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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo July/Dec. 2021

 

ENTREVISTAS

 

SBPdePA

 

 

Ane Marlise Port RodriguesI; Eliane G. F. NogueiraII

IPresidente
IICoordenadora do Projeto Ubuntu

 

 

JP - Gostaríamos de ouvir o que gerou a movimentação para a criação do "Projeto Ubuntu - projeto de bolsas formação analítica do Instituto de Psicanálise da SBPdePA para profissionais negros, negras e indígenas das áreas de psicologia e medicina", e o que fundamentou tal decisão.

SBPdePA - Em primeiro lugar, queremos agradecer o convite e o espaço no Jornal de Psicanálise para esta entrevista. Era 18 de julho de 2020, em plena pandemia do covid-19, com nossa sede fechada desde março de 2020. Nesse dia, ocorreu a atividade científica "Racismo: o demoníaco estrangeiro que nos habita", com Ignácio Paim Filho,1 Rafaela Degani2 e Jorge Teixeira.3 Naquela manhã de sábado, tivemos o impacto de um acontecimento no sentido de Badiou em La filosofia y el acontecimiento (2013). Algo inesperado e imprevisível nos impactou e encontrou, em vários colegas e na diretoria da SBPdePA, um espaço interno de desacomodação e abertura a algo novo, e que rompia com a estabilidade até então vigente.

Entendemos que essa desacomodação nos alinha a um grande movimento sociocultural mundial, que traz a urgência por mudanças, o qual ficou conhecido como "Vidas Negras Importam" (Black Lives Matter). No Brasil, os movimentos organizados e/ou espontâneos das pessoas negras, denunciando o mito da democracia racial e a enorme desigualdade nas condições socioeconômicas e de oportunidades para a população negra, têm exercido uma bem-vinda pressão em busca de representatividade nos espaços públicos, políticos e institucionais (a população negra brasileira estava em 56% em 2019).

Nesse encontro científico, nosso colega Ignácio Paim Filho perguntava até quando ele seria o negro único em nossa instituição. Se referia não somente ao racismo estrutural arraigado na estrutura social brasileira, mas também ao racismo institucional presente em nossas instituições de psicanálise e, especificamente, na SBPdePA. 

A partir desse momento, a diretoria da SBPdePA convocou algumas reuniões gerais (de toda a membresia) para a discussão da temática do racismo institucional e o que faríamos a esse respeito. Em setembro de 2020, a partir dos membros, foi criado o Grupo de Estudos Colonialismo, Racismo e Desigualdade que convidou vários palestrantes negros e negras. Toda instituição foi convidada para as palestras o que levou a debates esclarecedores.

A convocação, desde dentro pelo colega Ignácio, acrescida do reconhecimento de que o racismo exclui o acesso de colegas negros e negras à formação analítica, possibilitou um espaço crescente de consciência e sensibilização sobre essa questão. As cotas nas universidades públicas (Lei n° 12.711, de 29/08/2012) possibilitaram que se formassem um maior número de profissionais negros e negras nas áreas de psicologia, medicina e nas demais faculdades. Mas uma formação analítica se torna, para a grande maioria desses profissionais, praticamente impossível devido ao seu alto custo financeiro. 

Em 11 de agosto de 2020 (durante uma reunião geral, posteriormente referendada em Assembleia Geral Ordinária de 15 de outubro de 2020), foi constituída uma força-tarefa com os colegas Astrid M. Ribeiro, Beatriz S. Behs, César A. Antunes, Ignácio Paim Filho, Lisiane M. Cervo, Vera E. Hartmann e Eliane G. F. Nogueira (coordenadora), com o propósito de criar um projeto que viabilizasse esse ingresso. Esse projeto, fruto de muita dedicação, estudo e comprometimento da força-tarefa, foi aprovado em Assembleia Geral Ordinária de 27 de abril de 2021, com seguimento nas Assembleias de 08 e 15 de junho de 2021. O projeto foi batizado de Projeto Ubuntu (filosofia africana que trata das alianças entre as pessoas: a coletividade de "Eu sou porque somos") e a força-tarefa foi, então, extinguida. Foi criada a Comissão Ubuntu que se encarrega da implementação do Projeto Ubuntu na SBPdePA, em conjunto com a diretoria e o Instituto de Psicanálise. Durante a assembleia, foi acrescentado um parágrafo único ao Projeto Ubuntu, incluindo indígenas para as mesmas condições de ingresso à formação analítica na SBPdePA. 

