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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo jul./dez. 2021

 

DIÁLOGOS

 

Clínica Transcultural: o exercício de uma psicanálise decolonial1

 

Transcultural Clinic: the exercise of a decolonial psychoanalysis

 

Clínica Transcultural: el ejercicio del psicoanálisis decolonial

 

Clinique Transculturelle : l'exercice d'une psychanalyse décoloniale

 

 

Marcella Monteiro de Souza e Silva

Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / marcellasmss@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho apresenta o nascimento e desenvolvimento da Clínica Transcultural, um modelo clínico criado com o objetivo de propiciar atendimento psicanalítico à população migrante. Vinhetas clínicas ilustram como os três princípios básicos do método - a universalidade, o complementarismo e o descentramento - aparecem no "setting ampliado" do atendimento transcultural familiar. O trabalho destaca, ainda, a importância do conhecimento de outras culturas e realidades para uma escuta mais aberta e horizontal em relação aos pressupostos culturais do paciente. Por fim, sustenta que a Clínica Transcultural, na medida em que supõe uma relação não hierárquica entre culturas e saberes, acolhendo e incluindo a "alteridade cultural" no interior do tratamento, pode inspirar uma prática psicanalítica que, efetivamente, considere e acolha as diferenças culturais existentes no país, ampliando seu alcance para estratos da população que têm dificuldade de acesso à psicanálise.

Palavras-chaves: psicanálise, Clínica Transcultural, migração, cultura, Moro


ABSTRACT

This work presents the birth and development of the Transcultural Clinic, a clinical model created with the objective of providing psychoanalytic care for the migrant population. Clinical vignettes illustrate how the three basic principles of the method - universality, complementarity and decentering - emerge in the "extended setting" of the transcultural family care. In addition, this work highlights the importance of knowing other cultures and realities for a more open and horizontal hearing in relation to patients' cultural assumptions. Finally, the work argues that, as the Transcultural Clinic supposes a non-hierarchical relation between cultures and knowledges, and includes "cultural alterity" in the treatment, it can inspire a psychoanalytic practice that effectively considers and embraces the cultural differences existing in Brazil, extending its reach to population subgroups that do not have access to psychoanalysis.

Keywords: psychoanalysis, Transcultural Clinic, migration, culture, Moro


RESUMEN

Este trabajo presenta el nacimiento y desarrollo de la Clínica Transcultural, un modelo clínico creado con el objetivo de proporcionar atención psicoanalítica a la población migrante. Las viñetas clínicas ilustran cómo los tres principios básicos del método - universalidad, complementariedad y descentramiento - aparecen en el "escenario ampliado" de la atención familiar transcultural. El autor destaca la importancia del conocimiento de otras culturas y realidades para una escucha más abierta y horizontal de los supuestos culturales de los pacientes. Finalmente, el autor sostiene que la Clínica Transcultural, en la medida en que asume una relación no jerárquica entre culturas y saberes, acogiendo e incluyendo la "alteridad cultural" dentro del tratamiento, puede inspirar una práctica psicoanalítica que efectivamente considere y acoja las diferencias culturales dentro del país, ampliando su alcance a estratos de la población que tienen dificultad para acceder al psicoanálisis.

Palabras clave: psicoanálisis, Clínica Transcultural, cultura, migración, Moro


RÉSUMÉ

Cet article présente la naissance et l'expansion de la Clinique Transculturelle, un modèle clinique créé dans le but de fournir des soins psychanalytiques à la population migrante. Des vignettes cliniques illustrent comment les trois principes de base de la méthode - universalité, complémentarité et décentrement - apparaissent dans le « cadre élargi » des soins familiaux transculturels. Ce travail souligne également l'importance de la connaissance d'autres cultures et réalités pour une écoute plus ouverte et horizontale par rapport aux présupposés culturels des patients. Enfin, il soutient que la Clinique Transculturelle, dans la mesure où elle assume une relation non hiérarchique entre les cultures et la connaissance, en accueillant et en incluant l'« altérité culturelle » dans le traitement, peut inspirer une pratique psychanalytique qui considère et accueille effectivement les différences culturelles dans le pays, en étendant sa portée aux couches de la population qui ont des difficultés à accéder à la psychanalyse.

