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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo July/Dec. 2021

 

DIÁLOGOS

 

Comentários

 

 

Miriam Debieux Rosa

Psicanalista, professora titular do Programa de Psicologia Clínica da USP, onde coordena o Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (Psopol) e o Grupo Veredas: Psicanálise e Migração. Autora dos livros "Histórias que não se contam: psicanálise com crianças e adolescentes" e "A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento". São Paulo / debieux@terra.com.br

 

 

O Jornal de Psicanálise tem uma proposta instigante para a qual fui convidada a colaborar: comentar o artigo "Clínica transcultural: o exercício de uma psicanálise decolonial", de Marcella Monteiro de Souza e Silva. Nele, a autora apresenta um dispositivo psicoterapêutico inspirado na clínica transcultural, de Marie Rose Moro, adaptado à realidade brasileira e que tem sido utilizado pela equipe que atende imigrantes do Centro de Atendimento da SBPSP. Souza e Silva considera que, por integrar os vários elementos da complexa experiência da migração e do refúgio, o dispositivo transcultural tem se mostrado bastante eficaz na promoção de transformações subjetivas relacionadas aos processos de deslocamento.

O artigo nos brinda com uma articulação entre clínica e cultura por meio da retomada do nascimento e do desenvolvimento da clínica transcultural, especialmente na França, apresentando seus principais proponentes, assim como as questões e impasses clínicos enfrentados no atendimento psicoterapêutico da população imigrante. Tal clínica, proposta em articulação com a antropologia, considera como integrantes da sua prática os atravessamentos culturais, as particularidades das várias visões de mundo, a variedade da produção de sentido e de sofrimento, ressaltando como ética reguladora, segundo a autora, uma relação não hierárquica entre culturas e saberes, acolhendo e incluindo a alteridade cultural no tratamento. Vinhetas clínicas de imigrantes atendidos no Centro de Atendimento da SBPSP ilustram os três princípios básicos do método transcultural - universalidade, complementarismo e descentramento -, destacando também o setting ampliado no atendimento transcultural familiar.

O trabalho faz também um apanhado crítico e bem fundamentado da questão migratória na sociedade brasileira. Tece considerações sobre os atravessamentos das mazelas sociais e históricas presentes na sociedade brasileira, entre os quais destaca o racismo e machismo estruturais, a precarização do trabalho e as dificuldades nas esferas do direito a educação, moradia e saúde. Alerta-nos para a vulnerabilidade e a exclusão social típicas da nossa profunda desigualdade que acentuam ainda mais na população migrante. Por fim, tendo por base as questões que o encontro entre culturas incita à clínica psicanalítica, propõe uma clínica transcultural brasileira e, embora não a desenvolva, uma psicanálise decolonial.

Comentar um trabalho supõe estabelecer um diálogo com os pontos que se tem em comum com ele e, também, convida a uma posição estrangeira ao texto a fim de vislumbrar suas questões e desdobramentos. O convite para este comentário certamente está vinculado à produção do Grupo Veredas: psicanálise e imigração,1 do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Veredas é um coletivo de psicanalistas que desenvolve práticas psicanalíticas clinicopolíticas junto a imigrantes e refugiados, articulado com as principais instituições de acolhimento em São Paulo. Meus comentários sobre o trabalho de Souza e Silva serão feitos com base na perspectiva do Veredas, que tem várias preocupações e perspectivas em comum com o artigo - devo ressaltar alguns pontos e questões que o artigo põe em movimento.

Um primeiro destaque será sobre a temática e a articulação entre sujeito e política que propõe. O artigo aborda a imigração e o refúgio, que têm se tornado temáticas prioritárias no mundo, e no Brasil isso não é exceção. Em sua face política e econômica, constatamos o acirramento da segregação e discriminação e o fechamento das fronteiras, além das vicissitudes subjetivas da imigração forçada e do encontro com outras culturas e línguas.