JP - Houve algum tipo de estudo ou conversas com a população negra de analistas ou estudantes sobre a demanda para formação na SBPdePA?

SBPdePA - Quando começamos a pensar no projeto, tivemos alguns encontros com professores universitários ligados ao curso de psicologia da UFRGS que acompanham há muito tempo estudantes negros(as) que ingressaram na universidade ou nos programas de pós-graduação/mestrado, por meio do sistema de cotas raciais. Nos transmitiram detalhes sobre o quanto as cotas raciais favoreceram a inclusão desses colegas no circuito acadêmico e nos sensibilizaram para a importância de ações afirmativas e reparatórias que viabilizassem o acesso à formação psicanalítica em nossos institutos de psicanálise, pois sabiam do interesse de diversos graduandos ou egressos. Da convivência longitudinal dos professores com esses colegas, foi destacado o quanto o alto custo financeiro das formações analíticas tem inviabilizado o acesso de vários colegas negros(as) que desejam iniciar tal formação.

O Grupo de Estudos sobre "Colonialismo, Racismo e Desigualdade", criado em setembro de 2020, trazia, mensalmente, convidados analistas e psicólogos negros e negras que nos atualizaram sobre a epistemologia produzida por autores e autoras negros, nacionais e internacionais, nas áreas do racismo e do preconceito. É muito impressionante nosso desconhecimento sobre a grande produção teórica e literária produzida em nosso país por esses autores. As práticas racistas a que foram expostos em suas trajetórias pessoais e profissionais também foram relatadas. As dificuldades e pontos cegos por parte de analistas, em geral brancos, em relação às marcas psíquicas causadas pelo preconceito e humilhação em pacientes negros aparecem frequentemente. Muitas vezes não são reconhecidas e são interpretadas como exagero, vitimismo ou paranoia, o que leva a interrupções do tratamento.

JP - Poderiam contar um pouco mais sobre quais foram as palestras realizadas, bibliografias e principais descobertas desses encontros? 

SBPdePA - Desde 2020, a SBPdePA esteve envolvida com a temática do racismo, atuando em diferentes frentes: as Diretorias Científica e de Comunidade realizaram diversos eventos, com vários convidados de fora da instituição para ampliar a visão dos membros sobre o tema; o Instituto de Psicanálise organizou um seminário aberto com quatro encontros com o Prof. José Damico, da Faculdade de Psicologia da UFRGS ("Introdução à uma Psicanálise Decolonial: racismo, clínica e comum"), que teve uma presença significativa de colegas da casa e de fora.

As Diretorias de Comunidade e Científica, em especial, bem como as Diretorias de Publicações e Divulgação, o Instituto de Psicanálise, a Comissão Ubuntu, o Grupo de Estudos Colonialismo, Racismo e Desigualdade e a Diretoria gestão 2020/2021 configuraram-se em uma espécie de eixo simbólico e de ordem prática para criar os espaços de debate e avanços para pensar as ações afirmativas.

Em 11 e 12/11/2020, tivemos o Simpósio Integrado sppa e SBPdePA com o tema "Psicanálise e educação cara a cara com o racismo estrutural", a partir de um convite de colegas da sppa. Nesse evento, Jacyara Paiva (professora ufes), José Damico (professor UFRGS), Clarissa Brito (psicopedagoga), Darlei Nunes (Associação de Moradores da Vila Tronco), Lia V. Schucman (professora ufsc), Wania Cidade (psicanalista SBPRJ), Ignácio Paim Filho (psicanalista SBPdePA) e Janine Severo (psicanalista SBPdePA) trouxeram muitas reflexões sobre como o racismo estrutural e institucional vai se revelando nas escolas, nas universidades e na sociedade em geral.

