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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo jul./dez. 2021

 

A POTÊNCIA DA DIFERENÇA

 

Sofrimento psíquico na universidade: reflexões sobre pertencimento e racismo

 

Psychic suffering at the university: reflections on belonging and racism

 

Sufrimiento psíquico en la universidad: reflexiones sobre la pertenencia y el racismo

 

Souffrance psychique à l'université : réflexions sur l'appartenance et le racisme

 

 

Vanessa Silva dos SantosI; Pablo CastanhoII

IMestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo / santos.vanessa@usp.br
IIProfessor Doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo / pablo.castanho@usp.br

 

 


RESUMO

Este artigo propõe reflexões sobre o sofrimento psíquico no contexto universitário, destacando a problemática do racismo com base em uma vinheta clínica. Como referencial teórico diante de tal tarefa utilizaremos as contribuições das teorias psicanalíticas de grupo, particularmente o pensamento do psicanalista francês René Kaës. O acesso ao ensino superior para algumas camadas sociais não se dá sem a existência de diversas barreiras que afetam as condições de pertencimento efetivo à universidade, tais barreiras incluem questões relativas a classe, raça e gênero. A partir da experiência apresentada, propomos uma problematização que posiciona o racismo brasileiro no campo do pacto denegativo. A invisibilização do debate em relação à questão da cor da pele juntamente com a suposta democracia racial no Brasil se constituem em mecanismos que sustentam o racismo institucional no país.Dessa forma, entendemos que a luta contra o racismo demanda o rompimento do pacto de silêncio e do imobilismo que o sustenta.

Palavras-chave: estudantes universitários, sofrimento psíquico, teorias psicanalíticas de grupo, racismo


ABSTRACT

This article proposes reflections on psychic suffering in the university context, highlighting the problem of racism. Our theoretical framework is based on the contributions of Group Psychoanalytic Theories, particularly the thinking of René Kaës. For some social layers, the university access does not take place without the existence of several barriers that affect the conditions of effective belonging. Such barriers include issues relating to class, race and gender. By presenting a clinical experience, we aim to problematize racism within the denegative pact. The invisibility of the debate regarding the issue of skin color along with our supposed racial democracy: those are the mechanisms that support institutional racism in Brazil. Thus, the fight against racism demands the breaking of the pact of silence and the immobility that sustains it.

Keywords: University students, psychic suffering, Group psychoanalytic theories, racism


RESUMEN

Este artículo propone reflexiones sobre el sufrimiento psíquico en el contexto universitario, destacando el problema del racismo desde una viñeta clínica. Como referencia teórica a esta tarea utilizaremos las contribuciones de las Teorías Psicoanalíticas de Grupo, en particular el pensamiento del psicoanalista francés René Kaës. El acceso a la educación superior para algunos estratos sociales no se da sin la existencia de varias barreras que afectan las condiciones de pertenencia efectiva a la universidad; esas barreras incluyen cuestiones de clase, raza y género. A partir de la experiencia presentada, proponemos una problematización que coloca el racismo brasileño en el campo del pacto denegativo. La invisibilidad del debate sobre el tema del color de la piel frente a la supuesta democracia racial en Brasil son mecanismos que sustentan el racismo institucional en el país. De esta manera, entendemos que la lucha contra el racismo exige la ruptura del pacto de silencio y la inmovilidad que lo sustenta.

Palabras clave: estudiantes universitarios, sufrimiento psíquico, teorías psicoanalíticas grupales, racismo


RÉSUMÉ

Cet article propose des réflexions sur la souffrance psychique en contexte universitaire, mettant en lumière le problème du racisme à partir d'une vignette clinique. Comme cadre théorique à cette tâche, nous utiliserons les apports des théories psychanalytiques de groupe, en particulier la pensée du psychanalyste français René Kaës. L'accès à l'enseignement supérieur pour certaines classes sociales ne se fait pas sans l'existence de plusieurs obstacles qui affectent les conditions d'appartenance effective à l'université; ces obstacles comprennent des questions de classe, de race et de sexe. Sur la base de l'expérience présentée, nous proposons une problématisation qui place le racisme brésilien dans le champ du pacte denégatif. L'invisibilité du débat sur la question de la couleur de la peau face à la prétendue démocratie raciale au Brésil constitue un mécanisme qui entretiennent le racisme institutionnel dans le pays. Ainsi, nous comprenons que la lutte contre le racisme exige la rupture du pacte du silence et de l'immobilité qui le soutient.

