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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo jul./dez. 2021

 

TEMA LIVRE

 

Turbulência e ausência na relação analítica

 

Turbulence and absence in the analytical relationship

 

Turbulencia y ausencia en la relación analítica

 

Turbulence et absence dans la relation analytique

 

 

Mariana Eizirik

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psiquiatra pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Psiquiatria pela UFRGS. São Paulo / marianaeizirik@gmail.com

 

 


RESUMO

O trabalho discute, com base em articulações teórico-clínicas, a importância da utilização da contratransferência do analista para a compreensão das comunicações do paciente acerca de seu mundo interno e do seu uso para o fortalecimento da relação analítica. Apresenta a evolução de dois casos de análise em que a turbulência e a ausência predominavam no campo analítico, com seus movimentos de aproximação e de afastamento, sendo a construção da relação analítica o enfoque principal.

Palavras-chave: psicanálise, contratransferência, transferência


ABSTRACT

The paper discusses, from theoretical-clinical articulations, the importance of using the countertransference of the analyst to understand the patient's communications about his/her internal world and their use for strengthening the analytical relationship. It presents the evolution of two cases of analysis in which turbulence and absence predominated in the analytical field, with its movements of approximation and distancing, and the construction of the analytical relationship being the main focus.

Keywords: psychoanalysis, countertransference, transference


RESUMEN

El trabajo discute, desde las articulaciones teórico-clínicas, la importancia de utilizar la contratransferencia del analista para comprender las comunicaciones del paciente sobre su mundo interno y su uso para el fortalecimiento de la relación analítica. Presenta la evolución de dos casos de análisis en los que predominaron las turbulencias y la ausencia en el campo analítico, siendo el foco principal sus movimientos de aproximación y distanciamiento, y la construcción de la relación analítica.

Palabras clave: psicoanálisis, contratransferencia, transferencia


RÉSUMÉ

L'article traite, à partir d'articulations théoriques-cliniques, de l'importance d'utiliser le contre-transfert de l'analyste pour comprendre les communications du patient sur son monde interne et leur utilisation pour renforcer la relation analytique. Le présent l'évolution de deux cas d'analyse dans lesquels la turbulence et l'absence prédominaient dans le domaine analytique, avec ses mouvements d'approximation et de distanciation, et la construction de la relation analytique étant l'objectif principal.

Mots-clés: psychanalyse, contre-transfert, transfert


 

 

Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.

Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía. (Mãe, 2015, p. 21)

Em recente trabalho, Ogden (2020) sintetiza a evolução do seu pensamento teórico e clínico, e a forma como percebe o momento atual da psicanálise, caracterizando duas formas de descrevê-la: a psicanálise epistemológica, relacionada ao reconhecimento e a compreensão, tendo como principais autores Freud e Klein, e o que chama de psicanálise ontológica, relacionada ao ser e tornar-se, tomando como principais referências Bion e Winnicott. Destaca que tais apresentações não existem de forma pura e que mais frequentemente oscilamos entre estas duas abordagens.

O trabalho de Ogden traz profundas reflexões acerca da clínica psicanalítica contemporânea e suas tantas nuances e possibilidades. O autor compreende psicanálise ontológica como "uma dimensão da psicanálise na qual o propósito do analista é facilitar os esforços do paciente por tornar-se mais si mesmo" (2020, p. 25), sendo que a ação terapêutica que a caracteriza "envolve fornecer um contexto interpessoal em que ganham vida na relação analítica formas de experimentar, estados de ser, antes impensáveis para o paciente" (2020, p. 28).

Sabemos que o analista também vivencia "formas de experimentar, estados de ser, antes impensáveis". Segundo Bollas, "a criança dentro do adulto não pode encontrar uma voz, a menos que o clínico permita que o paciente o afete e isso inevitavelmente significa que o analista deve tornar-se perturbado pelo paciente" (1987/1992b, p. 235).

A partir de exemplos clínicos de atendimentos de dois pacientes em que a turbulência e a ausência predominavam no campo analítico, procuro, neste trabalho, ilustrar a importância das reações emocionais do analista e o seu uso no fortalecimento da relação terapêutica.