Outra atividade científica, em janeiro de 2021, marcou um encontro entre os escritores Jeferson Tenório (O avesso da pele, 2020) e Paulo Scott (Marrom e amarelo, 2019), quando foram discutidos os dois romances, bem como o colorismo em nosso território nacional, a dificuldade do Brasil em se assumir como um país de maioria negra e as vivências de preconceito racial vividas pelos autores ou amigos e familiares.

Nos dias 28 e 29/05/2021, ocorreu o Ciclo de Estudos sobre Racismo com o lançamento do livro Racismo - por uma psicanálise implicada, de Ignácio Paim Filho, com comentários de Celso Halperin (psicanalista SBPdePA). Tivemos a clínica contemplada pela discussão de material clínico trazido pela colega Cristiane Schlindwein (Membro do Instituto SBPdePA) e debatido pelas psicólogas Miriam Alves (professora ufpel) e Thaise Mendes Faria (doutoranda Unisinos). Tratava-se de uma analista branca atendendo uma paciente negra e as vicissitudes desse trabalho analítico.

O Grupo de Estudos sobre "Colonialismo, Racismo e Desigualdade" foi criado na SBPdePA em setembro de 2020, com coordenação dos colegas Janine M. O. Severo, Leonardo A. Francischelli e Sandra M. S. Fagundes. Esse grupo se reúne sistematicamente e convidou José Damico, Maria de Lourdes Teodoro, Wania Cidade, Miriam Alves e Ignácio Paim Filho. Houve ainda a apresentação do trabalho "Branquitude e negritude" (2020) de Joyce Goldstein e Wania Cidade.

O aporte teórico de todos esses eventos é diverso e de livre escolha dos convidados e do Grupo de Estudos. Foram lidos e discutidos Neusa Santos Souza (Tornar-se Negro, 1983), Aimé Césaire (Discurso sobre o colonialismo, 1950/1978), Grada Kilomba (Memórias da plantação, 2019) e Frantz Fanon (Pele negra, máscaras brancas, 1952/1980).

A Comissão Ubuntu, que se reúne regularmente desde agosto de 2020, escreveu o Projeto Ubuntu acima referido (com 18 páginas, incluindo a bibliografia). Após a aprovação na SBPdePA, foi encaminhado ao Board Latino-americano da ipa, em 06/8/2021, buscando apoio e divulgação para projetos que contemplem as questões raciais junto aos institutos de psicanálise da ipa.

Constam entre os autores nacionais e internacionais estudados pela Comissão Ubuntu: Frantz Fanon (Pele negra, máscaras brancas, original em 1952/2008), Maria Aparecida Bento (Branqueamento e branquitude no Brasil, 2002), Grada Kilomba (Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano, 2008/2019) e Lia Vainer Schucman ("Entre o "encardido', o 'branco' e o 'branquíssimo': raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana", tese de doutorado USP, 2012), Laurentino Gomes (Escravidão, 2019), Silvio Almeida (Racismo estrutural, 2019), Kon, Silva e Abud (Orgs) (O racismo e o negro no Brasil - questões para a psicanálise, 2017) e Ignácio Paim Filho (Racismo - por uma psicanálise implicada, 2021).

Também ocorreram leituras propostas individualmente como Lélia Gonzalez (Lugar de negro, 1982), Sueli Carneiro (filósofa com várias publicações e criadora do Portal Geledés em 1988), Djamila Ribeiro (Pequeno manual antirracista, 2019) e Chimamanda Adichie (O perigo de uma história única, 2018), entre outras.

