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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo jul./dez. 2021

 

TEMA LIVRE

 

"Introdução ao narcisismo" ou "Introdução do narcisismo": sobre os prejuízos de compreensão resultantes da tradução Standard

 

"Introducción al narcisismo" o "Introducción del narcisismo": sobre las deficiencias de comprensión que resultan de la traducción Standard

 

"Introduction to narcissism" or "Introduction of narcissism": about the impairments of understanding resulting from the Standard translation

 

« Introduction au narcissisme » ou « Introduction du narcissisme »: sur les troubles de la compréhension résultant de la traduction Standard

 

 

Vinícius Xavier Cintra MarangoniI; Mary Yoko OkamotoII

IDoutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista (UNESP), na Faculdade de Ciências e Letras de Assis (SP). São Paulo / vxcmarangoni@gmail.com
IIProfessora assistente doutora do Departamento de Psicologia Clínica e do curso de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), na Faculdade de Ciências e Letras de Assis (SP). São Paulo / mary.okamoto@unesp.br

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda um detalhe da tradução (Standard) do título de um importante artigo de Freud - "Sobre o narcisismo: uma introdução" -, procurando demonstrar como um pequeno deslize em sua tradução resultou em prejuízos consideráveis para seu entendimento. Inicialmente, são apresentadas as críticas à tradução da Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud e, em seguida, um breve histórico do conceito de narcisismo na obra de Freud, com base no qual pretende-se demonstrar como o narcisismo renovou a teoria da libido.

Palavras-chave: narcisismo, psicanálise, novas traduções, Edição Standard Inglesa, Marilene Carone


ABSTRACT

This work deals with a detail of the (Standard) translation of the title of an important article by Freud - "On narcissism: an introduction" -, trying to demonstrate how a small slip in his translation resulted in considerable damage to his understanding. Initially, criticisms to the translation of the Standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud are presented, and then, a brief history of the concept of narcissism in Freud's work, from which it is intended to demonstrate how narcissism renewed the libido theory.

Keywords: narcissism, psychoanalysis, new translations, English standard edition, Marilene Carone


RESUMEN

Este trabajo trata un detalle de la traducción (Standard) del título de un importante artículo de Freud - "Introducción al narcisismo" -, tratando de demostrar cómo un pequeño desliz en su traducción resultó en un daño considerable a su comprensión. Inicialmente se presentan críticas a la traducción de la Edición standard de las obras psicológicas completas de Sigmund Freud y, luego, una breve historia del concepto de narcisismo en la obra de Freud, a partir de la cual se pretende demostrar cómo el narcisismo renovó la teoría de la libido.

Palabras clave: narcisismo, psicoanálisis, nuevas traducciones, Edición Standard Inglesa, Marilene Carone


RÉSUMÉ

Cet ouvrage traite d'un détail de la traduction (Standard) du titre d'un article important de Freud - « Sur le narcissisme: une introduction » -, en essayant de démontrer comment une petite erreur dans sa traduction a causé des dommages considérables à sa compréhension. Dans un premier temps, des critiques de la traduction de l'Édition standard des œuvres psychologiques complètes de Sigmund Freud sont présentées, puis une brève histoire du concept de narcissisme dans l'œuvre de Freud, à partir de laquelle il est destiné à démontrer comment le narcissisme a renouvelé la théorie de la libido.

Mots clés: narcissisme, psychanalyse, nouvelles traductions, Anglais Édition Standard, Marilene Carone


 

 

Edição Standard, "missão cumprida"

No Volume I da edição Standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, James Strachey (1966/1996b) apresentou um "Prefácio geral do editor inglês", em que expôs as dificuldades em concretizar tamanho empreendimento, à primeira vista, sem precedentes - a tradução para a língua inglesa de praticamente todas as publicações de Freud, desde 1886 até 1939. Definitivamente, a vastidão do conteúdo - "um total de uns dois milhões de palavras" (Strachey, 1966/1996b, p. 20) -, somada à complexidade da obra e o estilo de Freud representaram um volume de trabalho praticamente interminável. Por isso, "a Standard edition é uma realização admirável, que nenhum tradutor no mundo conseguiu igualar" (Roudinesco & Plon, 1997/1998, p. 733). Destinada ao "estudioso sério" (Strachey, 1966/1996b, p. 22), a tradução inglesa contém um prefácio a cada publicação, notas explicativas sobre os acréscimos e modificações realizadas por Freud em cada obra, remissões etc., que contribuem para o entendimento das obras e evidentemente representou um trabalho adicional considerável, por isso "as notas e o aparato crítico são retomados em numerosas edições estrangeiras da obra freudiana" (Roudinesco & Plon, 1997/1998, p. 733).