Entendemos que tal acirramento é fruto da atual gestão social e política na lógica da guerra que deixa fora da cena o contexto histórico, econômico e político produtor das tensões sociais e das imigrações em massa, que dão margem a uma política repressiva que suspende os direitos humanos e garantias constitucionais para supostamente garantir a segurança. O medo se torna o afeto político central, ladeado ao empuxo ao ódio, incitado no laço social, que apaga os conflitos sociais e políticos e desarticula os ideais coletivos e civilizatórios. Em tempos de medo, ódio e relações sociais paranoicas, faz-se preciso nomear o inimigo - o ódio ao imigrante ganha destaque e se torna pauta política.

O Brasil se considera acolhedor e aberto aos imigrantes já que constituído por inúmeras levas de imigrações de vários povos. No entanto, essa imagem idealizada não se confirma, dadas as violências e exploração dessa população quando situada na profunda e persistente desigualdade social.

A questão política se destaca e se enlaça na produção do sofrimento sociopolítico aos imigrantes, incitando a psicanálise a rever ou ampliar o escopo das teorias e a construir estratégias clínicas de acolhimento daqueles marcados como alvos de segregação por questões políticas, econômicas, culturais, religiosas e de gênero, entre outras. Trata-se do que temos chamado de psicanálise implicada com as questões do seu tempo. Grupos sólidos de psicanalistas que migraram para contextos periféricos - em que os marcadores sociais de gênero, classe, raça e cultura decidem como a vida e a morte acontecem - se dedicam a construir estratégias e táticas clínicas nesses contextos. O artigo aqui apresentado é bem-vindo, pois está no campo desses debates atuais. Enfatizo também a importância de sua publicação, dado que muitos centros de atendimento ao imigrante estão sendo abertos no Brasil.

Um segundo ponto do artigo que ressalto é sobre as interfaces entre política e desejo nos deslocamentos territoriais e psíquicos, que nos lembram de que não há apenas sofrimento, mas um sujeito que pulsa e deseja e, por isso, embrenha-se na aventura de migrar, de deslocar-se. Nessa direção, vale lembrar que a função psíquica da migração se relaciona com o deslocamento, uma das leis do inconsciente freudiano que destaca a condição itinerante do desejo. Temos destacado que os deslocamentos se referem à condição errante do desejo e são necessários aos processos criativos. Desse modo, a figura do imigrante e do refugiado tematiza o desafio do ser humano diante das profundas transformações dos nossos tempos, que incitam a buscar novas formas de relações sociais.

Isto posto, pode-se pensar que a sideração do imigrante, quando lhe é exigida uma reorganização subjetiva nos novos contextos linguísticos, sociais e culturais, não necessariamente promove traumatismos ou a desterritorialização, sendo primordial não patologizar tais movimentos psíquicos. Estes podem ser equivalentes a outros momentos de crise e transformação, que atualizam os impasses da transmissão da cultura. Não é coincidência que as vinhetas clínicas apresentadas no artigo se referem a dois desses momentos, à constituição da maternagem e ao tempo da adolescência. Há outros momentos, descritos pela autora, em que será preciso pôr em jogo toda uma gama de identificações, âncoras culturais, valores e afetos para um reposicionamento do sujeito - no caso do imigrante são momentos que dão uma nova volta de articulação frente às suas escolhas.

A migração territorial envolve esse processo psíquico, mas também mobiliza e enlaça motivações sociais, políticas e econômicas - a relação com a nova terra e os novos laços terão as marcas desses outros processos. Será, não a imigração, mas a situação política particular dos imigrantes forçados, fruto de processos de exclusão e abuso social e político e alvo do ódio, que promoverá o que temos nomeado de sofrimento sociopolítico, assim como a desterritorialização. Isso se dá porque comparecem discursos sociais que associam o imigrante, seja a um inimigo público, seja a uma mera vítima da violência, condição que naturaliza e despolitiza a violência sofrida e convida ao assujeitamento a qualquer condição de vida que lhe é oferecida. Desse modo, a questão política se destaca na produção do sofrimento sociopolítico e deve estar inserida nas práticas clínicas.