Reconhecer nossa ignorância em relação a uma imensa bibliografia e literatura escritas por autores negros e negras, incluindo alguns autores brancos, sobre o racismo e o preconceito racial é também reconhecer que a episteme a que temos maior acesso é predominantemente escrita por autores brancos e não se refere a essa temática. Foi muito importante estudar:

• o racismo estrutural e institucional;

• os efeitos traumáticos do preconceito e da humilhação racial, atacando a pessoa negra em sua humanidade (o mesmo ocorre com o indígena);

• a colonização de nosso psiquismo por ideais de brancura e de superioridade racial do branco;

• a busca do branqueamento da população brasileira com a vinda de brancos europeus como política nacional (com o tempo haveria a eliminação do negro; a população indígena quase foi exterminada em nosso território nacional);

• o racismo brasileiro como anti-negritude (e anti-indígena);

• a racialização do branco e o reconhecimento de sua branquitude;

• a branquitude como raça branca e como sistema de pensamento de supremacia branca (pode operar no branco e no negro, enquanto ideais colonizados e introjetados);

• o conceito de pacto narcísico da branquitude, o reconhecimento de que no Brasil ser branco funciona como um solvente étnico, entre outros temas.

Algumas das razões do incômodo dos brancos ao serem racializados como parte da raça branca tocam no reconhecimento de seus privilégios sobre negros e indígenas. Por estarmos inseridos numa cultura racista, dificilmente estamos isentos de manifestações racistas, mesmo que involuntárias, as quais são praticadas de forma inconsciente ou até mesmo consciente. A população branca engana-se ao considerar que o problema do racismo afeta somente a população negra ou seria um problema dos negros, pois ao não ser enfrentado por toda a sociedade brasileira prejudica a todos e amplia índices de desigualdade social.

A Diretoria de Publicações dedicou uma das edições de nossa Revista Psicanálise ao tema do "Racismo e preconceito", a ser lançada até o final de 2021.

Outro espaço de um produtivo debate foi criado pela Diretoria Científica sobre as manifestações do preconceito no que tange ao antissemitismo, tendo como convidados Ilton Gitz (professor e psicanalista) e Ana Rosa Trachtenberg (psicanalista SBPdePA).

JP - Como o projeto se realiza na prática? Quem pode participar, como ocorre a divulgação e a seleção de candidatos? 

SBPdePA - Para a implementação do Projeto Ubuntu está sendo criado um Fundo Financeiro com doações de pessoas físicas ou jurídicas a fim de proporcionar bolsas formação aos postulantes triados pela Comissão Ubuntu (com base em autodeclaração étnico-racial, critérios econômicos, graduação em Psicologia ou Medicina) e encaminhados à seleção realizada junto ao Instituto de Psicanálise. A seleção pelo Instituto segue os mesmos critérios dos postulantes em geral.

Em fins de setembro de 2021, essa conta poupança para as doações foi criada. Será destinada ao Fundo Financeiro - Projeto Ubuntu uma percentagem do valor arrecadado em cursos para a comunidade e em atividades científicas da SBPdePA, com a mensalidade da sociedade gratuita por cinco anos. Pensamos que uma ação conjunta da SBPdePA e da sociedade civil, a partir das doações, possa arrecadar os valores necessários para a oferta de bolsas-formação. Os membros da instituição também podem se tornar doadores mensais ou eventuais e, assim, colaborar para o Fundo Financeiro.

O valor mensal da bolsa-formação é repassado ao postulante para que ele próprio pague sua análise (mesmo considerando que o valor da sessão seja menor do que o valor habitualmente cobrado pelo analista). Quando iniciar a primeira supervisão e sua clínica se expandir, ele passa a contribuir com um percentual do valor total da bolsa-formação por meio de seus próprios rendimentos. O valor da contribuição tende a ampliar-se após os primeiros anos da formação analítica, conforme um sistema de escalonamento que estabelece um percentual gradativamente crescente em sua participação.

Uma lista de analistas com função didática que participem do Projeto Ubuntu está sendo organizada e será disponibilizada aos postulantes aprovados junto ao Instituto de Psicanálise.

