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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo July/Dec. 2021

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Strachey antes de Freud1

 

Strachey before Freud

 

Strachey antes de Freud

 

Strachey avant Freud

 

 

Suzanne Robell Gallo

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / suzannergallo@gmail.com

 

 


RESUMO

A autora discorre sobre trajetória de James Strachey antes da Standard Edition. Encadeia alguns acontecimentos da vida do jovem Strachey recolhidos da variada e esparsa literatura que o menciona. O texto aborda a sexualidade e o ambiente da época.

Palavras-chave: sexualidade, homossexualidade, Freud, Standard Edition, Cambridge


ABSTRACT

The author writes about James Strachey's trajectory before the Standard Edition. She connects some events in the life of young Strachey drawn from the miscellaneous and scattered literature that mentions him. The text addresses sexuality and the ambiance of that period.

Keywords: sexuality, homosexuality, Freud, Standard Edition, Cambridge


RESUMEN

La autora escribe sobre la trayectoria de James Strachey antes de la Standard Edition. Enlaza algunos acontecimientos de la vida del joven Strachey recopilados de la variada y dispersa literatura que lo menciona. El texto aborda la sexualidad y el escenario de la época.

Palabras clave: sexualidad, homosexualidad, Freud, Standard Edition, Cambridge


RÉSUMÉ

L'autrice raconte la trajectoire de James Strachey avant la Standard Edition. Elle retrace quelques évènements de la vie du jeune Strachey recueillis de la variée et parsemée littérature qui lui fait mention. Le texte traite de la sexualité et de l'ambiance de l'époque.

Mots-clés: sexualité, homosexualité, Freud, Standard Edition, Cambridge


 

 

Antes de ser analisando e tradutor de Freud, James Strachey teve uma vida curiosa. Durante a formação no Instituto de Psicanálise da SBPSP li a correspondência entre ele e sua mulher Alix Strachey (Meisel & Kendrick, 1985). Parecia que eu tinha encontrado Strachey em "carne e osso", ele e Alix estavam em Viena. Strachey em análise com Freud, pouco tempo depois Alix teve palpitações durante uma ópera2 e Strachey pediu a Freud que também a tomasse em análise. Freud aceitou, durante um período os dois estiveram em análise individual com ele. Foi a leitura das cartas que eles trocaram quando Strachey voltou para Londres e Alix, que estava em Berlim, e tinha sido encaminhada por Freud a Abraham, que me inspirou a pesquisar a biografia de Strachey antes de ele se deitar no divã de Freud.

Tentei encadear alguns acontecimentos da vida do jovem James Strachey que recolhi na variada e esparsa literatura que o menciona. Em quase todos as fontes que consultei o Strachey do período anterior ao da análise com Freud aparece como personagem secundário. Irmão caçula de fulano, amigo de sicrano, amante de um poeta famoso, conhecido de um editor, escritor de minúsculas resenhas, um possível paciente de Freud.

Na correspondência entre ele e Alix, James aparece em primeiro plano. Só bem depois de ser analisado por Freud, em seu papel como editor e tradutor (junto com Alix Strachey) da Standard Edition, que ele passa a ser o personagem central e objeto de intermináveis debates de alguns leitores ilustres que leram a tradução em inglês como se fosse o Talmude.3 Até mesmo seu artigo fundamental "A natureza da ação terapêutica na psicanálise" (Strachey, 1934/2012) é periodicamente esquecido pelos psicanalistas. Ao que me consta, e para meu espanto, no Brasil foi traduzido unicamente em Brasília pela revista Alter de Estudos Psicanalíticos em 2012. Creio que não há nenhum livro dedicado exclusivamente às notas de rodapé de Strachey, que são um guia de estudo em si mesmas. Mas estas fazem parte de uma outra história.

James Strachey nasceu em Londres, em 26 de setembro de 1887. Era o mais novo de 13 irmãos. Os filhos de sua irmã mais velha, que tinha 26 anos quando ele nasceu, o chamavam de "Tio Baby".

A mãe de James, Lady Jane Maria Grant Strachey (1840-1928), é a única mulher que mereceu um capítulo só para si no livro The Strachey Family (Sanders, 1953). Nesse livro encontramos informações que indicam que ela exercia o poder na casa, revertendo assim o papel tradicional das mulheres da era vitoriana. Leu John Stuart Mill e tornou-se sufragista, educou seus 13 filhos de forma liberal para a época. Era atenta à personalidade de cada um deles, todos aprenderam com ela o prazer da literatura clássica, em inglês e francês. Em casa, depois do jantar, todos brincavam de atores de peças de teatro. Lady Strachey tinha uma vida social ativa, convivia com artistas e escritores. Casou-se com Sir Richard Strachey, secretário de seu pai.