Mots-clés: psychanalyse, Clinique Transculturelle, culture, migration, Moro


 

 

Nossa sala de espera é o mundo.
(M. R. Moro)

Se você quer ir rápido, vá sozinho;
se quer ir longe, vá acompanhado.
(Provérbio africano)

 

Um pouco do mundo que nos chega

Jamila nasceu em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo; é uma mulher bonita, esguia e bastante assertiva. Aos 22 anos precisou sair do país ameaçada pelas tropas do presidente Joseph Kabila, pois seu pai havia se tornado persona non grata do presidente. Na fuga para Angola, levou consigo sua filha de 4 anos, com quem dividiu uma travessia repleta de dificuldades e riscos. Foi em Luanda que conheceu o segundo marido, com quem teve outro filho. Foi lá também que surgiu o encantamento pelo Brasil, especialmente pelo Rio de Janeiro: "Vim esperando encontrar aquele Rio das novelas da Globo, mas encontrei muitas outras coisas, entre elas, conheci o racismo."

Agora, ali conosco, depois de um ano e meio frequentando a Clínica Transcultural, período no qual enfrentou diversas dificuldades como a gravidez da filha adolescente Malika e o nascimento do neto, Jamila, muito brava, desabafa:

Ela [filha] ficava saindo de casa com o neném, pra cima e pra baixo, para a casa dos amigos. Não é assim que se faz! No Congo a mulher, quando tem filho, fica resguardada em casa e, por um longo período, as outras mulheres da comunidade vêm cuidar dela, é assim.

Algum tempo depois, mais à vontade com nosso acolhimento e receptividade, nos dá a conhecer seu temor:

Sair assim, com o bebê para fora de casa, é perigoso, ele fica vulnerável aos feitiços, aos espíritos maus que podem entrar nele. Não vou deixar isso: ela [referindo-se à filha] pode sair de casa, mas o bebê vai ficar comigo.

No encontro seguinte, viemos a saber que ela havia rompido com a filha que saíra de casa para morar com amigos, "deixando", no entanto, o próprio filho com a avó. As tentativas de Malika se reaproximar da mãe, uma delas mediada por nós, são rechaçadas por Jamila que sente estar, assim, protegendo o neto.

Bakhita é uma mulher elegante, sua aparência delicada se revela não apenas no modo como se veste, parecendo "abraçar-se" a si própria com seu véu e xale, mas também pelos lindos bordados de hena que desenham suas mãos e pés. Estes, descobertos, contrastam com o corpo coberto. Ela e o marido, que não disfarça a contrariedade e desconforto por estar em uma consulta terapêutica rodeado de mulheres, são de origem muçulmana, naturais do Sudão do Sul. Estão casados há pouco mais de um ano e vieram para o Brasil por vontade exclusiva do marido na esperança de melhores condições econômicas. Ele, que por muito tempo resistiu a vir ao primeiro encontro, não mais consegue ver a mulher tão desanimada e chorosa; nada a alegra, e sua única satisfação são os poucos momentos de prazer ao lado da filha de 1 ano. Bakhita, ao contrário do marido, parece aliviada em poder expressar sua tristeza: sente muita falta da mãe, irmãs e tias. No Brasil moram afastados de qualquer comunidade sudanesa, o marido trabalha muito e Bakhita se vê invadida por uma saudade e tristeza imensas. Conta que já tentou participar de feiras, oferecendo pinturas de hena, porém "os organizadores preferem mulheres sírias, elas são sempre as escolhidas, eu nunca fui". Depois desse encontro inicial, Bakhita passa a vir ao atendimento sozinha, sem o marido, e a percebemos mais à vontade para expressar seu desalento e solidão. Nos chama atenção sua quase aderência à filha, como se esta servisse como um anteparo da sua relação com o marido. Alguns encontros mais tarde, talvez menos ameaçada, ela nos diz:

Sabe, quando eu venho aqui, é muito bom, eu me sinto um pouco como se estivesse rodeada das minhas tias e irmãs. Lá no Sudão quando a mulher casa, mesmo indo morar na casa da família do marido, ela volta e passa o fim de semana todo na casa da mãe sem o marido e as conversas são principalmente reclamações da família do marido [ri discretamente e com cumplicidade]. Faço um pouco isso aqui, como se eu fosse na casa da minha mãe, e isso me faz bem, me ajuda depois quando volto para casa.

Como receber e metabolizar os sofrimentos e agruras das pessoas que nos procuram em situações como essas, nas quais o traumático da situação de deslocamento, proporcionada pela migração e refúgio, está enredado à perda de referências culturais que, como sabemos, são ingredientes fundamentais na constituição da subjetividade e, portanto, das construções sintomáticas? Não seriam os referenciais culturais, por isso mesmo, importantes ferramentas para a construção das possíveis "saídas" dos impasses advindos dos conflitos psíquicos? E, ainda, como ouvir e empatizar com aquele que vem de fora, sem, no entanto, buscar naturalizá-lo, neutralizá-lo, negando sua alteridade e retirando-o da condição de estranho, de Unheimlich (Freud, 1919/2010) que tanto nos assusta e ameaça?