 

Encontro e desencontro

Isabel iniciou sua análise de modo peculiar. Na primeira sessão de avaliação, após meia hora do início do horário combinado, escutei batidas na porta, e não a campainha do consultório. Ao abrir, vi Isabel na companhia de um dos porteiros do prédio. Ela disse que tinha subido, esperado bastante, mas não bateu na porta e não viu a campainha. Desceu e voltou com ele, para ajudá-la. Senti que começamos já ali, no primeiro encontro, um processo que se seguiria, de encontros e desencontros.

Contou que a sua mãe perdeu o primeiro filho quando este era bebê e que nunca se recuperou disto. Quando a paciente nasceu, alguns anos depois, a mãe achou que ela não era sua filha. A sensação de desamparo que Isabel me passou foi angustiante. Fiquei triste e em dúvida da minha capacidade de conseguir conter aquilo que ela colocava para fora, um mundo interno repleto de vazios. A força do mecanismo de identificação projetiva usado por ela ficou evidente, e foi entendida como uma necessidade de ser incorporada por mim, me fazendo reagir para conter algo que nunca foi contido.

No início da análise, a paciente viveu muitos conflitos com a mãe, sentiu raiva e culpa constantes, revivendo e dando-se conta do vazio desta relação. Disto, veio a decisão de ir morar só, sempre em uma mistura de sentir-se "jogada para fora", com as "portas fechadas" e uma tentativa de buscar o lado saudável deste movimento. O vínculo comigo foi sendo desenvolvido e fortalecido.

Minhas reações contratransferenciais oscilavam entre anestesia, irritação, ansiedade e empatia. Dava-me conta da importância da minha escuta e do meu olhar dentro de sua história de muitas faltas e vazios, que a levavam a rejeitar antes de ser rejeitada. Mantive a dúvida e o alerta se eu estava acelerando demais e o quanto ela queria ou poderia mudar.

Surgiu a imagem da "menina congelada", com sua parte sensível escondida atrás de uma armadura, mas que sofre e que quer conversar comigo. Também a imagem da mãe como um "espelho de aço", sem ressonância, com as emoções batendo e voltando. Os silêncios dela eram longos e eu me sentia impelida a falar, preencher buracos, ou levada a sentir muito sono, sendo soterrada pela sua tristeza.

Ela "neutralizava" meus esforços de apontar qualquer movimento positivo. Parecia que aspectos saudáveis do eu ficavam projetados em mim, enquanto ela seguia em sua ruminação melancólica, muitas vezes invejando o lado saudável projetado. Destruía o que era bom e depois retomava, mantendo um ciclo de perdas e ganhos.

Após as minhas férias, Isabel me enviou uma mensagem dizendo que iria interromper a análise, pela questão financeira e por não saber se iria "aguentar estes sentimentos". Mas veio conversar, depois de eu lhe dizer que precisávamos falar pessoalmente. Disse que queria parar, por estar com menos dinheiro, mas também por ter medo de "surtar, enlouquecer, ficar deprimida e ter que usar remédios".

Percebi que foi importante eu ter conseguido não a abandonar, não concordar com as suas tentativas de fuga, apostar na sua vontade. Quando ela falou na morte do pai, e em como se sentiu sozinha para lidar com algo terrível, entendi que este era o medo que ela tinha em relação a mim. Que eu não estivesse para ajudá-la caso ela enlouquecesse ou sentisse uma dor tão forte quanto aquela. Esta era a sua história. Ter que lidar sozinha com o que vinha de dentro dela e com o que vinha de fora, que tanto a assustava.

 

Atravessar a turbulência

Pedro é um homem de meia-idade que me procurou há alguns anos por estar vivendo uma crise no seu casamento. Sentia-se extremamente angustiado e perseguido. Estava muito ansioso, por vezes desesperado, com dificuldade para trabalhar e para manter a sua vida organizada e funcional, o que gerava muito medo de perder tudo. Havia se afastado dos amigos e da família e vivia basicamente em função dos conflitos com a companheira.

Sentia-se potencialmente destrutivo, causador de rupturas e de danos profundos às pessoas, especialmente às mulheres com quem se relacionava. Impunha-se o dever de ser o salvador, o cuidador. Quando percebia que não o era, ele desabava. Sentia-se o inverso, alguém que não conseguia pensar e viver, com o destino traçado: ficar sem nada e sem ninguém.