Assim que terminou seus estudos de engenharia, Sir Richard Strachey (1817-1908), pai de James, foi da Inglaterra para a Índia, onde serviu como segundo tenente do Exército inglês; em 1871 voltou como general. Enquanto viveu na Índia, passou tempos no Himalaia, estudou a botânica e geologia do Tibete. Recolheu e levou para Londres espécimes botânicos e dados científicos no campo da biologia, geografia e meteorologia. Na Inglaterra chefiou o comitê meteorológico da Royal Geografical Society, da qual era um membro eminente. Deu nome a mais de um espécime botânico, entre outros, a Stracheya Tibetica, que encontrou no vale Guge, no Tibete. Foi responsável pelos verbetes "Asia" e "Himalaya" na Enciclopédia Britânica. Sir Richard Strachey passava suas tardes de aposentado lendo romances que lhe levavam numa bandeja de prata (Sanders, 1953).

Aos 11 anos, na escola, James conheceu Rupert Brooke, o poeta pelo qual viria a se apaixonar anos depois.

Entre 1905 e 1909 estudou na Universidade de Cambridge. Residiu nos mesmos aposentos que haviam sido de seu irmão Lytton Strachey (1880-1932), famoso escritor gay,4 autor de inúmeros livros, entre eles, uma biografia da Rainha Vitória, publicada em 1921, que considero leitura obrigatória para psicanalistas (Strachey, 1921/2000). No Trinity College,5 Lytton Strachey havia sido eleito o presidente da Conversazione Society de Cambridge, também conhecida pelo nome The Apostles. Era uma espécie de sociedade secreta que reunia a nata da intelligentsia. Na época em que James frequentou a universidade, essa confraria era predominantemente gay. Um clube gay. Os rapazes eram escolhidos pela inteligência, cultura e beleza. Um pouco como no modelo grego de o homem mais velho educando o mais novo nas artes e na filosofia. Ao entrar em Cambridge, James já era um erudito, conhecia bem ballet, teatro, música e literatura clássica. Os debates que ocorriam nas reuniões dos Apóstolos eram frequentados por vários futuros integrantes do grupo de Bloomsbury. John Maynard Keynes (economista, com quem James teve um breve affair), Leonard Woolf (futuro marido de Virginia Woolf e dono da Hogarth Press), Adrian Stephen (irmão de Virginia Woolf e futuro psicanalista da British Psychoanalytical Society, bps), Duncan Grant (pintor e amante de Adrian Stephen) e muitos outros.

Em 1906 James foi aceito como membro dos Apóstolos. W. C. Lubenow, em The Cambridge Apostles, 1820-1914, Liberalism, imagination, and friendship in British intellectual and professional life, escreve:

a maioria ... eram homens com profissões, de carreiras ativas, que usavam o mundo das letras como suplemento para, e por vezes como retiro de, suas maiores preocupações. Era um modo de se estabelecer no mundo e de preservar, para cada um, alguma distância desse mesmo mundo. Não havia nada de fácil nessas vidas. (Lubenow, 1998, p. 221)

Esse autor faz um estudo detalhado dos Apóstolos sem mencionar os amores entre os homens que o frequentaram.

Em 1918, André Gide hospedou-se em Cambridge, em um dos tais aposentos que os Apóstolos frequentavam, e escreveu:

Nunca na minha vida tive tanto conforto ... Tenho dois empregados à minha disposição. Escrevo diante de um Picasso em seu mais recente estilo e de um admirável vaso persa, de costas, quando consigo, para uma biblioteca incomparável, onde uma primeira edição do Tratado das secções cônicas [Apolônio] se aninha ao lado de primeiras edições dos elizabetanos. A bebidinha que me servem é um Mouton-Rotschild '78 ... (Forrester & Cameron, 2017, pp. 526-527)

Foi nesse ambiente de Cambridge que James Strachey se esbaldou. Indolente, faltava às aulas que compunham o currículo oficial do Trinity College. Não se esforçava nos estudos, pairava pelas aulas e corredores com ar blasé. Não se interessava pelas aulas acadêmicas, e sim pelos debates e pela atmosfera da sociedade secreta que continuou frequentando mesmo depois de formado.