 

Clínica Transcultural: primórdios e fundamentos

A Clínica Transcultural é um dispositivo clínico relativamente recente que introduz a identidade cultural como elemento fundamental do trabalho analítico, na medida em que valoriza e inclui as representações culturais do paciente no interior do tratamento. Tendo como ponto de partida a relação horizontal, não hierárquica entre culturas, contribui para a reflexão sobre a interação entre a clínica e a cultura nos tempos atuais, nos quais convivem a globalização e o fechamento de fronteiras.

Clínica essa que se desenvolveu a partir da Etnopsicanálise, disciplina fundada pelo antropólogo e psicanalista George Devereux na década de 1960. De origem húngara, Devereux estudou antropologia na França herdando de seu professor, o eminente antropólogo Marcel Mauss - a importância de considerar os fenômenos sociais como "fenômenos sociais totais" (Mauss, 1950/2017), ou seja, como expressão da complexa relação entre as diversas dimensões (econômicas, jurídicas, religiosas) da vida social e psicológica de uma determinada cultura. Imbuído do valor da interdisciplinaridade, e em coerência com a preocupação da antropologia da época, Devereux centra seu interesse na concepção de saúde de diversas etnias e no desvendamento da maneira pela qual os elementos culturais participam da formação dos sintomas mentais. Consagrando grande parte dos seus estudos aos índios Mohave no Arizona (eua), inicia lá sua formação psicanalítica, tornando-se membro da International Psychoanalytical Association (IPA). Ingressa, em seguida, na clínica de Karl Menninger, na qual encontra um novo campo de experiências transculturais tornando-se "um dos grandes freudianos interessado na questão da antropologia e preocupado com a universalidade" (Roudinesco & Plon, 1997/1998).2 Fiel às perspectivas do pensamento antropológico e sociológico francês, bem como de sua formação analítica, Devereux desenvolve um método de intervenção clínica que permite operacionalizar as interações entre os níveis coletivo, intersubjetivo e intrapsíquico (Devereux, 1970). Ele acredita que a especificidade dos fenômenos humanos reside, justamente, na necessidade de um discurso duplo, complementar, mas não simultâneo, da antropologia e da psicanálise. Posteriormente, um de seus alunos, Tobie Nathan, psicólogo nascido no Cairo, formula um dispositivo grupal para cuidar das famílias provenientes de sociedades estrangeiras, fundando o trabalho com migrantes no Hospital Franco-Muçulmano Avicenne em Bobigny, na periferia de Paris. Nathan sustentava, assim como Devereux, que existe no mundo uma série de sistemas terapêuticos eficazes, não redutíveis ao saber "ocidental" e que portanto deveriam ser encarados como "verdadeiros" sistemas conceituais e não como crenças vãs (Nathan, 1993, citado por Barros, 2009).

Aluna de Tobie Nathan e imigrante como seus antecessores, Marie Rose Moro, psiquiatra e psicanalista da Sociedade Francesa de Paris, também convencida da importância do reconhecimento das formas de cuidar e tratar presentes nos diversos sistemas culturais, cria, em 1985, no Hospital Franco-Mulçumano, uma unidade de serviço transcultural para família de migrantes, a Clínica Transcultural.

A Clínica Transcultural está assentada em três princípios básicos da Etnopsicanálise conforme Devereux. O primeiro deles, a universalidade psíquica, considera que é o funcionamento psíquico, comum a todos nós, o que define o ser humano. Deste postulado decorre a "necessidade de dar o mesmo status (ético, mas também científico) a todos os seres humanos, às suas produções culturais e psíquicas, às suas maneiras de viver e pensar, mesmo que elas sejam, às vezes, desconcertantes!" (Devereux, 1970, citado por Baubet e Moro, 2013, p. 33).3 A importância do duplo discurso não simultâneo da psicanálise e da antropologia justifica o nome do segundo princípio, o complementarismo.

O terceiro deles, o descentramento, parte da constatação de que ambos, o terapeuta e o paciente, são sujeitos culturais e portanto apresentam inúmeras filiações que lhes são próprias: de gênero, cor de pele, classe social, entre outras; filiações essas que apresentam significados e sentidos afetivos diversos e implicam formas de sociabilidade e de organização social também diferentes. As inúmeras maneiras de entender o que é uma família, uma mulher, um homem, um bebê determinam múltiplos modos de parentalidade, de relação amorosa e de convívio social. O descentramento é, justamente, a possibilidade do acolhimento - não apenas teórico - da multiplicidade de repertórios culturais existentes. Trata-se, portanto, de um processo de deslocamento da própria cultura.