A partir do momento em que o Fundo Financeiro tenha arrecadado o suficiente para oferecer pelo menos uma a duas bolsas-formação, serão abertas as inscrições aos postulantes. A divulgação se dará inicialmente junto a Faculdades de Psicologia e de Medicina, por intermédio de seus professores, através da abertura a esses alunos para participação em atividades científicas da Sociedade e de oferta de vagas gratuitas na Jornada Bianual da SBPdePA (04 e 05 de novembro de 2021). Também constará no site da SBPdePA o Projeto Ubuntu e seus objetivos.

JP - Como foi a decisão pelo modelo de bolsas? Outras alternativas foram pensadas? Quais e por que foram deixadas de lado?

SBPdePA - Esse foi um assunto amplamente discutido e pensado, pois sabemos que a decisão de fazer a formação analítica, implica bem mais do que um grande investimento financeiro, é necessário desejo, preparo intelectual e cultural e uma possibilidade real de uma rede de amparo. Isso é quase impossível para a maioria da população negra, pois encontram maiores obstáculos ao seu preparo e, especialmente, muitos prestam amparo financeiro ao seu grupo familiar, o que diminui suas possibilidades de investir em uma formação analítica. Mesmo que almejem a formação e consigam se preparar, esbarram invariavelmente em escasso suporte financeiro e sabem que enfrentarão o racismo estruturado e disfarçado que, no Brasil, permeia as instituições e seus integrantes. Optamos por um sistema no qual não predominaria a gratuidade e nem a integralidade da bolsa. A possibilidade de o postulante perceber que a sociedade civil e a instituição lutam por seu ingresso e, também, entender a força reparatória do Projeto Ubuntu, poderia estimular o enfrentamento dos desafios que a clínica analítica propõe e de adentrar em um espaço quase exclusivo de pessoas brancas. Em nossa instituição temos o fenômeno do negro único. Também entendemos que a bolsa-formação aproxima quanto aos valores cobrados aos demais postulantes, minimizando (ao menos em parte) a secular injustiça de segregação racial. Nos baseamos também no sistema de fornecimento de bolsas para pós-graduação de instituições estatais. Sabemos o quanto é difícil o início da vida profissional em nosso país, principalmente para os negros, negras e indígenas.

Com base nos vários encontros da Comissão Ubuntu com a Diretoria, o Instituto, a membresia, profissionais da área contábil e jurídica e nossa secretaria, pensamos que o Projeto só seria viável se houvesse um comprometimento da SBPdePA, tanto no aspecto financeiro, quanto no aspecto afetivo, intelectual e de consciência, visando estimular a percepção e o rompimento de condutas referentes ao racismo estrutural e institucional. O racismo se encontra atravessado em nosso inconsciente (colonizados que somos pelos ideais de uma cultura eurocêntrica em que a brancura e o ser branco foram postos como representando o humano universal), mas também é praticado, muitas vezes, de forma consciente. O conceito de branquitude (a racialização do branco como sendo da raça branca) gera incômodo entre os brancos pois tendem a ver-se como o universal dos humanos, e não como uma raça entre outras. O ideal seria que lográssemos nos percebermos a todos como humanos e não como raças. O mal-estar também se relaciona pelo predomínio de um sistema de pensamento e funcionamento psíquico de exclusão e humilhação de negros e indígenas em nosso país. As manifestações deste funcionamento psíquico, a partir de nossa branquitude, são percebidas como geradoras de hostilidade com a diferença e necessitarão de trabalho psíquico individual ou grupal assim que tivermos os colegas negros ingressando em nosso Instituto. Reconhecer e estudar os aspectos psicopatológicos gerados pelo estado interno "branquitude" é parte desse processo de abertura e busca de transformação.

Norberto Marucco, em Seminário Aberto do Instituto de Psicanálise da SBPdePA, em setembro de 2021, colocou a cultura como uma quarta instância psíquica (além de Id, ego e superego). Referia-se ao poder do meio cultural e de suas mensagens sobre o psiquismo, muitas vezes sobrepondo-se aos ideais introjetados a partir das vivências com os objetos primários e familiares.

JP - Houve algum tipo de pesquisa ou levantamento sobre outros modelos existentes em outras instituições psicanalíticas dentro e fora do Brasil? 