Após o divórcio dos pais, quando era criança, Pedro sentiu-se muito maltratado pela mãe, que o comparava sempre ao pai. Também se ressentia muito pelo fato de a mãe dizer que ele não gostava dela. Ele tinha "vontade de gritar que gostava", mas não conseguia. A mãe era descrita por ele como "incapaz, impulsiva, atrapalhada, com altos e baixos". Sentia que não podia contar com o pai, distante e envolvido com os seus próprios problemas.

No início da análise, eu me sentia sugada e esvaziada a cada sessão. O seu medo de destruir as pessoas, do potencial que ele tinha para isto, fez todo o sentido em termos contratransferenciais, já que eu estava sentindo na pele o significado daquilo. Ele estava com medo de me destruir também, de me sobrecarregar e, provavelmente, captava a minha exaustão e o meu receio de não o ajudar. Constantemente, me chamava pelo nome da esposa ou de sua chefe.

Houve uma mudança importante na minha contratransferência e no andamento das sessões quando ele aceitou a ideia de deitar-se no divã. Eu me sentia menos invadida e podia trabalhar melhor, mesmo que ele usasse o divã conforme o seu estado mental. Quando estava mais tranquilo permanecia deitado durante toda a sessão. Entretanto, quando se sentia mais perseguido ou agitado sentava-se ou virava-se para me olhar constantemente.

Eu passava boa parte das sessões tentando sair da ruminação acerca dos conflitos com a esposa e das queixas repetitivas para voltar a atenção para ele, para que ele se preenchesse. A impressão era de que se esvaziava dos sentimentos e das emoções, além de demonstrar angústia persecutória no início das sessões, como uma desconfiança em relação a mim e à nossa dupla a cada recomeçar. Ficou cada vez mais evidente a sua dificuldade em perceber o objeto, neste caso a analista, e as repercussões da análise na sua vida. Ele contava que alguns sintomas que vinham lhe perturbando simplesmente sumiam, e eu apontava inúmeras vezes que não sumiam por acaso, e sim porque vínhamos trabalhando juntos na análise. Ele dizia que a sua sensação era de "esquecer não pensar".

Foi ficando cada vez mais clara a dificuldade de Pedro em reconhecer e falar sobre a sua relação comigo. Ele seguia me chamando pelos nomes da esposa ou da chefe frequentemente. Quando eu mostrava que isto estava ocorrendo, ele ria e seguia falando como se não houvesse um significado relevante. Eu me sentia quase sempre andando em uma corda bamba, com receio de ser invasiva. Também sentia que ele tinha dúvidas quanto à minha capacidade de lidar com a sua sexualidade e com a sua agressividade.

No final do segundo ano da análise, Pedro, pela primeira vez, me contou um sonho.

Ele estava em um viaduto que conhecia, a pé. Ele conhecia a saída, mas de repente o viaduto se transformava em uma caverna toda de pedras e ele se via perdido, não encontrava mais o caminho e sim escadarias e túneis. Ele começava a sentir medo de ser assaltado. Logo, se tornava um local claro e grande. De repente, ele via o filho dele quando este era pequeno, sorrindo, vindo na sua direção. Ele dizia: "Filho, você está aqui." Então ele o abraçava e sentia o cheiro de quando ele era criança. Acordou com uma sensação muito forte, a qual não soube definir. Ao me contar a parte final do sonho, se emocionou. Eu também me emocionei ao ouvi-lo. Ficamos algum tempo em silêncio e ele falou algo sobre a mãe, com quem seguia sem falar, após um desentendimento. Falou sobre a preocupação com o filho, do medo de que ele não seja como ele foi, com força de vontade para lutar, ir em frente.

Eu disse a ele que o filho no sonho podia também representar um aspecto dele, que ele encontrou quando achou que estava perdido, abraçou, cuidou, como vinha fazendo na análise em vários momentos. Ele tinha entrado em contato com ele pequeno, frágil, precisando deste abraço, deste cuidado. Ele então me disse que não sabia de onde aprendeu a ter esta capacidade de se virar, sobreviver.