Mots-clés: étudiants universitaires, souffrance psychique, théories psychanalytiques de groupe, racisme


 

 

Introdução

Ao longo de toda sua existência, um sujeito integra diversos grupos - desde o grupo familiar, passando pela comunidade onde vive, até as instituições em que circula. O momento de entrada na universidade se constitui como uma etapa de transição e de contato intenso com novos grupos e novos códigos, no qual entram em crise as referências que o sujeito possuía até então e se inicia uma busca por novas formas de ancoragem subjetiva.

Nessa fase, sobrepõem-se mudanças relativas tanto ao momento de passagem entre a adolescência (mesmo que tardia) e a vida adulta, como também transformações relativas à transição entre o mundo de origem do jovem estudante e o mundo universitário.

Essa transição entre mundos pode comportar graus de vulnerabilidade variáveis entre os sujeitos, que dizem respeito não somente à bagagem que cada um carrega ao chegar à universidade, mas também a todo o contexto com o qual o jovem estudante se depara, incluindo um entrecruzamento de questões e opressões relativas a classe, raça e gênero. Assim, entendemos que, para alguns estudantes, existem barreiras a mais que dificultam a travessia universitária, desde as condições de acesso até a possibilidade de conclusão do curso de graduação ou pós-graduação escolhido.

Todo grupo dentro uma sociedade (grupos dentro de grupos mais amplos, os chamados metaenquadres, conforme veremos mais à frente) participa de alguma forma de suas leis e regras explícitas e implícitas. A cada nova entrada em um novo grupo há (re)pactuações em jogo, e o contrato de afiliação a um pequeno grupo também contém os preceitos e normas dos grupos mais amplos. Dessa forma, sugerimos que as manifestações das tensões societárias também se encontram presentes no âmbito da universidade.

Nas últimas décadas, houve grande crescimento do acesso da população brasileira ao ensino superior, de acordo com dados do mec/inep (2020). Além do aumento do número de instituições de ensino superior, assistimos ao surgimento de estratégias políticas com o objetivo de viabilizar o acesso ao ensino universitário a camadas da sociedade para as quais tal acesso esteve impedido por muito tempo. Recentemente, pudemos acompanhar o surgimento de novas formas de entrada no ensino superior, além do vestibular tradicional, incluindo as ações afirmativas ("política de cotas") e formas de financiamento estudantil pelo governo.

Porém, criar formas de ampliar o acesso à entrada na universidade não garante que o aluno consiga de fato concluí-la. De acordo com dados do Censo da Educação Superior (2020), o número de concluintes no ensino universitário tem sido sempre menor do que a metade do número de ingressantes. Tais dados comprovam o fato de que a entrada no ambiente universitário, bem como a permanência neste, comporta muitas dificuldades e desafios. Com base na experiência da primeira autora em um contexto institucional no qual são acolhidos estudantes universitários que buscam por apoio psicossocial e/ou psicoterápico, temos percebido que, na ocasião da chegada à universidade, muitas das questões singulares dos jovens são postas à prova, diante de novas exigências subjetivas e coletivas que põem em questão a conquista alcançada, gerando dúvidas, desamparo e grande sofrimento. Por vezes, para alguns estudantes a entrada na universidade se dá de forma que, apesar de estarem dentro, sintam-se ainda estrangeiros. Chegam, mas não conseguem se inserir de fato.

Este artigo propõe reflexões sobre o sofrimento psíquico no contexto universitário, utilizando como ilustração uma vinheta clínica. Como referencial teórico diante de tal tarefa utilizaremos as Teorias Psicanalíticas de Grupo, especialmente as contribuições de René Kaës. Nosso objetivo é refletir sobre a inserção dos estudantes brasileiros no ensino superior, verificando como tem se dado o pertencimento ao mundo universitário, destacando especialmente a problemática do racismo.

 

Desenvolvimento teórico

Para o psicanalista francês René Kaës (2011), o sujeito do inconsciente é o sujeito do vínculo. O autor destaca o papel da intersubjetividade no processo de constituição subjetiva, apontando que o vínculo se constrói em uma realidade psíquica original que não se produziria sem o encontro intersubjetivo. Dessa forma, é somente como membro de uma cadeia que pode se formar um sujeito e somente na continuidade dessa relação, incluindo as tensões e divisões internas, é que o sujeito se sustenta (Castanho, 2018).

A concepção de sujeito kaesiana está referida a uma compreensão freudiana segundo a qual: "O indivíduo tem de fato uma dupla existência, como fim em si mesmo e como elo de uma corrente, à qual serve contra - ou, de todo modo, sem - a sua vontade" (Freud, 1914/2010a, p. 20). Assim, ao mesmo tempo que um sujeito é tributário do conjunto intersubjetivo ao qual está inserido, deve buscar dele se soltar, porém sem se libertar completamente. Dessa forma, o duplo estatuto da existência e as exigências psíquicas impostas por essa duplicidade impõem ao sujeito uma ambivalência e uma tensão constante entre o lugar que seu desejo lhe impele a ocupar e o lugar que lhe é imposto pelo Outro.