SBPdePA - Quando a força-tarefa foi criada em nossa Instituição, não era de nosso conhecimento a existência de algum modelo, no Brasil ou no exterior, de um projeto de inclusão racial em instituições psicanalíticas ligadas à ipa. Em um levantamento realizado pela Febrapsi em 2020, constatou-se que menos de 2% dos 2.200 psicanalistas membros são negros. Não consultamos dados de fora do Brasil porque nos pareceu que o racismo em nosso país tem suas particularidades e se direciona à população negra e indígena.

Com muita satisfação recebemos, posteriormente, a notícia de que a SBPRJ havia aprovado em assembleia de janeiro de 2021 seu projeto de ações afirmativas à formação analítica para negros, negras, indígenas e refugiados. Nos congratulamos com os colegas do Rio de Janeiro, lembrando que na SBPRJ também havia o fenômeno do negro único: Wania Cidade era a única analista negra da instituição. Atualmente, já ingressaram outros colegas negros e negras na SBPRJ. Certamente a presença de Wania Cidade contribuiu para os avanços conquistados, contando com o apoio dos demais colegas. Na nossa sociedade a presença convocatória de Ignácio Paim Filho, sendo um negro, movimentou uma abertura a essas questões raciais.

JP - Vocês poderiam explicar um pouco mais como funciona essa coparticipação? Como será avaliada a possibilidade do bolsista de passar a pagar e a quantidade de sua participação? Outras contrapartidas ou formas de devolução do financiamento foram pensadas? 

SBPdePA - Pensamos que o processo analítico do postulante o levará a desenvolver sua própria clínica e assim poderá participar com um crescente percentual em suas despesas, o que facilitará o ingresso de outro candidato. Essa evolução será acompanhada pela Comissão Ubuntu e pensada individualmente.

A devolução do investimento no bolsista será através de seu crescimento pessoal e institucional, semelhante aos demais membros. Não terá o compromisso de devolver valores em dinheiro, porque entendemos que a instituição irá lucrar, e muito, com essa experiência de diversidade. Criar uma dívida financeira com pessoas que já se encontram, secularmente, em tantas desvantagens em relação aos brancos no Brasil não nos pareceu justo.

JP - Sabemos que, para além dos elementos formais concretos, o ingresso em uma instituição psicanalítica, por si só, não encerra a totalidade das dificuldades que negros e negras vivem tanto na formação quanto no exercício da psicanálise. A SBPdePA tem pensado ações específicas para lidar com este tema ao longo do processo formativo na instituição? 

SBPdePA - Tudo é novo para o mundo dos brancos quando se trata de enfrentar o racismo em um país como o nosso. Gostaríamos de poder oferecer mais de uma Bolsa Formação ao mesmo tempo para evitar a vivência de ser o negro ou negra únicos. Mas teremos de ver como essa expectativa se realiza. Já nos disseram que essa preocupação é muito mais nossa do que dos negros e negras, pois estão habituados a enfrentar essa situação em espaços tomados pelos brancos e brancas. Acreditamos que a análise pessoal é um espaço privilegiado para o acompanhamento do candidato bolsista. Atualmente, em Porto Alegre, contam também com espaços coletivos onde se encontram e trocam as vivências e dificuldades enfrentadas quando adentram espaços tradicionalmente de hegemonia branca. Serão acompanhados de perto pela Comissão Ubuntu através de encontros individuais ou em grupo. Esperamos que a instituição possa funcionar como um grupo hospitaleiro ao novo e com capacidade de enfrentamento dos percalços do caminho. Mas também teremos de avaliar a necessidade de ter um consultor externo à instituição para as dificuldades que possam surgir.