Como esse sumário sugere, a edição Standard é reputada grandiosa e da máxima importância para a psicanálise, principalmente para sua difusão e consolidação. A entonação entusiástica inicial é, porém, acompanhada de uma entonação pesarosa, em decorrência dos graves equívocos dessa tradução das obras de Freud. Repetir agora, entretanto, uma parte da avaliação negativa da Standard é menção que serve para reconhecer seu mais alto valor, por um lado, mas reconhecer também que é chegado o momento de os estudiosos brasileiros adotarem uma nova tradução das obras de Freud, por outro. A edição Standard cumpriu muito bem sua função: fez a psicanálise se firmar, com projeção internacional, constituindo para isso um terreno que lhe é próprio, e, portanto, praticamente independente dos juízos mais ou menos despropositados das ciências naturais.

No que concerne à maneira pela qual foi realizada, se sabe que, em acordo com sua esposa e tradutora Alix Strachey e com o psicanalista e biógrafo oficial de Freud, Ernest Jones, Strachey (1966/1996b) adotou um vocabulário psicanalítico de termos técnicos, uma terminologia esquisita e de difícil compreensão, posteriormente alvo de críticas duríssimas. Com o objetivo de propiciar uma ampla aceitação da psicanálise nos países de língua inglesa, principalmente Inglaterra e Estados Unidos da América, esse vocabulário de termos técnicos substituiu as palavras de uso corrente empregadas por Freud por termos médicos e outros provenientes do grego e do latim, conferindo à obra uma carapaça científica, agradável ao público a quem se destinava. Como resultado, foram produzidos muitos enganos no entendimento do conteúdo e principalmente um distanciamento do leitor em relação a sua própria vida interior, porque o palavreado abstrato não deixa ver que Freud, por meio de um vocabulário usual, convoca o leitor a conhecer-se a si próprio, a se pôr como o objeto de que trata a psicanálise (Bettelheim, 2004/1982). Portanto, não obstante seu caráter meritório, a tradução "nunca deixou de ser atacada" (Roudinesco & Plon, 1997/1998, p. 733).

Há quem diga, todavia, que "Strachey obedecia à vontade do próprio Freud de transformar a psicanálise em uma ciência" (Roudinesco & Plon, 1997/1998, p. 733). Por outro lado, "conta-se que, ao tomar conhecimento dos neologismos de tom erudito propostos por Strachey, Freud teria ficado very unhappy" (Carone, 1987/2004, p. 87, grifos da autora). Na realidade, "os termos do vocabulário básico da psicanálise podem ser facilmente reconhecidos e utilizados por qualquer ginasiano de língua alemã, pelo menos na geração contemporânea de Freud" (Carone, 1987/2004, p. 90), o que significa que Freud jamais se utilizou dos "neologismos de tom erudito" empregados por Strachey.

De qualquer maneira, foi desde a publicação de Freud e a alma humana, de Bettelheim, em 1982, que se revelou a necessidade de novas traduções, e, atualmente, são de conhecimento público, entre os profissionais do campo psicanalítico, as imperfeições da tradução inglesa das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud realizada por James Strachey. Mas isso não significa, com efeito, que a edição Standard tenha deixado de ser o principal veículo de acesso e difusão da psicanálise no Brasil. Tão profundo foi seu enraizamento em solo brasileiro, que os estudiosos de Freud resistem a substituí-la, seja porque ali se encontram as anotações feitas durante a leitura, seja porque foi essa a primeira via de aprendizado, com a qual se está habituado (Kamnitzer Bracco, 2012). Mas se "hoje em dia a psicanálise não precisa cortejar o mundo médico para ter existência" (Carone, 1987/2004, p. 88), já é possível dar espaço a novidade e a edição Standard não precisa mais permanecer na condição de fonte principal de estudo, até mesmo entre os psicanalistas (Kamnitzer Bracco, 2012), sobretudo após o surgimento de outras traduções para a língua portuguesa, feitas com base no alemão, que certamente representam um passo adiante em relação à Standard. Em todo caso, seria injusto não reconhecer a importância da edição Standard para os estudiosos brasileiros das obras de Sigmund Freud. Por isso, se nos fosse permitida a ousadia de tranquilizar aquele que recebeu e receberá ainda muitas críticas, com gratidão na voz, diríamos a James Strachey: "missão cumprida".