Para nós, psicanalistas, não é difícil compreender e teorizar sobre o descentramento, sobretudo porque cremos fazê-lo cotidianamente com nossos pacientes. No entanto, na prática é profundamente difícil "desnaturalizar" o olhar e relativizar nossas próprias referências culturais, pois nelas incluímos maneiras de pensar e sentir constitutivas de nossas experiências mais fundantes. Um fator agravante para essa dificuldade deve-se ainda a uma especificidade da nossa condição: somos, na grande maioria, psicanalistas brancos fruto da colonização europeia e, portanto, internalizamos uma forma de ver o mundo e a nós mesmos deveras eurocêntrica e colonial. Temos a tendência consciente e inconsciente (herança das nossas experiências mais elementares) de considerar o homem branco heterossexual como universal, ou seja, como a norma, o padrão de humanidade (Fanon, 1952/2008). O que implica, também, um repertório intelectual (nossas teorias, portanto) herdado, predominantemente, da sociedade europeia ocidental.4

O descentramento só é possível a partir de uma postura de suspensão da inclinação epistemológica (cultural e não "natural") de compararmos o que desconhecemos com aquilo que nos é conhecido e, em uma lógica fálica, atribuir uma valoração hierárquica a essa diferença. O descentramento não se faz, portanto, de um modo espontâneo; é preciso deter o movimento de comparação, contextualizar a situação, para então descentrar-se (Moro, 2017). Daí o papel fundamental da antropologia. Não se trata de conhecermos profundamente outras culturas - o que não seria nem mesmo possível - e sim de, ao nos familiarizarmos mais profundamente com a diversidade humana, sermos capaz de uma postura não etnocêntrica e sim empática, receptiva e sem julgamento em relação às representações culturais do paciente. O conhecimento dessa diversidade, bem como de nossa própria história e cultura é fundamental para nos ajudar a questionar situações que, de forma consciente ou inconsciente, julgamos "naturais" ou evidentes. A possibilidade de experimentar outras realidades, estudar outras culturas formalmente ou mesmo conhecer outros modos de vida por meio da literatura pode nos tornar mais sensíveis ao descentramento.

Nós, do Centro de Atendimento da SBPSP, temos utilizado um dispositivo psicoterapêutico inspirado na Clínica Transcultural de Marie Rose Moro, adaptado, porém, à realidade brasileira. Ao buscar integrar os vários elementos da complexa experiência da migração e do refúgio, tais como o próprio acontecimento migratório, suas consequências potencialmente traumáticas e as representações culturais do paciente, tal dispositivo tem se mostrado bastante eficaz na promoção de transformações subjetivas relacionadas aos processos de deslocamento.

No atendimento familiar o setting terapêutico espelha e "faz funcionar" os princípios descritos anteriormente, por isso trabalhamos com um setting ampliado formado por um grupo de terapeutas. Se os terapeutas tiverem origens variadas (descendência ou nascimento em outros países, por exemplo), tanto melhor, pois as lógicas e representações culturais são elementos constitutivos desse setting mestiçado, favorecendo o descentramento (Moro, 2015). A possibilidade de transitar entre a língua materna e a língua do país receptor é garantida pela presença de um tradutor, que funciona como uma ponte entre as duas culturas. Incluímos também, nos primeiros encontros, o representante da instituição que fez o encaminhamento, já que eles portam uma "parte" da história, já tão fragmentada, daquela família.5

 

O deslocamento e a recepção, entre perdas e feridas

O acontecimento migratório, além de social, é também um acontecimento psíquico (Moro, 2015), uma vez que "a ruptura com o ambiente externo, de origem, é acompanhada por uma ruptura do quadro cultural internalizado do paciente que até então lhe oferecia importantes referenciais simbólicos identitários". Cada cultura disponibiliza ao sujeito uma multiplicidade de elementos com os quais ele constrói uma chave de leitura do mundo e a partir dos quais confere sentido às suas experiências. No complexo acontecimento migratório o sujeito estará exposto à perda desses referenciais internalizados que o ajudam a elaborar suas vivências e será desafiado a enfrentar situações, na maioria das vezes, de vulnerabilidade e precariedade no país de recepção.

