). O mal-estar da pós-modernidade. Zahar.         [ Links ]

Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Zahar.         [ Links ]

Birman, J. (2017). O mal-estar na atualidade. Civilização Brasileira.         [ Links ]

Butler, J. (2018). A vida psíquica do poder. Autêntica.         [ Links ]

Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Contraponto.         [ Links ]

Deleuze, G. (1992). Conversações: 1972-1990. Editora 34.         [ Links ]

Dolto, F. (1998). Solidão. Martins Fontes.         [ Links ]

Dufour, D.-R. (2013). A cidade perversa. Civilização Brasileira.         [ Links ]

Flusser, V. (2019). O mundo codificado. Ubu.         [ Links ]

Foucault, M. (1999). História da sexualidade I: a vontade de saber. Graal.         [ Links ]

Freud, S. (2006a). Mal-estar na civilização. Imago. (Trabalho original publicado em 1928)        [ Links ]

Freud, S. (2006b). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. Imago. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Freud, S. (2006c). Novas conferências introdutórias (Conferência XXXI). Imago. (Trabalho original publicado em 1933)        [ Links ]

Freud, S. (2006d). Psicologia das massas e análise do eu. Imago. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

Han, B.-C. (2017). A agonia do Eros. Vozes.         [ Links ]

Haraway, D., Kunzru, H. & Tadeu, T. (Org.) (2009). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano (2.ª ed.). Autêntica.         [ Links ]

Lacan, J. (2008). O seminário, Livro 20. Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (2009). O seminário, Livro 1. Jorge Zahar.         [ Links ]

Preciado, P. B. (2018). Testo junkie. n-1 Edições.         [ Links ]

 

 

Recebido em em: 28/2/2021
Aceito em: 29/4/2021

Creative Commons License