O bebê humano ao nascer não possui ainda o estatuto de sujeito, sendo obrigado à sujeição ao seu grupo humano primário. Trata-se de um estado de assujeitamento paradoxal: ao mesmo tempo em que o sujeito se encontra submetido, também é estruturado nessa relação com seus grupos de cuidado, conforme veremos a seguir a partir do conceito de contrato narcísico.

O termo contrato narcísico foi apresentado em 1975 por Piera Aulagnier, como um desenvolvimento do conceito de narcisismo freudiano. Para a autora, o contrato narcísico opera no sentido de inscrever o infans na relação com as figuras parentais. Trata-se de uma espécie de "missão" designada ao bebê recém-chegado ao mundo para que possa vir a se subjetivar, mas isso só se dará à medida em que venha a pertencer à cadeia transgeracional daquela família como elo e herdeiro de expectativas (conscientes e inconscientes) daqueles que o antecederam. Dessa forma, o contrato narcísico inscreve o infans não somente em seu grupo primário de pertencimento, mas mais amplamente na sociedade e na cultura na qual se situa. Nas palavras de Kaës a respeito:

Um tal contrato qualifica um aspecto fundamental da aliança que vincula cada sujeito a um conjunto de sujeitos intersubjetivos onde ele nasce para a vida psíquica. Cada neonato vem ao mundo num grupo e é convidado a ser sujeito como sendo portador de uma missão: a de garantir a continuidade do grupo e das gerações sucessivas, segundo um modo bem particular que lhe é assinado no termo do contrato profundamente relacionado com a economia narcísica. Para assegurar essa continuidade, o grupo ou conjunto de pessoas deve, por sua vez e na forma de intercâmbio, investir narcisicamente esse novo indivíduo. (2014, p. 63)

O contrato narcísico é sempre assimétrico, pois é anterior ao sujeito. Antes mesmo do nascimento, o sujeito já está imerso em um discurso que o atravessa. Tal discurso, que inclui os ideais e valores do grupo ao qual pertence, deve ser incorporado pelo sujeito como seu, bem como por cada novo membro do grupo. Trata-se de um tipo de contrato que comporta certa violência; o que está em jogo, afinal, é que o sujeito possa, como antidoto à sedução da alienação no desejo do outro, vir a apropriar-se de um lugar e reconhecê-lo como seu. Parafraseando Goethe: "Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu" (Goethe citado por Freud, 1913/2010b, p. 241). Assim, faz parte de nosso destino que nos tornemos narradores (em primeira pessoa) de nossa história, mas isso só pode vir a ocorrer a partir da história de nossa relação com os outros e com a cultura.

Para Kaës, o contrato narcísico realiza uma importante função na formação das orientações identificatórias. Citando o autor:

O acesso a essa representação e a essa passagem do indivíduo ao universal exige um processo de singularização que põe em xeque as aderências imaginárias e alienantes incluídas no contrato narcísico, mas isso é a porta que dá para o acesso ao simbólico. Nesse processo de singularização reside o motor do processo da subjetivação. Tornar-se um Eu é inventar uma temporalidade do projeto e tornar-se diferente para o grupo e para os sujeitos que são ao mesmo tempo os elos, os servidores, os beneficiários e os herdeiros. (2014, p. 65).

Com base nas proposições originais de Piera Aulagnier, Kaës desenvolveu ainda mais a ideia de contrato narcísico, definindo-o como um tipo de aliança inconsciente estruturante do psiquismo. Porém, antes de aprofundar sobre os tipos de contratos narcísicos, é preciso apresentar algumas considerações sobre o conceito de alianças inconscientes.

De acordo com Kaës,

as alianças inconscientes são a base e o cimento da realidade psíquica que nos liga uns aos outros, formam a matéria da realidade psíquica própria a um vínculo intersubjetivo: um casal, uma família, um grupo, um conjunto institucional. (2011, p. 225)

Tais alianças fabricam uma parte do inconsciente de cada sujeito, de modo que todos nós estamos a elas submetidos enquanto sujeitos do vínculo. Nessa perspectiva, o conceito de alianças inconscientes é um elemento teórico importante para pensar a passagem entre o intrapsíquico e o intersubjetivo, incluindo a sociedade e a cultura.