Tal acontecimento comporta, portanto, um grande potencial traumático, pois exigirá do sujeito uma reorganização interna em um contexto no qual se encontram barreiras linguísticas, sociais e culturais significativas, bem como condições de recepção no país de destino nem sempre favoráveis (devido principalmente à discriminação e ao racismo). A isso se soma a situação que precede o deslocamento: geralmente marcada por graves conflitos e dificuldades de várias ordens, além de sentimentos de perda e de ambivalência.

Cada cultura é um sistema dinâmico composto de uma série de elementos específicos: uma língua, um sistema de parentesco, procedimentos com o corpo, técnicas de cuidados físicos e emocionais e modos de fazer, como a culinária, as artes, entre outros (Moro, 2015). Como esses elementos são organizados em representações e enunciados que constituem o universo de referência daquela cultura, iremos encontrar, no discurso de pacientes, imagens culturais como divindades, entidades, rituais, modos de compreensão e cuidados que, embora estranhos a nós, são inscrições culturais e importantes mecanismos de produção de sentido grupal, familiar e individual do paciente. Assim sendo, não podem ser tomadas apressadamente como formações delirantes, negação ou outra categoria patologizante.

Certa vez, a equipe de enfermagem de uma maternidade estava muito desconfortável porque a paciente (natural da Nigéria) recusava-se a amamentar seu filho recém-nascido. A equipe interpretou a recusa como uma negligência da jovem mãe, razão de seu incômodo. Quando a mãe pôde ser ouvida numa abordagem transcultural, confidenciou que não iria amamentá-lo pois sabia-se enfeitiçada e, caso o fizesse, estaria enfeitiçando-o também. Sua recusa situava-se, portanto, no campo do cuidado e não da negligência. Configurava-se como uma tentativa de mobilizar a dimensão de seu pertencimento cultural, tão necessário nos momentos de vulnerabilidade para mulheres migrantes (como a gravidez, o parto e a construção das primeiras interações mãe-bebê). A culpabilização e desqualificação, pela equipe do hospital, dos pressupostos culturais da jovem mãe incrementava seu sofrimento, interferindo na qualidade da relação que esta inaugurava com o filho.

 

Jamila, quando os feitiços ameaçam

Voltemos ao caso de Jamila, que abre nosso texto. Ela sofria ao sentir que sua filha, Malika, não tomava conta do próprio filho do modo "certo"; para ela, seu neto recém-nascido estava vulnerável ao acompanhar a mãe na casa das amigas, suscetível aos feitiços que poderiam invadi-lo e possuí-lo. O nascimento do neto despertara em Jamila (mesmo estando no Brasil há mais de 12 anos) modelos simbólicos de parentalidade (conscientes e inconscientes) sustentados em ideais culturais internalizados da sua terra natal. Muito distintos, porém, daqueles com os quais sua filha adolescente, crescida no Brasil, identificava-se. Esse desencontro no "modo de ser mãe" causava intensos conflitos entre as duas, cada uma privilegiando referenciais de parentalidade de determinada cultura, o que trazia inúmeras consequências para a relação entre as duas gerações da família.

Mauss (1950/2017), antropólogo francês, classifica os grupos humanos em "povos com berços" e "povos sem berços". O autor chama a atenção para o valor crucial do estudo das chamadas "técnicas do corpo", ou seja, o modo como cada sociedade impõe ao indivíduo um uso rigorosamente determinado de seu corpo (Lévi-Strauss, 2017). No Ocidente, culturas ditas "com berço", como a nossa, valorizam bastante as trocas visuais e auditivas. O olhar terno e amoroso da mãe para seu bebê é um dos maiores paradigmas dessa interação primordial, haja vista a imagem, tão presente em nosso imaginário social, da Virgem Maria segurando e olhando apaixonadamente para Jesus. Além do olhar, também nos acostumamos a falar desde cedo com nossos filhos; acreditamos não apenas na transmissão de afeto pelo ritmo e tom da voz materna, como também na influência de tais modulações no desenvolvimento do psiquismo da criança. Por outro lado, nossos bebês são pouco manipulados e massageados; desde cedo são colocados e transportados em carrinhos de bebê para que possam ver o mundo, mantendo assim distância do corpo dos pais. Tais modalidades de interação mãe-bebê estão profundamente entrelaçadas a pressupostos da cultura ocidental que pensa o bebê como um ser unido simbioticamente à mãe e que terá de empreender um longo processo de individuação. Isso porque, na nossa cultura, o indivíduo autônomo é considerado como um valor e um ideal em si.