 

"Introdução ao narcisismo" ou "Introdução do narcisismo"?

Brevemente apresentada, a discussão sobre a tradução Standard serviu para prefaciar o assunto principal deste artigo. O que agora propomos é enfatizar como um erro quase imperceptível de tradução do título desse importante artigo de Freud ainda hoje pode produzir uma inferência enganosa sobre seu conteúdo, isto é, uma contaminação de seu entendimento integral, levando o estudioso a conclusões errôneas, sem perceber. Por que a tradução do título induz à formulação de conclusões errôneas?

O título original em alemão - "Zur Einführung des Narzissmus" - foi traduzido por "On narcissism: an introduction" na edição Standard e "Sobre o narcisismo: uma introdução" na Standard brasileira, muito embora o próprio Strachey (1969/1996a, p. 77) tenha reconhecido que "a tradução mais literal do título desse artigo seria 'Sobre a introdução do conceito de narcisismo'". Uma tradução mais recente, realizada por Paulo César de Souza, optou por "Introdução ao narcisismo", e assim preservou o mesmo sentido da tradução de Strachey, e por isso também se enquadra na ponderação crítica aqui veiculada, fato que explicita a importância e a atualidade desse debate, visto que essa tradução mais recente encontra-se entre as mais utilizadas atualmente. Em sentido rigorosamente literal, a tradução do alemão é "Introdução do narcisismo", e é essa a tradução adotada por José Luis Etcheverry, na edição argentina publicada pela editora Amorrortu, aliás, a tradução mais adequada para o título original de Freud, como ficará explícito em breve.

Alguns anos antes de vir à luz o mencionado artigo de Freud, o surgimento de "novas compreensões" sobre o psiquismo, decorrentes dos estudos sobre as psicoses, teve um profundo impacto sobre a psicanálise, particularmente sobre a teoria da libido, apresentada em 1905 com a publicação dos "Três ensaios da teoria da sexualidade". Essa obra é uma primeira exposição amadurecida sobre o nexo entre o psíquico e o sexual (Freud, 1905/2016), e foi posta em dúvida com o surgimento do narcisismo, identificado com base nas psicoses. Desde o período pré-psicanalítico a sexualidade intrigava Freud, e ele demorou pelo menos uma década para compreender com maior profundidade a força poderosa da sexualidade na constituição e no desenvolvimento psíquico. Mas a partir dos "Três ensaios da teoria da sexualidade" a interrogação foi respondida, e Freud apresentou a concepção de desenvolvimento libidinal - depois esquematizada em fases ou estágios. Acontece, entretanto, que em 1905 Freud não contemplou exatamente as particularidades psíquicas das psicoses em nenhuma dessas fases do desenvolvimento psicossexual. Então, teria Freud se enganado? As "novas compreensões" - por exemplo, a retirada da libido dos objetos e seu retorno ao eu - poderiam invalidar a teoria da libido de Freud? Pois não a invalidaram, e a incorporação do narcisismo à teoria da libido foi a resposta dada por Freud, resposta que reassegurou sua validade.