Aliado à questão das alianças inconscientes, Kaës recupera o conceito de contrato, já presente nos textos freudianos, como modo de articular o singular e o coletivo: "Todo contrato implica abdicar de algo - em troca de alguma coisa, como, por exemplo, o incremento de uma possibilidade defensiva ao signatário da aliança" (Castanho, 2018, p. 71). A aliança inconsciente só existe em função de algo que fique fora da consciência de seus signatários; dessa forma, a categoria do "negativo" é posta aqui como central ao desenvolvimento do conceito de alianças inconscientes, participando de alguma forma de todo vínculo estabelecido. Segundo Kaës:

As alianças inconscientes têm uma estrutura de um sintoma compartilhado, com o qual cada sujeito contribui e do qual obtém algum benefício para seus próprios interesses, contanto que se mantenha a condição de que aqueles com quem ele se relaciona, tenham, se não exatamente o mesmo interesse, pelo menos o de fundamentar sua relação nessa aliança. (2014, p. 14)

As alianças unem e excluem: "une aqueles que ela vincula, exclui aqueles que ela rejeita. Ela permite que sejam identificados os excluídos: eles estão fora da aliança, da comunidade, do grupo. Ela é então um princípio de discriminação" (Kaës, 2014, p. 14). A aliança é construída contra "estrangeiros", seja com uma função defensiva (defender-se daquilo que não se conhece ou que pareça ameaçador), seja com uma função perversa, no qual o gozo compartilhado pelos signatários é ao mesmo tempo de inclusão e exclusão.

Existem vários tipos de alianças inconscientes: algumas possuem função estruturante (que contribuem para a estruturação da psique, bem como dos vínculos), outras possuem função defensiva e de alienação (fonte de sofrimento e desorganização psíquica e dos vínculos). Neste artigo, destacaremos dentre o conjunto de alianças inconscientes o contrato narcísico (aliança estruturante) e o pacto denegativo (aliança com função metadefensiva).

Em parágrafos anteriores já apresentamos algo do conceito de contrato narcísico conforme as ideias de P. Aulagnier. Kaës (2014) estende tal compreensão e distingue três tipos de contrato narcísico: originário, primário e secundário. Em relação ao contrato narcísico originário, o autor retoma o sentido proposto por Freud em 1914, quando é apresentado o narcisismo como fundante do psiquismo (entre o autoerotismo e a escolha de objeto). Aqui, não somente podemos falar do surgimento do Eu, mas também da afiliação narcísica à espécie humana. Quanto ao contrato narcísico primário, trata-se de uma pactuação no seio do grupo primário, através dos investimentos narcísicos dos pais. O indivíduo "não mais pode constituir-se como um elo somente, mas como um servidor, como um beneficiário e como um herdeiro do contexto" (Kaës, 2014). Já o conceito de contrato narcísico secundário se estabelece nos grupos secundários, fora da família. Tal contrato redistribui e rearranja os investimentos anteriormente recebidos, e isso não se dá sem algum nível de conflito, pela retomada do assujeitamento narcísico diante de novas exigências, em novos contextos:

Todas as mudanças das relações entre o sujeito e o contexto, toda a pertença ulterior, toda e qualquer nova adesão a um grupo questiona - põe em xeque - e em alguns casos enseja até processos elaborativos, dos aportes desses contratos (narcísicos). (Kaës, 2014, p. 66)

O primeiro e o terceiro tipos de contrato são contratos de afiliação (ao "mundo", aos grupos), enquanto o segundo tipo é um contrato de filiação, pactuado dentro do contexto familiar. Tais contratos podem entrar em conflito, especialmente quando há impedimentos na passagem do individual ao universal ou do universal ao singular, barrando o acesso ao simbólico.

Nos conflitos vividos em passagens críticas da vida (adolescência, velhice, mudanças de ciclo em geral) acontece um reordenamento dos fundamentos narcísicos dos sujeitos, de forma que tais eventos possuem grande potencial de abalar os contratos narcísicos de base. A cada vez que um contrato se renova, diante de demandas de reposicionamento do sujeito na vida, entra em jogo um tensionamento na relação de forças desiguais inerentes ao estabelecimento do contrato narcísico, sempre assimétrico. Daí resulta uma dívida narcísica que o sujeito busca quitar de acordo com seus aportes psíquicos, que dependem da maneira como fez/faz sua inserção em seus grupos de pertencimento. Desenvolveremos esse tópico na discussão do caso clínico. Ainda acerca das alianças inconscientes, apresentaremos a seguir o conceito de pacto denegativo.