Já nas culturas "sem berço", mais coletivistas, considera-se que os bebês são enviados dos ancestrais, por vezes de divindades e deuses, cabendo à mãe portá-lo, por um longo tempo, perto de si e, com a ajuda de massagens e rituais, "humanizá-lo" (Moro, 2010). A separação da mãe só se dará mais tarde, após esse processo de inscrição na esfera humana. O olhar não é privilegiado na interação com o bebê, como nas culturas ocidentais; há mesmo uma desconfiança do olhar direto, sinal de maldade e inveja. Por outro lado, o contato com o corpo e cheiros da mãe são muito presentes no universo do recém-nascido, pois, ao serem portados nas costas e acompanhando a mãe nas suas tarefas diárias de trabalho, são estimulados sensorialmente pelos diversos odores que dela emana. Como o corpo do bebê acompanha o corpo da mãe nos movimentos do dia a dia, ele é estimulado fisicamente de uma maneira que é incomum entre nós ocidentais.

De posse do conhecimento antropológico e psicanalítico de que transmitimos a cultura de uma geração a outra através do corpo dos bebês (Freud, 1905/2016; Mead, 1969), como não valorizar e integrar a modalidade de maternagem de Jamila, na tentativa de construir uma possibilidade de elaboração do conflito familiar entre ela e Malika? E, ainda, não poderiam as teorias da avó, na medida em que mobilizam afiliações e instâncias de pertencimento profundas (frutos de seu processo identificatório), contribuir para a elaboração dos conflitos intra e intersubjetivos, dada a sua eficácia simbólica?

É importante considerar que Jamila havia, ela também, engravidado em seu país e, afeita a encontros e festas juvenis, vê seu pai tomar-lhe a filha, criando-a até sua fuga para Luanda. Na ocasião do nascimento do neto, no Brasil, ela reproduz ativamente o que havia vivido passivamente, "tirando o neto" de sua filha, numa clara repetição transgeracional. Evento esse que deve ser ouvido e interpretado analiticamente.

Acreditamos que o contexto clínico transcultural, ao abraçar e incluir diferentes lógicas culturais, complementarmente ao olhar e manejo psicanalítico, pode contribuir para que Jamila e Malika possam, juntas, "traduzir" e recriar suas parentalidades.

 

Bakhita e a comunidade das mulheres

Nos dediquemos agora a Bakhita, envolta na tristeza das perdas e da saudade. Sua solidão e desamparo estavam muito presentes nos primeiros encontros, nos quais o marido pouco era mencionado. Após um atendimento, no qual ela falava sobre sua relação com a filha e as saudades das mulheres da família, uma de nós expressa, espontaneamente, num claro exemplo de contratransferência cultural:6 "Ela está fusionada com a filha, o pai não entra nessa relação, não tem o terceiro."

No entanto, se nos debruçarmos sobre a cultura de Bakhita, veremos que nela, como em outras sociedades tradicionais coletivistas, o indivíduo é pensado em uma interação constante com seu grupo de pertencimento. Trata-se da família extensa na qual as mulheres da comunidade participam e auxiliam a mãe na educação dos filhos, não somente concreta, mas simbolicamente, uma vez que partilham práticas, ritos e rituais. Elementos culturais esses que, compartilhados, garantem a significação do vivido em uma trama de sentidos coletivos. Bakhita tentava reconstruir ali conosco, na nossa "roda de mulheres", um traço do grupo social feminino de irmãs e tias que tanto lhe fazia falta, tentando sair de sua solidão elaborativa (Moro, 2015). No decorrer dos atendimentos, o grupo de terapeutas, em um trabalho interno de continência e reverie (Bion, 1962), transformava as experiências traumáticas de Bakhita em sonho e transmitia esses pensamentos alfas/sonhos para ela, ajudando a elaboração e coconstrução de um novo sentido cultural no qual ela pudesse habitar juntamente com a filha e o marido. No decorrer dos encontros o choro tornou-se menos frequente e já pudemos vislumbrar alguns momentos de satisfação no rosto de Bakhita.

Essa experiência nos mostra a importância de uma certa suspensão de nossas teorias, concomitantemente à recepção e consideração aos pressupostos culturais da paciente. Nosso acolhimento e continência ("como na casa da minha mãe") funcionavam como uma passagem não apenas de sua vida de solteira para a de casada, mas também de sua cultura de origem à cultura de recepção. Tal como um objeto transicional (Winnicott, 1953/1975).