A boa nova é que os imigrantes e refugiados são testemunhos vivos da capacidade humana de superar violências e dores, assim como demonstram as possibilidades de construções reorganizações criativas perante as profundas transformações sociais de seu tempo.

O terceiro ponto trabalhado no artigo é a questão da transmissão da cultura e da hierarquização entre culturas. O texto destaca como cada cultura disponibiliza ao sujeito uma multiplicidade de elementos com os quais ele constrói uma chave de leitura do mundo, a partir dos quais confere sentido às suas experiências. Enfatiza que cada cultura é um sistema dinâmico composto de uma série de elementos específicos: uma língua, um sistema de parentesco, procedimentos com o corpo, técnicas de cuidados físicos e emocionais, além de modos de fazer, como a culinária e as artes, que podem ser estranhos a nós. Assim, faz um alerta importante em relação a interpretações patologizantes de processos culturais.

Acrescentamos às considerações da autora que cada uma dessas chaves culturais é um elemento fundamental para construir dispositivos clínicos. Ponho em análise se a ênfase estaria em uma clínica transcultural para os imigrantes ou em um dispositivo transcultural - a autora utiliza os dois termos. Penso que a clínica com os imigrantes incita a que inventemos modos de fazer clínicos e o dispositivo transcultural é uma dessas importantes invenções, mas não a única.

No Veredas optamos, em vez de uma clínica com ou para imigrantes, por uma clínica migrante, na qual emerge claramente que o psicanalista precisa se deslocar de sua cultura, classe social, valores, para escutar o outro na diferença radical. Portanto, vários serão os dispositivos a ser inventados a cada caso, a partir da abertura do inconsciente.

Destaco um dispositivo que nos tem sido fundamental e que não encontrei debatido no artigo: a rede transferencial, que tem várias faces, a começar pela problematização do estabelecimento da transferência, dado que o imigrante se apoia mais nas instituições de acolhimento do que em um modo cultural de tratamento do sofrimento, como é a clínica psicanalítica habitual. Também se refere a estabelecer redes entre pares e ímpares, nas instituições de saúde, educação e direitos humanos será fundamental para a inserção do imigrante na sociedade. Mais ainda, há a rede entre os serviços que acolhem os imigrantes em suas variadas demandas e urgências sociais. Entendemos que, dada a complexidade da clínica diante dos processos imigratórios e dos atravessamentos sociais e políticos, tais redes são fundamentais à clínica psicanalítica.

Por fim, destaco que a proposta do artigo nos incita a refletir sobre a formação do psicanalista e a transmissão de sua ética. O trabalho ressalta a importância da antropologia na proposta do dispositivo transcultural e também remete a filósofos e a cientistas sociais para problematizar os processos de imigração. Como este, raro é hoje um artigo que, mesmo se remetendo à clínica psicanalítica, não precise de outros suportes epistêmicos para situar o caso em suas faces clínica, social e política.

Desse modo, a problemática das segregações e das desigualdades sociais, presentes na imigração forçada, nos leva a pensar se, para o psicanalista do nosso tempo e país, a teoria, a supervisão e a análise pessoal são suficientes para a formação do psicanalista. Em períodos de rápidas transformações e de tensões políticas que nos aproximam a um tempo de guerra, a psicanálise, honrando sua história e fundamentos, tem escolhas a fazer.

 

 

Recebido em em: 4/10/2021
Aceito em: 5/10/2021

 

 

1 Sugiro um artigo que relata a história e principais fundamentos clínicos e teóricos do Veredas. Cada um de seus autores tem artigos e livros na temática: Rosa, M. D.; Binkowski, G. I.; Sencman, P.; Gebrim, A.; Nogueira, T. Migrando pelas veredas: a psicanálise no trabalho clínico-político com migrantes e refugiados. Travessia Revista do Migrante, vol. 84, p. 35-54, 2018.

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