O termo pacto denegativo foi formulado por Kaës para descrever um tipo de aliança metadefensiva que envolve recalque, recusa, desmentido ou rejeição de algo para que o vínculo dos signatários permaneça. Citando o autor:

Ao mesmo tempo que é necessário à formação do vínculo, ele cria neste o não significável, o não transformável, zonas de silêncio, bolsas de intoxicação que mantém os sujeitos de um vínculo estranhos à sua própria história e à história de outros. (Kaës, 2011, p. 204).

O pacto denegativo possui, portanto, uma dupla face: contribui para o estabelecimento das alianças estruturantes que formam os vínculos, ao mesmo tempo que funciona como uma aliança alienante. Por exemplo, para que se assegure a continuidade de um determinado contrato narcísico (mantendo num grupo a função agregadora de ideais comuns), paga-se o preço do desconhecimento do que está realmente em jogo para cada membro de tal grupo em relação. Assim, conforme citado anteriormente, todo vínculo envolve a dimensão do negativo, de algo que a consciência não acessa, do qual não se fala.

Existe sempre uma área de sobreposição entre os contratos narcísicos e os pactos denegativos. Havendo num grupo uma ideologia em curso, uma crença comum que protege seus membros da dor e da desilusão, o custo para mantê-la é a diminuição (ou abolição) da consciência acerca da história particular e da história compartilhada. De acordo com Kaës (2014), o que acontece não é que o pacto denegativo condiciona as formações do inconsciente, mas, de fato, ele produz inconsciente, sob o efeito da dinâmica das defesas individuais e metadefensivas. Dito de outra forma:

a função metadefensiva das alianças inconscientes exerce-se não somente sobre os conteúdos inconscientes, mas também sobre a própria aliança, donde brota sua existência, e a fortiori os seus aportes são inconscientes. Dessa função advém que elas regem o destino da repetição na relação. (Kaës, 2014, p. 120)

Cabe aqui algumas considerações sobre a alienação, ou melhor, sobre as alianças inconscientes alienantes, fundadas sobre a recusa, o desmentido, a rejeição ou a forclusão. Tais alianças tornam os sujeitos que se vinculam "estrangeiros a si mesmos" (Kaës, 2014). De acordo com Aulagnier, "a alienação exige o encontro do sujeito com um outro sujeito desejoso de alienar" (Aulagnier citada por Kaës, 2014, p. 127). Castanho desenvolve essa ideia:

Esse encontro produtor de alienação corresponde, do ponto de vista do sujeito que se aliena, a uma forma de evitar o conflito entre o Eu e seus ideais. (...)Vemos aqui a lógica da aliança inconsciente operando claramente: o sujeito que se aliena encontra em uma forma de laço um alívio para seus conflitos que só pode ser obtido em relação; o outro sujeito retira daí também benefícios psíquicos. (2018, p. 81)

Faz parte da constituição subjetiva a sujeição e a alienação no desejo do outro. Nas palavras de Castanho: "Nesse sentido, há uma dimensão alienante nas alianças estruturantes, porém Kaës enfatiza a necessidade de, no après-coup, o sujeito poder desintrincar-se destas formações alienantes e historicizar-se" (2018, p. 82). Existem, no entanto, formas do vínculo que impedem que o sujeito possa apropriar-se de seu desejo e de sua história. Retomaremos este debate a partir da vinheta clínica, que será apresentada a seguir. Trata-se de um caso não-identificado atendido pela primeira autora em um contexto institucional, conforme citamos na introdução deste artigo.

 

O caso Bruno

Bruno é um jovem negro que, na época dos atendimentos, estava em seu primeiro ano de graduação e residia na moradia estudantil da universidade. Vivia anteriormente com seus pais e irmãs em uma cidade nos arredores da capital. Sua mãe é negra e seu pai é branco. Referia ter relacionamento muito afetivo com a mãe e muito distante com o pai.

Quando veio procurar ajuda no serviço de saúde mental, imaginava possuir algum tipo de "transtorno". Nos primeiros atendimentos, contou que tinha grandes mudanças de humor e grande dificuldade de concentração, se identificava com sintomas de depressão e de déficit de atenção, conforme pesquisou na internet.

Bruno referia constantemente nos atendimentos um sentimento de melancolia, algo que era sempre associado a algum tipo de doença psiquiátrica. Em seu primeiro semestre na universidade, chegou a trancar mais da metade das disciplinas por medo de ser reprovado, além da dificuldade de sair da cama de manhã. A sensação de que algo daria errado sempre o acompanhava.