Em outras situações, o contrário pode acontecer: o sofrimento advindo do trauma migratório pode provocar uma cisão psíquica profunda nos pais que se recusam, então, a transmitir sua língua e suas referências identificatórias aos filhos, privando-os de um contato com uma parte importante e constitutiva de sua própria história. Ou acreditam que, ao não falar a língua natal e excluir hábitos e costumes familiares pregressos, estão contribuindo para a adaptação dos filhos no país atual. Foi o caso de Latifa, moça haitiana que, desejando que sua filha aprendesse o português mais rápido, praticamente cessara de conversar com ela. A menina, que estava quase sendo expulsa da escola devido aos seus acessos de raiva e gritos intensos, fora alijada de um significativo repertório afetivo, familiar e cultural.

 

Kalil, o adolescente entre dois mundos

Kalil, que fora encaminhado depois de uma tentativa de suicídio, anuncia, por mensagens no aplicativo WhatsApp, que precisa contar o que lhe acontece sem a presença dos pais. Queixa-se de que não tem conseguido dormir e tampouco estudar, logo ele que sempre foi ótimo aluno; sente-se agora "muito, muito cansado". Ele tinha 4 anos quando sua família, de origem síria muçulmana, migrou para o Brasil. Agora, aos 15, sente-se profundamente triste e desanimado. Em casa procura se isolar de todos, detesta o autoritarismo do pai em relação aos filhos e à mãe. Pretende trabalhar, para sair de casa assim que possível. Mas, no momento, diz não conseguir concentrar-se nos estudos de "tanto cansaço". Mais tarde acrescenta: "e tem o namoro escondido, com um menino; a gente se gosta muito". A relação clandestina entre eles o coloca em estado de alerta e temor constantes: "na Síria isto é totalmente proibido, tem casos em que os pais espancam ou abandonam os filhos quando descobrem coisas assim. Meu medo é que meus pais descubram mas eu não consigo fazer nada".

Sabemos que na adolescência o ressurgimento das exigências pulsionais desestabilizam os esquemas edipianos pregressos, demandando uma nova configuração das identificações. Uma fase que requer grande trabalho psíquico dos jovens, uma vez que se faz necessário um intenso processo de reavaliação e renegociação dos valores e formas de ser, pensar e agir, internalizados. Kalil, situado entre duas culturas cujos padrões culturais de gênero e de orientação sexual são bastante diferentes, enfrentava um trabalho ainda mais árduo e "cansativo".

As questões de pertencimento cultural e sentimentos de traição são elementos comuns na clínica dos adolescentes filhos de migrantes ou de casais mistos, pois o "êxito" (ou sua ausência) na segunda geração da família no país de recepção é, muitas vezes, tomado como sinal de sucesso ou fracasso do projeto migratório dos pais.

 

Uma Clínica Transcultural brasileira para o Brasil

Embora o fenômeno da migração comporte fatores potencialmente traumatizantes, como alguns destacados aqui, ela contém também possibilidades criativas e enriquecedoras, caso as diferenças possam ser efetivamente acolhidas e a diversidade valorizada.

Nossa experiência com a população migrante que chega ao Brasil nos mostra como esse fenômeno social dialoga com questões fundamentais do nosso país, iluminando nosso racismo e machismo estruturais, a precarização do trabalho e as dificuldades nas esferas do direito à educação, à moradia e à saúde. A vulnerabilidade e exclusão social, típicas da nossa profunda desigualdade, se acentuam ainda mais na população migrante.

A Clínica Transcultural nos obriga, assim, a refletir sobre nossa capacidade de acolher e aceitar as formas de alteridade cultural no interior da nossa própria sociedade. E nos interroga sobre o lugar ao qual temos relegado a população de afrodescendentes e o povo originário do nosso país (marcados, há mais de 500 anos, pela violência e violação de direitos): à periferia do cuidado da saúde mental.

O Brasil, "um país traumatizado que jamais acertou as contas com as suas dores terríveis, obscenas da colonização e da escravatura" (Borges, 2017, p. 9), possui milhares de migrantes internos e uma população indígena que se encontra refugiada dentro do próprio país. O racismo à brasileira, um "crime perfeito" segundo Kabengele Munanga (2017), já que encoberto pelo mito da "democracia racial" e da "mestiçagem", continua a relegar a população negra ao estatuto de sub-humanidade, de corpos matáveis - concreta e simbolicamente - através da invisibilidade, da violência policial e do encarceramento em massa. Um apartheid social, econômico e cultural.

O racismo estrutural, presente na dinâmica das relações sociais, estrutura também subjetividades. Uma sociedade cujo ideal do eu é o branco determina processos de identidade e identificação nos quais os brancos se identificam com o lugar de poder, vantagens e privilégios; enquanto os negros, com o lugar de subalternidade, inferioridade e invisibilidade. O mesmo pode ser dito em relação às questões de gênero e classe, daí a necessidade de essas categorias serem pensadas em intersecção. O racismo revela como o sofrimento mental não é uma questão apenas íntima, mas também social (Almeida, 2018). E que subjetividade e política são indissociáveis.