Penso que o sonho mostra, inicialmente, uma caverna, com diversas angústias persecutórias representadas pelo medo de ser assaltado e pela sensação de estar perdido. Mas este mundo foi se tornando um local maior, mais claro, onde houve um reencontro com um aspecto seu. Houve um encontro emocional com ele mesmo no sonho e comigo também na análise. Talvez a análise o estivesse ajudando a clarear os caminhos de dentro da caverna para que ele pudesse se reencontrar com este seu lado tão necessitado de cuidado. Pedro sempre me contava que precisou crescer muito cedo. Mas ali estava a criança perdida.

Ao longo do tempo, os assuntos das sessões foram se modificando, surgindo novos personagens e novas facetas suas. As trocas do meu nome aconteciam cada vez menos.

Em um dado momento, Pedro disse que precisou ser salvo quando criança, e não foi. E por isto sentia que precisava salvar as pessoas para ser amado. Mas que, naquele momento, não queria mais salvar ninguém, não precisava mais.

 

Considerações teórico-clínicas

As duas situações clínicas descritas evidenciam como nossas reações emocionais ao longo das análises podem nos levar ao encontro das comunicações do paciente acerca do seu mundo interno.

O conceito de contratransferência foi introduzido por Freud (1910/1970), no trabalho "As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica", sendo então compreendida como consequência de conflitos e resistências do analista a partir do contato com o paciente, ou seja, um obstáculo ao tratamento. Nos quarenta anos seguintes à conceituação inicial de Freud, estudos sobre a contratransferência praticamente não foram desenvolvidos. A publicação do artigo de Paula Heimann, "On countertransference", em 1950, é considerada um marco da ampliação deste conceito, que teve a contribuição de diversos autores, como Racker, Winnicott, Little, Gitelson e Money-Kyrle.

Existem três conceitos de contratransferência a serem considerados: clássico, totalístico e específico.

O conceito clássico a vê como algo alheio, decorrente dos conflitos neuróticos do analista, anormal no processo terapêutico e perturbadora dele, em concordância com a descrição original de Freud. O conceito totalístico foi proposto a partir dos trabalhos de Heimann e de Racker. A contratransferência começou a ser entendida como possível ferramenta para o tratamento e para a compreensão do paciente, e concebida como todos os sentimentos e atitudes do analista em relação ao paciente - um acontecimento normal no processo terapêutico, originado pelo paciente, e transmitido ao analista por identificação projetiva. Racker definiu a contratransferência como "a totalidade da resposta psicológica do analista ao paciente" (1982, p. 127), uma combinação entre identificações concordantes (identificação de cada parte da personalidade do analista com a correspondente parte psicológica do paciente) e complementares (identificação do analista com os objetos internos do paciente).

Bion (1962/1991) aprofundou o estudo do conceito totalístico a partir do entendimento do aspecto comunicativo da identificação projetiva, assim como da função continente do analista. Joseph (1983) apontou a utilidade do uso da identificação projetiva a partir das reações contratransferenciais geradas no analista para a melhor compreensão do mundo interno do paciente.

Pick descreveu a importância da elaboração dos sentimentos contratransferenciais na mente do analista antes da interpretação. Questiona se a diferença entre a interpretação profunda e superficial não residiria "no grau em que o analista elaborou internamente o processo no ato de dar a interpretação" (1985, p. 50). Da mesma forma, enfatiza-se a necessidade de o analista tolerar a dor psíquica da contratransferência, experimentando as projeções do paciente em toda a sua intensidade. O fato de o paciente observar como o analista lida com as projeções, sem ter a sua capacidade de pensar destruída por estas, poderá, por si só, produzir mudança psíquica.

O terceiro conceito, chamado específico, denomina contratransferência as reações específicas do analista às qualidades particulares do paciente. Segundo Eizirik e Lewkowikz, "a contratransferência se manifesta quando é possível identificar que parte do self do paciente ou de suas fantasias está sendo colocada dentro da mente do terapeuta e provocando uma reação, ideia ou comportamento" (2005, p. 33). Sentimentos pessoais do terapeuta, não relacionados à transferência e às identificações projetivas do paciente, seriam considerados como transferências do terapeuta.

Ainda que existam diferentes visões acerca do conceito de contratransferência, atualmente há consenso na sua grande utilidade para o entendimento do paciente.