Parece que esse estilo perdurou por anos. Tanto que, em 1921, Freud se queixa de Strachey numa carta a Ernest Jones: "Strachey terminou o 'Batem numa criança' e vai me consultar sobre alguns pontos amanhã. Ele é excelente, mas tende a ser preguiçoso se não for repreendido" (Freud, 1993, pp. 408-409). Talvez Freud estivesse só fazendo política de boa vizinhança com Jones, pois em seguida ele escreve que Strachey estava pronto para começar a tradução dos casos clínicos. Em 14 de julho do mesmo ano ele escreve novamente a Jones:

Caro Jones, na véspera da minha partida para Badgastein (Villa Wassing) acabei de dar conta do Psicol. das massas, cuja primeira cópia estou lhe enviando via o sr. Strachey. Ele está levando também a tradução do mesmo e lhe peço para que seja gentil com ele e sua esposa.

Só consegui ler a primeira metade da tradução antes de sair de férias, a segunda parte é mais difícil. Achei [a tradução] absolutamente correta, livre de todos os mal-entendidos e espero que o resto se prove igual. Não sou juiz do estilo, me pareceu simples e fácil, as suas [de Jones] alegações em favor da elegância talvez sejam maiores que as minhas. De todo modo, não seja muito duro com ele, não é fácil encontrar tradutores eficientes. ...

Strachey e sua esposa poderão lhe ser muito úteis. São excepcionalmente gentis e cultos, apesar de algo esquisitos [queer no original], e, após passarem por suas análises (o que ainda não é o caso), poderão se tornar analistas sérios. Talvez ele seja o homem que poderá assisti-lo na edição do Journal, e os dois estarão aptos a ter parte ativa na administração da tal da Brunswick. Isso ficará para um futuro desenvolvimento, por enquanto não há segurança da completa convicção deles. Devo lhe avisar que eles são mais para sensíveis e críticos. Mas não devem ser repreendidos, são material bom. (Freud, 1993, p. 431)

Voltando a Strachey antes de Freud, James teve breves relações amorosas com alguns homens antes de se apaixonar perdidamente pelo poeta Rupert Brooke (Hale, 1998). Entre outros, o pintor Duncan Grant (o qual viveu um triângulo amoroso com Vanessa Bell - nascida Stephen, irmã de Virginia Woolf - e David Garnett) e o economista John Maynard Keynes (que mais tarde viria a se casar com a bailarina russa Lidia Lopokova).

Depois de seus estudos em Cambridge, James foi trabalhar como editor assistente na revista The Spectator, cujo editor era seu primo St. Loe Strachey. Escrevia artigos na seção de cultura, assistiu aos Ballets Russes, companhia de vanguarda dirigida por Sergei Diaghilev. Viu Nijinsky dançar o revolucionário ballet L'après midi d'un faune.6 Até o fim da vida apreciou a dança e a música clássica, especialmente Mozart, Haydn e Wagner. Escrevia resenhas nos pequenos cadernos do programa dos concertos, ballets e óperas.7

Strachey fez parte do grupo de Bloomsbury, onde conviveu com, entre vários outros, o filósofo Bertrand Russell assim como Virginia Woolf e sua irmã Vanessa Bell.

Foi nesse ambiente que conheceu Alix Sargant Florence com a qual foi morar em 1919 e se casou em 1920. Ao vê-la pela primeira vez, em 1910, James escreveu a seu irmão Lytton que ela era um charme e totalmente menino.8

Durante a Primeira Grande Guerra James foi um pacifista e recusou-se a se alistar.

Em 1916 trabalhou em Londres como jornalista na revista Athenaeum, que em 1921 foi absorvida pela Nation, cujo dono era o economista John Maynard Keynes. O editor-chefe dessa revista era Leonard Woolf, o qual, como mencionei acima, mais tarde fundou a editora Hogarth. Devido a essa amizade, anos mais tarde, James convenceu Woolf a publicar a Standard Edition das obras de Freud.

Voltemos agora para a paixão pelo poeta Rupert Brooke. Brooke era de uma beleza lendária. O poeta Yeats dizia que Brooke era o homem mais bonito da Inglaterra. Leonard Woolf comenta, a respeito da primeira vez que viu Brooke: "é exatamente o que Adonis deve ter parecido aos olhos de Afrodite" (Hale, 1998, p. 14).