Para elaborarmos nossa herança traumática da colonização, faz-se necessário nos aproximar dos "outros" do nosso país. Conhecer seus sistemas culturais, suas elaborações de mundo, crenças e práticas terapêuticas, assim como as diversas formas de dominação às quais estão submetidos e as formas de resistência graças às quais têm sobrevivido. Assim como questionar o lugar de poder e privilégio da (nossa) branquitude. É preciso incluir também, dentre as teorias com as quais nos formamos e nutrimos, aquelas de pensadores negros que se debruçaram sobre os sofrimentos advindos do racismo: Frantz Fanon, Grada Kilomba e os brasileiros Lélia Gonzalez, Virgínia Bicudo, Neusa Santos Souza, Ignácio Paim, entre tantos outros.

O debate ainda é inicial, mas arriscamos pensar que temos na Clínica Transcultural um método prático e teórico útil para o desenvolvimento de um trabalho que respeite e acolha a diversidade cultural brasileira.

Sabemos que desde suas origens a psicanálise se constituiu na e através da alteridade: Freud ousou atribuir valor à fala da histérica, desmoralizada pelos médicos da época. E em seus textos destacou a importância fundamental do outro na constituição subjetiva do sujeito, implodindo a relação dicotômica entre o individual e o social (Freud, 1921/2011).

Assim, nos parece ser responsabilidade da psicanálise, honrando sua história e fundamentos, cuidar tanto dos inseridos no laço social quanto daqueles que foram dele excluídos, para que possamos, juntos, desenhar outros destinos, não apenas pessoais, mas coletivos.

 

Referências

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Recebido em em: 30/7/2021
Aceito em: 2/8/2021

 

 

1 Agradeço às colegas da Clínica Transcultural da SBPSP presentes nos atendimentos: Maria Cecília Pereira da Silva, Maria Augusta Gomes, Ana Hoffman, Fushae Yagi, Maria Cristina Brisighello Boarati, Maria do Carmo Meirelles do Amaral, Maria José Dell'Acqua Mazzonetto, Marília Modesto, Wadad Ali Hamad Leoncio.
2 A relação entre a antropologia e a psicanálise tem uma história pouco amistosa, a começar pela crítica de Bronislaw Malinowski - antropólogo que inaugura a antropologia moderna introduzindo o método da "observação participante" - à universalidade do Complexo de Édipo. O antropólogo, ao se instalar permanentemente na ilha Trobriand na Nova Guiné, aprendendo a língua nativa e convivendo com sociedades matrilineares, pôde observar não apenas a grande liberdade sexual dessa população como também a ausência da importância do pai para o desenvolvimento das crianças. Tomando conhecimento da crítica do antropólogo, Freud convida seu colega etnólogo e psicanalista Géza Róheim a reagir a ela. Róheim, na volta de sua viagem à ilha Trobriand, argumenta que Malinowski não havia se atentado para processos fantasmáticos do Complexo de Édipo. Chama nossa atenção, no entanto, a escassa bibliografia a esse respeito tanto entre os psicanalistas como entre alguns biógrafos de Freud.
3 Tradução livre da autora.
4 Há alguns anos tive a oportunidade de participar de um encontro sobre Sabedorias Milenares Indígenas com o pajé Guarani Isaque Karay Augusto, da aldeia Tekoá Yvy Porã. Pretendia me aproximar da cosmovisão e do modo de vida do povo Guarani. Na tentativa de aclarar algum elemento de sua cultura, o pajé lança mão de comparações com a nossa cultura, referindo-se a nós como "vocês, os homens brancos". Embora sabendo-me incluída nessa categoria, senti um incômodo antes não experimentado. Logo percebi que se tratava de um mal-estar provocado pelo fato de eu não ser mais a referência, eu era o Outro, o diferente; visto e percebido fora do lugar de padrão. Foi assim que me dei conta do quão estrangeiro é, para nós brancos no Brasil, o lugar da "não centralidade", do alheio ao referente.
5 Optamos pelo termo "país de recepção" em vez de "país de acolhimento" para manter a neutralidade afetiva da qualidade da recepção, que pode ou não ser sentida como acolhedora.
6 A contratransferência cultural é o modo como o analista se posiciona em relação à alteridade cultural do paciente, seus modos de conceber e atuar sobre o mundo. Aspectos históricos, geográficos e políticos estão presentes na transferência e contratransferência (Moro, 2015).

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