A concepção de Ogden do "terceiro analítico intersubjetivo" traz novas possibilidades de pensar sobre a transferência e a contratransferência. O terceiro analítico intersubjetivo é "compreendido como um terceiro sujeito criado pela interação inconsciente entre analista e analisando; ao mesmo tempo, o analista e o analisando como analista e analisando são gerados no ato de criar o terceiro analítico" (1995, p. 177). O terceiro analítico intersubjetivo é compreendido como uma "experiência em evolução, fluindo continuamente à medida que a intersubjetividade do processo analítico é transformada pela compreensão gerada pelo par analítico" (Ogden, 1995, p. 177). Este autor enfatiza a importância de o analista perceber e considerar as suas sensações corporais e devaneios ao longo das sessões, para que possam ser incluídos no processo de tentar compreender o que está sendo comunicado pelo paciente. Ao escutar Isabel, por exemplo, eu muitas vezes sentia a necessidade de apertar o meu braço, quase me beliscar, provavelmente em uma tentativa de me sentir viva, acordada. Esta compreensão me ajudou a entender algumas características importantes do mundo interno da paciente e da nossa vivência como dupla analítica.

Segundo Ogden, "[a] experiência de sentir-se vivo é uma capacidade superior às outras e deve ser considerada como um aspecto da experiência analítica em si mesma" (1995, p. 176). A sensação de desvitalização era comum nas análises de Pedro e de Isabel, e eu a percebia através da nossa relação transferencial-contratransferencial.

Com Pedro, eram frequentes os gritos, ruminações e queixas somáticas, alternados com períodos de desânimo e desinteresse. Havia em mim uma constante sensação de impotência. Percebia isto como algo não criativo, não vivo, desvitalizado.

Na análise de Isabel, momentos em que a relação transferencial-contratransferencial estava vitalizada, criativa, se alternavam praticamente de uma sessão para a outra com momentos de desvitalização intensos.

O sentimento de vitalidade e de desvitalização da transferência-contratransferência é, para mim, talvez a medida mais importante da situação de cada momento do processo analítico. ... um elemento essencial da técnica analítica inclui o uso da experiência contratransferencial, por parte do analista, para abordar os papéis expressivos e defensivos do sentimento de vitalidade e de desvitalização da análise. (Ogden, 1995, p. 175)

Isabel e eu vivíamos um constante jogo de pingue-pongue. Eu jogava a bola e o seu aspecto mortiço colocava fora, amortecia, nocauteava com raquetadas de inveja e tristeza. Eu, durante um destes momentos, pensei que queria sair dali e ir comer algo bom. E ela, logo em seguida, falou que deveria mesmo era "arrumar um namorado", sintonizando com minha reverie. Seguiam os movimentos de progressão e regressão. De vitalização e desvitalização. Penso que o meu devaneio me trouxe de volta a algo bom, que iria me nutrir e me dar prazer. E uma fuga do amortecimento que eu sentia tantas vezes ao longo das sessões com ela. Foi seguido imediatamente pelo pensamento de Isabel em ter um namorado.

No seu trabalho "A mãe morta", Green mostra que o complexo da mãe morta é revelado na relação transferencial através de uma "depressão singular". Esta depressão da transferência é entendida como a repetição de uma depressão da infância. "O traço essencial desta depressão é que ela se dá na presença de um objeto, ele mesmo absorto num luto. A mãe, por uma razão ou outra, se deprimiu" (1980/1988, p. 247). Green entende que o eu da criança, após tentativas de reparação da mãe enlutada, de ter vivido a sua impotência e de ter sofrido a perda do amor da mãe, irá colocar em prática diversas outras formas de defesas. Dentre elas, destaca como a mais importante o "desinvestimento do objeto materno e a identificação inconsciente com a mãe morta" (1980/1988, p. 249).

A partir da compulsão à repetição do passado infantil, e através do mecanismo de identificação projetiva, penso que fui levada a me identificar com esta mãe deprimida em muitos momentos da análise de Isabel. Percebi isto especialmente no início do trabalho, a partir das minhas reações contratransferenciais de sono, cansaço, irritação e desesperança. Grande parte do meu trabalho, nestes momentos, foi tentar compreender esta dinâmica e sair deste estado mental, revitalizando a análise.