Bruno foi o primeiro de sua família a ter acesso à universidade. Já tinha feito diversas tentativas anteriores, em diversas universidades públicas. Em relação ao curso de graduação escolhido, dizia ter dificuldade de se identificar com os colegas, se sentia muito diferente dos demais (relatava que tal sentimento sempre esteve presente em sua vida). Sentia um grande temor de rejeição pelos pais pelo fato de ser homossexual. Acreditava que seu pai não sentia orgulho por suas conquistas, por Bruno ter conseguido acessar a universidade, por exemplo. Referia que, para o pai, o valor do trabalho era maior do que o valor dos estudos. Apresentava nos atendimentos grandes preocupações com seu futuro, especialmente em relação ao seu sustento, pois sentia que não podia contar com sua família em termos financeiros.

Ao longo de alguns meses de atendimento, Bruno pôde começar a narrar-se de um modo diferente. Começou a perceber em si um traço muito parecido com sua mãe, de submissão à vontade dos outros. Era muito marcante em seu discurso o temor de não ser aceito ou de não pertencer. Inicialmente atribuía tal temor somente à sua orientação sexual, mas aos poucos passou a poder falar sobre questões raciais, sobre ser filho negro de pai branco, sobre ser negro na universidade, sobre ser aluno cotista. Começou a manifestar grande desejo de encontrar um trabalho e sair da moradia estudantil, ter sua casa e passou também a se aproximar de movimentos identitários na universidade (movimento negro, movimento gay). Muito mais poderia ser dito a respeito do caso, mas para as finalidades deste artigo, o apresentado até aqui já se faz suficiente.

 

Discussão

Bruno apresentava-se, inicialmente, com base nos diagnósticos de doenças que leu na internet. Parecia ter uma dificuldade de falar de si, um distanciamento ou alienação de si mesmo, o que o levava a buscar sentido para o que sentia em coisas exteriores, em normativas psiquiátricas. Falava também de uma dificuldade de se apropriar do espaço conquistado (a universidade pública), visto que trancou boa parte das matérias do primeiro semestre e se manteve trancado no quarto boa parte do tempo. Algo parecia estar mesmo trancado, impedido para Bruno. Repetidas vezes apareceu a sensação de "não dar conta", uma expectativa constante de erro, fracasso, como se sentisse que sua entrada na universidade não fosse legítima. Bruno conseguiu adentrar os portões da universidade enquanto espaço físico, mas acessá-la enquanto lugar simbólico se configurava como uma operação bem mais complexa. Aparentemente, sua admissão na universidade via cotas não era percebida como legítima, nem por ele nem por alguns outros atores sociais da cena universitária, pondo, desde a entrada seu pertencimento em risco.

Entendemos, de acordo com a teoria de Kaës, que o momento de entrada na universidade demanda reposicionamento subjetivo, pelo remodelamento dos contratos narcísicos secundários, algo que não acontece sem algum grau de sofrimento. Entra em jogo a possibilidade (ou impossibilidade) de pertencer ao novo grupo, o grupo dos universitários. No caso de Bruno, não estamos falando apenas de pertencimento enquanto interação junto aos pares, mas principalmente da possibilidade inaugural de acesso ao ensino superior - sendo ele o primeiro de sua família a se afiliar à universidade. Em termos intrapsíquicos, tal feito pode gerar sentimentos muito ambivalentes. Bruno não sentia que o fato de estar na universidade era valorizado por sua família, para quem o valor do trabalho se sobressaía diante do valor do estudo. Não é incomum que alguns estudantes manifestem sentimentos de pesar, culpa ou dívida em relação à família de origem, por sentirem que estão se afastando justamente dos valores comuns daquele grupo (no momento em que criam novos valores para si). Ou seja, o que está em jogo aqui é a possibilidade de ocupar um lugar original diante daquele inicialmente designado pela família. Bruno participa como um elo de sua cadeia geracional, à qual deve sua vida, mas ao mesmo tempo possui aspirações e desejos singulares, os quais sente que não possuem valor lá onde estão suas raízes, como se não fizessem laço no elo preexistente. Tais impasses não se dão sem grande ambiguidade - entre o querer pertencer e o querer se diferenciar.

Em termos socioculturais, sabemos que, historicamente, o acesso à universidade não foi sempre universal. Sempre houve barreiras envolvendo questões de gênero, classe e raça. Bruno é negro, de origem humilde, e homossexual. Há muito pouco tempo na história brasileira, nem negros, nem mulheres, nem pobres podiam chegar à universidade. Conforme mencionado na introdução, temos testemunhado a ampliação das possibilidades de entrada na universidade e uma suposta democratização do ensino superior, mas nem sempre a inclusão se efetiva de fato.