A SBPdePA já vem efetuando uma série de ações para sensibilizar e equipar com conhecimentos específicos os membros da Sociedade e do Instituto, para que, mais capacitados, possam acolher futuros postulantes. Foram realizadas atividades de letramento oferecidas a todos os membros como encontros científicos sobre Identidade Brasileira e Rodas de Conversa, aquecendo o debate sobre nossas origens, com a valorização do legado de negros(as) e indígenas. Foram incluídos autores negros em Seminário de História da Psicanálise, assim como foi oferecido, pela primeira vez, um seminário específico sobre relações étnico-raciais aos membros do Instituto e de toda Instituição. Esse conjunto de medidas visa conscientizar aos colegas sobre a existência do racismo estrutural e institucional e ampliar a perspectiva de o quanto todos se enriquecerão com as trocas recíprocas.

O ingresso e permanência dos postulantes negros (as) e indígenas serão acompanhados ao longo de toda Formação Analítica pela Comissão Ubuntu, em conjunto com o Instituto e a Diretoria da SBPdePA.

O Projeto Ubuntu é, permanentemente, aberto a revisões para poder atingir seu objetivo de facilitar o acesso de negros, negras e indígenas à formação analítica em nosso Instituto de Psicanálise.

JP - Vocês acreditam que o modelo de bolsas contribui para a minimização do elitismo nas sociedades? Existem limites no modelo?

SBPdePA - Sim, acreditamos que à medida que o negro(a) for inserido no mercado de trabalho, com condições dignas de vida e de exercer a profissão, com certeza estará mais integrado e fortalecido e, como consequência, passará esse sentimento para outras gerações. Sabemos que a psicanálise no Brasil, composta essencialmente por brancos, a maioria com condições financeiras acima da média brasileira, ou estando na média, traz dificuldades disfarçadas a quem não responde ao "padrão" desejado. Mas acreditamos que o letramento permanente, acrescido de o tema do racismo ser percebido e trabalhado nas análises, possa contribuir para esse pareamento e proximidade entre negros e brancos como colegas psicanalistas. Nossos limites batem nas dificuldades econômicas para manter o Projeto Ubuntu, uma vez que, inicialmente, o número possível de bolsas depende dos valores arrecadados. Outro limite diz respeito ao número de analistas, com função didática, que estão dispostos a participar do Projeto e a aceitar esses postulantes como pacientes, que pagarão a análise com o valor sugerido pela bolsa-formação.

Esperamos que as manifestações subjetivas do racismo que atravessam a todos possam ser reconhecidas e modificadas.

Observamos que alguns poucos colegas conseguem dizer que a instituição não deveria se ocupar dessas questões raciais, pois não diriam respeito à psicanálise ou aos psicanalistas e suas instituições, e que seriam de ordem estritamente política. Preferem o silenciamento desse debate interno. No entanto, pode-se considerar que o silêncio praticado de forma consciente é bastante eloquente.

Também observamos que quando se trata de assumir publicamente uma posição contra as ações afirmativas, há um constrangimento que leva ao silenciamento. Existe um temor de ser visto como racista. Esse constrangimento, em geral, tem a ver com uma preocupação com o julgamento moral a partir dos outros: "o que os colegas vão pensar sobre mim". O constrangimento não seria por ter uma posição contrária ao ingresso de colegas negros na instituição.

JP - Como está sendo pensada a análise didática, que via de regra implica alto custo financeiro para o analista em formação, no projeto acessibilidade de negros e negras? 

SBPdePA - Antes mesmo da análise didática, pensamos em um convênio no Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) da SBPdePA para estudantes de psicologia e medicina negros(as) e indígenas de baixa renda, para viabilizar o acesso a bons processos de análise pessoal com valores possíveis e favorecer uma aproximação desses colegas com a Instituição. Como sabemos que a análise pessoal costuma ser o maior custo mensal de uma formação psicanalítica, a bolsa-formação começa a ser recebida pelo postulante aprovado na seleção do Instituto de Psicanálise desde o primeiro ano de análise, anterior mesmo ao início dos seminários.

A bolsa-formação foi pensada para cobrir o pagamento de três sessões semanais, que é a frequência mínima para a análise didática (ou análise para formação analítica) em nossa instituição, e será repassada por 12 meses ao ano. A partir do começo da supervisão haverá o acréscimo do valor equivalente a mais uma sessão para o pagamento da supervisão.