Por isso, recorrer a um histórico do conceito de narcisismo na obra de Freud servirá tanto para comprovar a reação de Freud às "novas compreensões", quanto para demonstrar que a tradução "On narcissism: an introduction" é inadequada, porque essa tradução torna difícil ao estudioso a compreensão de que esse artigo guarda em si a importância de delimitar um incremento conceitual que redesenhou a teoria da libido. Em 1910 Freud mencionou pela primeira vez a palavra "narcisismo" em uma nota de rodapé à segunda edição dos "Três ensaios da teoria da sexualidade". Na ocasião, explicava a origem provável da homossexualidade masculina: "partindo do narcisismo, buscam homens jovens e semelhantes a si mesmos" (Freud, 1905/2016, p. 34), e já era possível observar que, nesse período, ao se referir ao narcisismo, Freud (1905/2016) não expôs com clareza a "localização" e a importância do narcisismo no curso da evolução psicossexual, limitou-se a associá-lo à homossexualidade masculina, em referência direta ao mito grego de Narciso. É de importância particular o fato de que essa nota de rodapé serviu ao propósito de acrescentar um adendo à explicação dada em 1905, um alargamento da compreensão sobre a psicogênese da homossexualidade masculina. Como quem faz um "puxadinho" no fundo da casa, Freud anexou o narcisismo a sua teoria. Até essa data não seria completamente errônea a suposição de que o narcisismo seria um pormenor psíquico distintivo da homossexualidade masculina, visto que ainda não havia uma incorporação definitiva do narcisismo à teoria da libido.

Logo depois, no "caso Schreber" (Freud, 1911/2010c), novamente o narcisismo foi mencionado, dessa vez com maior elaboração. Nesse caso clínico se descobre que o narcisismo foi identificado em pacientes psicóticos e que foi sobretudo mediante o estudo das psicoses que Freud reconheceu e admitiu o narcisismo (Laplanche & Pontalis, 1982/1998), até então praticamente ignorado. E é isso que explica sua ausência na teoria da libido, em 1905.

Desenvolvida com base na experiência clínica com pacientes neuróticos, principalmente, a teoria da libido não contemplava os aspectos psíquicos característicos da paranoia, o que significa que Freud ainda não havia concebido em sua totalidade e incorporado a "noção" de narcisismo à teoria da libido. Sem dúvida, quando Freud (1911/2010c) se viu diante da paranoia, reconheceu sua diferença em relação às neuroses - e também em relação às perversões -, porque o mecanismo psíquico formador da paranoia - a projeção - não correspondia ao observado nas neuroses.

Mas, então, a teoria da libido se restringia às neuroses? Freud (1911/2010c) demonstrou que não, que também se aplicava às psicoses. No próprio "caso Schreber" Freud (1911/2010c) forneceu evidências que comprovavam o nexo da paranoia com aspectos primitivos do vínculo entre o filho (Schreber) e seus pais, vínculo permeado pelo impulso sexual, o que corroborou o pilar consolidado em 1905. Quer dizer, Freud deu uma resposta satisfatória a suposição de que o narcisismo refutaria a teoria da libido ao demonstrar que também na paranoia a sexualidade é um componente etiológico de peso, pois outra vez a sexualidade (infantil) aparecia na condição de um ingrediente de base para esse tipo de distúrbio mental, também. Isso significou que a conexão entre o psíquico e o sexual continuava válida, tanto no que se referia às neuroses e perversões, como também às psicoses, explicadas depois da introdução do narcisismo na teoria da libido.

Por exemplo, a explicação sobre a formação do sintoma paranoico de Schreber é reveladora de como a paranoia poderia ser explicada pela psicanálise, logo poderia ser inserida na teoria da libido, em vez de a pôr em dúvida. Freud (1911/2010c) mostrou que a paranoia se relacionava com a projeção, quer dizer, o delírio de Schreber, que se sentia odiado e perseguido, resultou da "substituição" de uma "percepção interna" - que foi sufocada e deformada - por uma "percepção externa". No caso, o impulso homossexual de Schreber foi sufocado e chegou até a consciência dele como se outro homem (o médico, Deus) - representações do pai - o desejasse, ou seja, o "amar" alguém do mesmo sexo, depois de estrangulado e deformado, se transformou em "odiar", e a projeção deste ódio produziu o delírio de perseguição. Em suma, o impulso homossexual de Schreber chegou assim a sua consciência: "ele me odeia e está me perseguindo para me transformar em uma mulher". Sobre isso, a conclusão de Freud (1911/2010c) é que no delírio paranoico de Schreber aquele que se encontra na posição de perseguidor é o mesmo indivíduo que foi inconscientemente amado, num momento anterior.