Winnicott destaca que geralmente

há um núcleo da personalidade que corresponde ao eu verdadeiro da personalidade split; ... que este núcleo nunca se comunica com o mundo dos objetos percebidos, e que a pessoa percebe que não deve nunca se comunicar com, ou ser influenciada pela realidade externa. ... As experiências traumáticas que levam à organização das defesas primitivas fazem parte da ameaça ao núcleo isolado, da ameaça dele ser encontrado, alterado, e de se comunicar com ele. (1963/1983, p. 170)

Penso que, no caso de Isabel, o trauma, a invasão ao núcleo isolado, pode ter sido a vivência da depressão materna como algo muito intrusivo, modificador do seu próprio eu. Na relação comigo, ficou clara a percepção de que ela queria se isolar, preservar o seu eu isolado, tinha muito medo de ser invadida, e do que isto poderia causar. Ao mesmo tempo, estava conseguindo vir, conversar comigo por toda a sessão, e criar um vínculo de confiança. Queria se esconder, mas queria ser encontrada. Como diz Winnicott, a criança estabelece um eu privado que não se comunica e, ao mesmo tempo, quer se comunicar e quer ser encontrada. "É um sofisticado jogo de esconder em que é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado" (1963/1983, p. 170).

O conceito de objeto transformacional de Bollas fez muito sentido no caso de Pedro, tanto para pensar acerca das suas escolhas de objeto quanto na sua interação comigo. Segundo Bollas, "o psicanalista deve funcionar abertamente como um objeto transformacional". Afirma que se o analista quiser atingir muitos de seus pacientes, será necessário que "faça um uso mais direto de si próprio como uma área de saber, que é compartilhada por meio de sua experiência" (1987/1992b, p. 264).

Bollas ressalta que na análise de pacientes com uma relação objetal transformacional, uma das características é a "relativa inacessibilidade à relação com o verdadeiro outro" (1987/1992b, p. 38). Isto pode resultar em uma "quase total incapacidade do paciente em relacionar-se com o analista como uma pessoa real, mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de manter com ele uma relação intensa, como um objeto transformacional" (1987/1992b, p. 38). Bollas aponta ser indispensável uma vivência inicial das sucessivas modificações do ego, que são identificadas com o analista e com a análise.

Nesses momentos, o paciente experiencia interpretações basicamente pela capacidade que têm de corresponderem aos seus humores, sentimentos e pensamentos internos, e esses momentos de comunicação o levam a reexperienciar a relação objetal transformacional. Aprecia, também a forma fundamental de não ser intrusivo do analista. (1987/1992b, p. 39)

Eu percebia que ainda não existia para Pedro como um objeto separado. Eu era a chefe, a esposa, ele mesmo, a mãe. E precisei ser exatamente para que ele pudesse reviver estas experiências na análise. Muitas vezes, ele não notava que trocava os nomes, e eu assinalava isto, ou não, dependendo do momento. Com o passar dos anos, e com o fortalecimento do nosso vínculo e das forças do ego do paciente, começamos a falar sobre estas questões, aos poucos. Quando eu apontei que ele conseguia manter um relacionamento há quatro anos, comigo, houve uma mudança importante no desenvolvimento da análise. Eu senti que era o momento de usar a relação analítica para mostrar a ele que era capaz de se relacionar, do jeito que conseguia. Passei a ser, para ele, a Mariana mais frequentemente.

Retorno aqui ao entendimento de psicanálise ontológica, trabalhado por Ogden, já que tanto Pedro como Isabel, após alguns anos de análise, conseguiram, em alguns momentos, tornarem-se mais presentes e vivos para compreensões acerca de si mesmos, mais capazes de sentirem seus "potenciais criativos", podendo desenvolver ideias próprias, assim como "exercer a própria voz".

Penso que nos dois exemplos clínicos podemos observar os movimentos de aproximação e afastamento no campo analítico, que ilustram o funcionamento das duas mentes. E também a necessidade de o analista se manter vivo e buscando perceber as oscilações de seus estados mentais, para conseguir acompanhar e ajudar o paciente em sua jornada em busca de mudança psíquica.

 

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Recebido em em: 10/2/2021
Aceito em: 20/6/2021

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