Retomando a questão do contrato narcísico, Bruno recebe a negritude como herança (materna, transgeracional). Mas, ao mesmo tempo, a própria raça negra muitas vezes é denegada, mesmo no âmbito familiar. Bruno vinha de uma família miscigenada e quando falava da relação com o pai, que é branco, parecia sentir que não correspondia a uma imagem ideal de filho (atribuindo isso ao fato de ser homossexual, mas sem colocar em questão a cor da pele). Em um dos atendimentos, no qual um dos temas foi o cabelo, Bruno contou suas lembranças familiares a respeito: diversas vezes ouviu, até mesmo de seu pai, que tinha o "cabelo ruim", além de uma proibição velada de que pudesse deixar o cabelo crescer (quando era criança, tinha sempre o cabelo raspado). Nas sessões, também recordava o esforço da mãe e das irmãs (negras) em deixar o cabelo sempre liso, o que remete a ideia do cabelo alisado ou domado como algo mais culturalmente aceito.

Bruno não trazia explicitamente para os atendimentos vivências de racismo na universidade. Até porque, nomear experiências de racismo como tal, não se trata de um processo automático. Há algo que é denegado, pelos grupos e pelos sujeitos dos grupos. Bruno é o único aluno negro em sua turma de graduação em seu ano de ingresso (o que não é estatisticamente representativo da população brasileira, em sua maioria negra). Estamos aqui diante de um fenômeno da ordem do negativo, do tipo "disso não se fala". Muitas vezes, diante de tais fenômenos, é o analista quem explicita isso que não pode aparecer no discurso, que não pode ser percebido, mas que está implícito no pré-consciente ou no inconsciente de alguma forma. Conforme foi nomeado para Bruno algo desse sofrimento, novos movimentos subjetivos foram surgindo. Assim, ao longo dos atendimentos, foi possível testemunhar um processo de identificação de Bruno com elementos da cultura negra, como por exemplo assumir o cabelo black power ou trançado.

Podemos pensar na questão do racismo dentro do campo do pacto denegativo. Existe uma ideologia vigente no Brasil, uma aliança inconsciente alienante que tende a negar o racismo, em nome da suposta cordialidade do brasileiro. De acordo com Kaës, quando existem sujeitos desejosos de alienar, existe alienação. Tal pacto denegativo é parte de nossa cultura, que atravessa as instituições e os sujeitos. Quando negamos o racismo no Brasil, negamos toda a história secular de opressão vivida pelo povo negro, negando também uma dívida histórica com toda a raça negra, pela segregação e humilhação social a que foram violentamente submetidos desde a colonização.

Bruno referia dificuldade de se identificar com seus colegas de curso, todos brancos. Sempre trazia o mal-estar relativo à sensação de não pertencer, mas o fato de ser o único negro de sua turma precisou ser nomeado pela analista, não era uma diferença que lhe saltava aos olhos, embora evidente. A partir daí, passou a falar também da percepção de grande identificação com a mãe, especialmente com seu aspecto submisso e pôs isso em questão. Falava também de um desejo de, com base em seu crescimento profissional, oferecer melhores condições de vida à mãe (e a si próprio). Podemos entender tal desejo de se afirmar profissionalmente como um ensejo de romper uma lógica de dependência, buscando maior autonomia, mas principalmente rejeitando a servidão como herança.

O assujeitamento constitutivo de que fala Kaës deve ser superado ao longo da existência, à medida que se torne possível ao sujeito apropriar-se de si, ou seja, reconhecer seu lugar na cadeia familiar e, ao mesmo tempo, buscar e/ou criar novas posições, novos lugares para ocupar, concretamente e subjetivamente. Tal dessujeição passa por movimentos de libertação de identificações alienantes e de alianças inconscientes que sustentam a sujeição (Kaës, 2011). Uma intervenção psicanalítica opera no sentido de explicitar tais alianças, de forma que o sujeito se torne mais consciente e mais crítico do lugar que ocupa (e do que pode vir a ocupar) em seus grupos de pertencimento. A partir daí, é também tarefa de um processo analítico auxiliar os sujeitos e os grupos na busca de ampliação de seu repertório de possibilidades diante dos desafios que a vida impõe, de forma que não se mantenham aprisionados em repetições ou alianças que não fazem sentido. No caso de Bruno, a análise pôde possibilitar a assunção de novos lugares psíquicos, incluindo uma afirmação de sua identidade, processo que também foi favorecido pela afiliação à movimentos identitários, conforme citado anteriormente.

O caso de Bruno ilustra de que maneira a questão do pacto denegativo pode aparecer na clínica. Entendendo o racismo como algo no campo do negativo ou do denegado, destacamos aqui a importância da função do analista de poder, de maneira implicada, explicitar algo que, embora invisível, se faz presente de maneira insidiosa e, por isso mesmo, com grande potencial adoecedor. Uma vez que o racismo ocultado pôde se desvelar, percebemos uma recuperação da potência do sujeito para poder lidar com as adversidades em curso.