Esse exemplo deixa ver que a psicanálise da paranoia foi uma novidade importante que até mesmo proporcionou uma reconfiguração da teoria da libido, com a inclusão do narcisismo, porque quando Freud quis situar a especificidade da paranoia, diferenciando-a das neuroses, recorreu ao narcisismo, propondo a introdução do narcisismo na história evolutiva da libido, localizando-o como um "estágio, no desenvolvimento da libido, pelo qual se passa no caminho do autoerotismo ao amor objetal" (Freud, 1911/2010c, p. 80), e sugeriu que a fixação no estágio narcísico da libido relaciona-se à formação do sintoma paranoico, supondo um retorno do impulso - homossexual - ao "eu". Quem prossegue é Freud:

Na paranoia, no entanto, há indícios clínicos de que a libido retirada ao objeto recebe um emprego especial. Lembramos que a maioria dos casos de paranoia exibe algum delírio de grandeza, e que o delírio de grandeza por si só pode constituir uma paranoia. Disso inferimos que na paranoia a libido liberada se volta para o Eu, é utilizada para o engrandecimento do Eu. Com isso atinge-se novamente o estágio do narcisismo, conhecido no desenvolvimento da libido, no qual o próprio Eu era o único objeto sexual. Por causa desse testemunho clínico supomos que os paranoicos trazem uma fixação no narcisismo, e dizemos que o recuo da homossexualidade sublimada ao narcisismo indica o montante da regressão característica da paranoia. (1911/2010c, p. 96, grifos do autor)

O que agora é da maior importância é já se poder afirmar, nesse caso clínico, que o narcisismo foi absorvido pela teoria da libido, seja em sua associação com manifestações psicopatológicas, seja associado ao curso normal da evolução libidinal. É o que Freud vai dizer pouco depois: "Um motivo premente para nos ocuparmos com a ideia de um narcisismo primário e normal apareceu quando se fez a tentativa de incluir o que sabemos da dementia praecox (Kraepelin) ou esquizofrenia (Bleuler) sob a hipótese da teoria da libido" (Freud, 1914/2010b, p. 15). Aliás, apoiado na descrição clínica de Näcke, Freud inicialmente considerou o narcisismo uma forma de perversão, mas, conforme ele continua:

Chamou a atenção da pesquisa psicanalítica o fato de características isoladas da conduta narcisista serem encontradas em muitas pessoas sujeitas a outros distúrbios, como os homossexuais ..., e por fim apareceu a conjectura de que uma alocação da libido que denominamos narcisismo poderia apresentar-se de modo bem mais intenso e reivindicar um lugar no desenvolvimento sexual regular do ser humano. (Freud, 1914/2010b, p. 14)

Depois, em "Totem e tabu", Freud (1913/2012b) outra vez apresentou o narcisismo como um estágio da evolução da libido. Anteriormente, em "Três ensaios da teoria da sexualidade", Freud (1905/2016) havia proposto, no que se refere aos estágios da evolução libidinal, que no estágio do autoerotismo os impulsos sexuais são discerníveis, mas não se dirigem a um objeto exterior, e a satisfação é encontrada no próprio corpo, até que, mais tarde, o autoerotismo dá lugar ao amor objetal. Mas em "Totem e tabu" ele novamente propôs a introdução do narcisismo entre o autoerotismo e a eleição de objeto, e o narcisismo seria então o estágio intermediário em que os impulsos parciais se fundem pela primeira vez em uma "unidade narcísica". Escreve Freud:

Nesse estágio intermediário ... os instintos sexuais antes separados já se juntaram numa unidade e encontraram um objeto; mas esse objeto não é externo, alheio ao indivíduo, e sim o próprio Eu, já constituído por esse tempo. Considerando fixações patológicas desse estado, observadas mais tarde, nós o denominamos narcisismo. A pessoa se comporta como se estivesse enamorada de si mesma; os instintos do Eu e os desejos libidinais ainda não são separados por nossa análise. (1913/2012b, pp. 140-141, grifo do autor)