Em 21 de janeiro de 1910 James Strachey, apaixonado, escreve a Rupert Brooke:

Quão maravilhosamente você penetra os mistérios do coração humano! Você é realmente bom em psicologia. Será que seu impressionante talento lhe permite prever o instante em que serei melodramático e cortarei seu pescoço? Ou quando meu desejo será frenético a ponto de que a ajuda de um pouco de clorofórmio (ah! Preparei bem os detalhes) me forçará a estuprá-lo? Certamente é impossível que meu pênis tenha escapado à sua atenção? Você não pode duvidar de que eu tenha bolas? Posso ao menos te assegurar de que as tenho, e também (en passant) que se você gostar delas ... estão inteiramente ao seu dispor... (Strachey, citado por Hale, 1998, p. 96)

Na correspondência entrevemos um Brooke egoísta, uma espécie de Puer Aeternus, um Peter Pan. Em alguns momentos, se aproveitava de que Strachey estava totalmente rendido a ele, pedia dinheiro emprestado e não devolvia. Combinava encontros, na maioria das vezes a pedido de James, e desmarcava na última hora. Strachey tentava seduzir Brooke, e este se esquivava. Foi uma paixão não correspondida. As cartas de James são algo patéticas. Ele se rebaixa e implora pela atenção de seu amado Adonis. Entre 1905 e 1914 trocaram inúmeras cartas. Brooke morreu durante a Primeira Guerra Mundial.

Depois de Brooke, Strachey teve um breve affair com Noel Olivier (1892-1969), com quem Brooke tivera antes um namoro platônico. Noel era uma moça criada com excepcional liberdade para a época. Ela e as irmãs iam acampar junto com rapazes e se exercitavam e nadavam ao ar livre, coisa rara para mulheres da época, posteriormente se formou em Medicina e exerceu a profissão.

Em alguns momentos dos anos 1918 e 1919 James namorou simultaneamente Noel e Alix. Como sabemos, casou-se com Alix, mas o caso com Noel durou até a morte dele. Em 1938, aos 18 anos de casado com Alix, James escreveu para Noel:

Será que haverá novamente um tempo em que estou deitado com você e perto de você e sentindo você me tocar? Querida, amo-a tanto, que não sei o que dizer, exceto que a amo. Penso em você e a beijo o tempo todo, minha querida Noel. Sua beleza e charmosisse são inacreditáveis. Além disso, estou muito apaixonado por você. (Meisel & Kendrick, 1985, p. 24)

No círculo de Bloomsbury, James era quem mais se interessava pela psicanálise. Assistiu a palestras proferidas por Bertrand Russell, que, em parte, se inspiravam na psicanálise. Nos anos seguintes à sua formatura em Cambridge, Strachey assistia a palestras sobre ocultismo. Já em 1907 ele fez uma palestra para os Apóstolos inspirada no livro de William James, Princípios de psicologia (1890).

Os autores Forrester e Cameron em Freud in Cambridge (2017) contam que

O ano de 1917 foi crucial para a explosão do entusiasmo pela psicanálise na Inglaterra, e não simplesmente pelo crescente número de médicos que mencionavam métodos psicanalíticos nas publicações dos journals médicos. Figuras-chave da intelectualidade inglesa ... mergulharam na análise dos sonhos. (pp. 524-525)

Foi com base no vislumbre das possíveis transformações que a psicanálise poderia lhe propiciar que em 31 de maio de 1920 James Strachey escreveu o rascunho de uma carta a Freud:

Prezado senhor,
Acredito que o dr. Jones tenha mencionado que estou ansioso se possível para organizar ir a Viena para ser analisado pelo senhor. Suponho que ele deva ter explicado que meu objetivo ao fazer análise é obter a base empírica essencial para tal conhecimento teórico da psicanálise da forma como a tenho percebido na leitura. Com esse propósito eu estaria preparado para permanecer em Viena por pelo menos um ano. Entendo pelo dr. Jones, que o sr. não terá nenhuma vaga até o outono; porém, estou me arriscando a lhe escrever, aconselhado por ele, para indagar se o senhor estaria disposto a me tomar em análise nessa época. No entanto, estou preocupado com que a questão financeira se prove um obstáculo. Em face da possibilidade (de meu ponto de vista) e minha disposição para uma análise prolongada, não disponho do valor de mais de um guinéu por hora em moeda inglesa.

Não sei se um arranjo satisfatório seria possível nessas circunstâncias; porém, devo expressar um desejo, difícil de exagerar, de ter a sorte suficiente de obter as vantagens de seu ensinamento pessoal em psicanálise.

Com os melhores cumprimentos,
James Strachey.
(Forrester e Cameron, 2017, p. 527)

No dia 4 de junho de 1920, Freud responde a Strachey:

Prezado sr. Strachey

Não tenho certeza de se o sr. conhece e fala alemão, portanto tentarei o meu melhor inglês, por pior que seja.

É verdade que não tenho horário disponível antes do outono. Nem seria desejável começar uma análise que teria de ser interrompida logo após poucas semanas.