 

Considerações Finais

Para Pacheco e Silva (2007), a invisibilização do debate em relação à questão da cor da pele juntamente com a suposta democracia racial no Brasil se constituem em mecanismos que sustentam o racismo institucional no país. Os autores apontam que: "Desconhecer a existência de um problema é um eficaz mecanismo de evitar o seu enfrentamento. Sutilmente, basta contar com a inércia, para que se mantenha a situação de brutal desigualdade" (Pacheco e da Silva, 2007, p. 2). Dessa forma, para lutar contra o racismo, é preciso romper com o pacto denegativo de silêncio e imobilismo que o sustenta.

Costa (2015) apoia-se na teoria de Kaës para teorizar sobre a questão do racismo no Brasil, destacando o conceito de metaenquadre (já citado na introdução deste artigo). Cada grupo sempre está contido em um grupo maior, preexistente, que funciona como uma moldura mais ampla que determina as relações entre os sujeitos. Os metaenquadres funcionam como "modelos, regras, normas sociais, jurídicas, políticas, culturais, religiosas, ideológicas, entre outras, que regem a todos e dão o alicerce para o estabelecimento dos enquadres das organizações, dos pequenos grupos, das famílias, dos casais e do sujeito" (Costa, 2015, p. 149). A principal tese desta autora é que, no Brasil, "o racismo é um dos metaenquadres ideológicos que estruturam os mais variados âmbitos da vida de todos que aqui habitam" (Costa, 2015, p. 150). Considera, igualmente, o sexismo e a discriminação de classe como metaenquadres que, juntamente com o racismo, criam modalidades de dominação. O racismo, enquanto ideologia dominante, "estabelece um desequilíbrio entre os grupos sociais, consolidando a manutenção da vida e dos privilégios do grupo racial branco dominante em detrimento da devastação e da morte daqueles considerados inferiores" (Costa, 2015, p. 151).

Segundo Abud e Sigulem, no Brasil está estabelecido "um contrato narcísico que garante o lugar de pertencimento social ao branco, e um pacto denegativo que impede a inscrição do negro"(2018, p. 217). Nesse sentido, podemos entender, junto com Kaës, as alianças inconscientes como princípio de discriminação: há sempre um grupo que exclui outro grupo. Em relação à questão do pertencimento à universidade, entendendo-a como parte do metaenquadre, dentro dela também opera o contrato narcísico branco e o pacto denegativo que exclui o negro. Assim, se desejamos refletir sobre o sofrimento psíquico dos jovens universitários no contexto da atualidade, não podemos ignorar tais questões.

Pudemos elucidar, neste artigo, o mecanismo do racismo denegado com base em uma vinheta clínica. Porém, para além do valor do cuidado individual, cabe ainda uma reflexão sobre a importância do movimento coletivo. A busca por mudanças envolve não só o incremento do conhecimento de si e reconhecimento da própria potência, conforme vimos com base no caso do jovem Bruno, mas também luta por transformações estruturais, luta política em busca de formas menos opressivas de estar no mundo para todos, e essa luta, para ser efetiva, não se pode fazer só: é papel de toda a sociedade.

 

Referências

Abud, C. C. & Sigulem, L. (2017). A questão do racismo em um grupo de mediação com fotografias. In N. M. Kon, C. C. Abud. & M. L. da Silva (Orgs.) O racismo e o negro no Brasil. Perspectiva.         [ Links ]

Aulagnier, P. (1979). A violência da interpretação. Imago.         [ Links ]

Castanho, P. (2018). Uma introdução psicanalítica ao trabalho com grupos em instituições. Linear B.         [ Links ]

Costa, E. S. (2015) Racismo como metaenquadre. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (n.62).         [ Links ]

Freud, S. (2010a) Sobre o narcisismo. In S. Freud, Obras Completas (Vol. 12, P. C. de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Freud, S. (2010b) Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas (Vol. 11, P. C. de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Kaës, R. (2011). Um singular plural - a psicanálise à prova do grupo. Loyola.         [ Links ]

Kaës, R. (2014). As Alianças Inconscientes. Ideias & Letras.         [ Links ]

MEC/INEP. (2020). Resumo técnico: Censo da Educação Superior 2018. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.         [ Links ]

Pacheco, J. Q. & da Silva, M. N. (2007). O negro na universidade: o direito a inclusão. Fundação Cultural Palmares.         [ Links ]

 

 

Recebido em em: 16/8/2021
Aceito em: 15/9/2021

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