Em seguida, Freud (1913/2012b, p. 141) reconheceu que ainda não era possível apresentar "uma caracterização suficientemente precisa desse estágio narcísico", e por isso em "Introdução do narcisismo", publicado no ano seguinte, apresentou o narcisismo muito mais detalhadamente. Nessa obra, pode-se afirmar com certeza que Freud (1914/1992) fez uma apresentação mais sofisticada do conceito de "narcisismo", mas, pelo visto até agora, essa publicação também carrega em si a importância primária de introduzir o narcisismo na teoria da libido, como afirmou o próprio Freud (1914/1992, p. 73, tradução nossa): "não pretendo aqui esclarecer o problema da esquizofrenia nem me aprofundar nele, mas apenas recompilar o que já foi dito em outros lugares, a fim de justificar uma introdução do narcisismo (como um conceito da teoria da libido)".

Depois de abordada a necessária correção da teoria da libido, em que a evolução psicossexual foi então compreendida por uma perspectiva nova, inaugurada com o advento do narcisismo, é também importante reconhecer que pela primeira vez a teoria da libido foi posta em dúvida por personalidades renomadas e provenientes do interior da Sociedade de Psicanálise, como é o caso de Adler e Jung, uma ameaça muito mais poderosa do que as críticas provenientes de fora da Sociedade de Psicanálise. As teorias psicológicas de Adler e Jung, suas "novas compreensões", balançaram o alicerce da psicanálise, mas, como não costumava aceitar caprichos, ao introduzir o narcisismo na teoria da libido, até mesmo demonstrando seu nexo com as psicoses, Freud praticamente resolveu a questão, porque demonstrou que a teoria da libido não estava errada, apenas tinha sido necessário complementá-la.

Com o exposto até agora estamos em condições de retomar a pergunta a respeito da tradução do título do já mencionado artigo de Freud, tanto a adotada pela edição Standard, quanto a adotada por Paulo César de Souza. "Sobre o narcisismo: uma introdução" e "Introdução ao narcisismo" são traduções que fazem pensar que a principal intenção de Freud era apresentar de maneira introdutória o conceito de narcisismo - o que de fato se concretiza, mas é de importância secundária. Como visto, a teoria da libido de Freud foi posta em xeque, porque uma grave lacuna foi identificada, o que poderia desqualificá-la por completo. Então, Freud (1914/1992) reagiu à situação com esse artigo, "Introdução do narcisismo", que foi, aliás, uma resposta a Adler e Jung, e principalmente uma correção da teoria da libido, correção, como visto, iniciada em 1910. Esta sim foi a finalidade essencial desse artigo de Freud. Além do mais, o próprio Strachey (1969/1996a, p. 78) foi categórico quando afirmou que, "na realidade, um dos motivos de Freud para escrever esse artigo foi, sem dúvida, demonstrar que o conceito de narcisismo oferece uma alternativa à 'libido' não-sexual de Jung e ao 'protesto masculino' de Adler".

Se, conforme ensina a psicanálise, a sexualidade é de importância fundamental na constituição psíquica e, mais especificamente, na causação das neuroses e demais distúrbios mentais, a hipótese de Jung de uma "libido não-sexual" comprometeria um dos alicerces mais fecundos da psicanálise, até mesmo pondo em dúvida a teoria da repressão, visto que a teoria das neuroses prevê que à repressão excessiva da sexualidade podem seguir-se distúrbios neuróticos. Desde a correspondência entre Freud e Jung, em 1912, entretanto, evidenciou-se o descontentamento de Freud em relação às tentativas de modificação da teoria da libido. Nesse ano, Jung viajou aos Estados Unidos da América e lá fez algumas palestras sobre a psicanálise, nas quais expressou "certas opiniões que se desviam das concepções existentes até agora, particularmente em relação à teoria da libido" (McGuire, 1974/1976, p. 604). Aliás, Jung disse para Freud que sua versão da psicanálise "conquistou a simpatia de muitas pessoas que, até o momento, estavam confusas com o problema da sexualidade na neurose" (McGuire, 1974/1976, p. 604). Freud não se entusiasmou e o aconselhou a não "contar isso como crédito" (McGuire, 1974/1976, p. 606). E, não muito tempo depois, escreveu Freud:

Em 1912, numa carta que enviou da América, Jung se gabava de que as modificações por ele introduzidas na psicanálise haviam superado as resistências de muitas pessoas que até então nada queriam com ela. Respondi que isso não era razão para se vangloriar, e que quanto mais ele sacrificasse as - duramente adquiridas - verdades da psicanálise, tanto mais ele veria se desvanecerem as resistências. A modificação de que os suíços se orgulhavam era, mais uma vez, o refreamento teórico do fator sexual. Confesso que desde o princípio entendi esse "progresso" como uma adequação excessiva às exigências da atualidade. (1914/2012a, pp. 315-316)

Na conclusão do artigo sobre a história do movimento psicanalítico é ainda mais explícita a rejeição de Freud em relação a Jung, tanto que, conforme fez questão de apontar, as supostas "contribuições" dadas por este caracterizaram um rompimento com a psicanálise, e, com efeito, não era justo a teoria junguiana equivaler à teoria psicanalítica. Para Freud (1914/2012a), as modificações introduzidas por Jung na psicanálise são como a faca de Lichtenberg: "Ele mudou o cabo e pôs uma nova lâmina; como nela se acha gravada a mesma marca, espera-se que acreditemos que é o mesmo utensílio" (1914/2012a, p. 327). Para Freud, Jung vestiu a psicanálise ao sabor da moda e assim certamente haveria de proporcionar uma diminuição da resistência direcionada a ela. O abrandamento dessa resistência decorria, porém, da renúncia a um dos principais sustentáculos da psicanálise - a teoria da libido -, uma renúncia de sua própria essência, episódio que finalmente decretou o afastamento definitivo de Jung.

Vê-se, entretanto, que as histórias clínicas dessa época são suficientes para responder à tentativa de contestação da teoria da libido. Em "História de uma neurose infantil", também difundida como o caso "o homem dos lobos" (Freud, 1918/2010a), há novamente um conteúdo identificável como uma resposta aos questionamentos à teoria da libido. Entre as histórias clínicas de Freud, talvez esta contenha a maior proporção de dados com força para pôr às claras o nexo entre a sexualidade infantil e a repressão, por um lado, e a formação psíquica e o comportamento adulto, até mesmo seus desenlaces psicopatológicos, por outro. Aqueles que levantaram dúvidas sobre a importância da sexualidade infantil e da repressão na causação das neuroses (perversões e psicoses) encontraram nesse caso clínico um volume de informações, provenientes do processo de regressão libidinal posto em ação por meio da análise clínica, que atestam a concatenação indubitável dos referidos fenômenos entre si.

Atendo-se unicamente a um recorte específico que comprove a teoria da libido e responda às críticas da época, o caso "o homem dos lobos" expõe com clareza os dois tempos da neurose - pode-se dizer, preferencialmente, os dois tempos do desenvolvimento psicossexual -, uma constatação suficientemente válida para atestar o determinismo da sexualidade infantil e da repressão na etiologia das neuroses. Freud (1918/2010a) forneceu informações que expõem, por exemplo, o encadeamento entre a cena primária, a ameaça de castração, o impulso anal-sádico sobressalente, o desejo incestuoso de cunho homossexual, por um lado, e a formação dos sintomas fóbicos e posteriormente obsessivos de caráter religioso que caracterizaram a neurose infantil, por outro, que desembocou na neurose obsessiva adulta, manifesta nos problemas com a defecação e com o dinheiro, na relação tumultuada com mãe e irmã, nas particularidades da escolha objetal adulta, entre outras. Em suma, explicita-se que a neurose adulta é uma reedição da neurose infantil, argumentação que validou inteiramente a teoria da libido com dados oriundos da experiência clínica.

Finalmente, o título "On narcissism: an introduction" ou "Sobre o narcisismo: uma introdução" não deixa ver a importante reconfiguração que Freud (1914/1992) propôs neste artigo, porque oculta o alargamento conceitual-teórico desenvolvido com base na compreensão das manifestações psicóticas e sugere que o artigo limita-se a uma caracterização introdutória do narcisismo, quando, na realidade, o artigo se propôs a rebater críticas à teoria da libido, redesenhar o percurso de desenvolvimento psicossexual por meio da introdução do narcisismo, e consolidar o pilar desenvolvido em 1905.

 

Referências

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Recebido em em: 2/2/2021
Aceito em: 18/5/2021

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