JP - Quem são os analistas que atenderão os bolsistas? Que compromissos eles assumem? Há alguma exigência de formação extra para eles ou de algum modo de preparação para tratar das questões raciais em análise?

SBPdePA - Estamos realizando, no momento, um chamado àqueles analistas que se integrarão ao Projeto Ubuntu. Serão analistas com função didática que apoiem e acreditem na importância desse Projeto. Imaginamos que os que se integrarem já acompanharam as várias atividades e discussões em torno da temática do racismo ou desejam iniciar sua aproximação. Poderão participar de um programa de letramento, porém não há exigência formal de preparação prévia do analista. No entanto, a Comissão Ubuntu e o Instituto de Psicanálise farão reuniões com o grupo de analistas com função didática que se inscreverem para compor a lista de nomes que será repassada ao postulante. É necessário que o analista esteja sensibilizado e atento à emergência de material psíquico que envolva questões raciais, tanto no postulante, quanto em si mesmo. Por outro lado, trata-se de um candidato em formação analítica como os demais e sua análise terá de lidar com as transferências, as contratransferências e as resistências presentes em todos os processos analíticos. O sofrimento e o adoecimento de uma pessoa não são gerados pela cor de sua pele ou sua etnia por si mesmas, mas sim pelos preconceitos, discriminação e humilhação a que estão sujeitos desde antes de nascer e durante seu desenvolvimento.

JP - O tema deste número 101 do JP é "A potência da diferença", o que nos parece ter muita relação com a aposta que promove projetos como o Ubuntu. Para finalizar, vocês gostariam de falar algo sobre o tema?

SBPdePA - Pensamos que a temática da potência da diferença é de grande relevância na vida cotidiana, nas relações sociais e para a psicanálise. Está intimamente ligada à subjetividade individual e grupal e à reação de hostilidade com o diferente. Assim, temos a hostilidade histórica do homem para com a mulher, redundando nos inúmeros feminicídios e no machismo estrutural. Comumente se observam reações de rejeição aos estrangeiros ou pessoas de outras etnias. Os preconceitos em relação à homossexualidade e à diversidade das apresentações sexuais e de gênero revelam-se na violência sofrida por essas pessoas cotidianamente. A participação de homossexuais nas instituições psicanalíticas já acontece há anos, o que não quer dizer que não tenham de enfrentar os preconceitos de colegas analistas ainda hoje. Mas a maior presença de colegas negros introduz algo novo por meio da presença do corpo negro, de sua cultura com a qual não estamos familiarizados, com as decorrências e revelações de nosso racismo inconsciente e consciente. Tomamos o desafio de nos desacomodarmos frente ao nosso racismo institucional e individual. Pretendemos nos aprofundar no estudo desse tema a partir das dificuldades que encontramos na aceitação interna do Projeto Ubuntu, das idiossincrasias e especificidades da psicanálise e dos psicanalistas com relação ao racismo. Almejamos que o próprio bolsista possa descrever sua experiência e a compartilhar sua percepção conosco e com a comunidade psicanalítica em geral. Destacamos o quanto acreditamos na potência da diferença e no enriquecimento mútuo dessa convivência, importando o respeito pelo outro e por sua alteridade.

Parabéns ao Conselho Editorial do Jornal de Psicanálise por adentrar no território das diferenças e contemplar a potência e fecundidade geradas pelo encontro das diferenças.

Finalizamos com uma poesia que nos toca quanto à importância da ruptura do silêncio sobre o racismo e, também, dos preconceitos dentro de nossas instituições psicanalíticas e em todos os espaços em geral.

O silêncio
fere
afasta
arde
corta
esmaga
oprime
desgasta
sangra...
grita...
ai... O silêncio
faz um barulho imenso!
(Adúm; Adúm & Ratt, citados por Kon; Silva & Abud; 2017, p. 87)

 

Referências

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1 Membro titular e com função didática e docente na SBPdePA.
2 Membro do Instituto de Psicanálise da SBPdePA.
3 Professor da Unisinos/RS

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