O obstáculo que o senhor menciona tão sinceramente não é absoluto. De modo algum teria existido antes da guerra. Mas o senhor sabe que agora as coisas mudaram muito para pior. Acabei ficando pobre e tenho que trabalhar muito para conseguir me ajeitar. Então eu não aceitaria um paciente pelo valor de um guinéu, mas o caso de um homem que deseja ser um pupilo e se tornar analista está acima dessas considerações. Enquanto a libra esterlina continuar equivalente a mais ou menos 600 coroas, estou pronto a aceitá-lo da maneira que propõe e fico feliz que o sr. se permita um período tão espaçoso para o trabalho, já que a maioria das pessoas que querem análise pecam contra esse postulado.

Peço que não se esqueça de me relembrar ao final do mês de setembro, quando volto para Viena.

Atenciosamente,
Freud.
(Meisel & Kendrick, 1985, pp. 28-29)

Essa troca de correspondência entre Strachey e Freud não difere muito das primeiras entrevistas entre analista e possível analisando que fazemos 100 anos depois. Freud fez um desconto para ele, pois o caso lhe parecia interessante e porque Ernest Jones pediu uma atenção especial, Strachey havia conversado antes com Jones, pois sabia que ele conduzia a Sociedade Britânica de Psicanálise (bps) com grande rigor. Strachey, que era um gentleman de Cambridge, achou por bem começar seguindo a hierarquia: primeiro pediu o endereço de Freud a Jones e depois escreveu a carta para Freud.

Segundo Meisel e Kendrick (1985), a primeira sessão de análise de Strachey com Freud foi às 11 h do dia 4 de outubro de 1920. Ainda, segundo eles, não se sabe em que língua transcorreu a sessão. Pouco depois de um mês, James descreve uma sessão a seu irmão Lytton, em 6 de novembro de 1920:

Todos os dias exceto domingo passo uma hora no divã do prof. (já somam 34 ao todo), e a "análise" parece permitir uma corrente submarina para a vida. Sobre o de que se trata, serei mais vago do que nunca; de qualquer forma, às vezes, é extremamente interessante e, às vezes, extremamente desagradável - então me arrisco a dizer que há algo nisso. O próprio prof. é muito afável e enquanto artista executa de forma deslumbrante. É bem parecido com o Verral.9 Quase todas as sessões formam um todo esteticamente orgânico. Por vezes o efeito dramático é absolutamente devastador. Na primeira parte da sessão tudo é vago - uma dica obscura aqui, um mistério ali -; então isso parece gradualmente se tornar mais espesso; você sente coisas terríveis acontecendo dentro de você, sem ter ideia alguma do que possa ser; nesse momento ele lhe dá um pequeno indício do caminho a seguir; bruscamente, você tem um claro vislumbre de algo; depois de mais alguma coisa; finalmente você se sente penetrado por uma série de luzes; ele lhe faz mais uma pergunta; você replica uma última vez - e, enquanto toda a verdade clareia, o professor se levanta, cruza a sala para atender a campainha elétrica, e o acompanha até a porta.

Isso é nos melhores dias. Mas há outros nos quais você se deita com uma tonelada de peso sobre o estômago durante toda a sessão, simplesmente incapaz de pronunciar uma única palavra. Creio que é o que me faz ficar ainda mais inclinado a acreditar nisso tudo. Quando você realmente sente a "resistência" como algo físico pesando sobre você, você fica bastante abalado pelo resto do dia.
(James a Lytton, 6 de novembro, 1920; Meisel & Kendrick, 1985, pp. 29-30)

Essa carta foi uma primorosa tradução que Strachey fez para o seu irmão Lytton para explicar o que era uma sessão de psicanálise. Foi muito cuidadoso ao inserir uma espécie de nota de rodapé (ou talvez a primeira das referências cruzadas que viriam a alinhavar toda a Standard Edition) para que Lytton compreendesse o que ele estava tentando traduzir aludindo a Verral, professor especial que ambos tiveram em Cambridge, que sabia ensinar, de modo análogo a como Freud sabia ser psicanalista, mediante o amor de transferência. Essa associação talvez tenha tornado possível que o Strachey de antes da análise com Freud pudesse se transformar no Strachey que a maioria dos psicanalistas conhece.

Vários anos depois a Hogarth Press começou a publicar a Standard Edition, editada em inglês por James Strachey, o mesmo "Tio Baby" caçula de 13 irmãos, flâneur em Cambridge, erudito, bissexual, membro do grupo de Bloomsbury, por meio da qual muitos de nós aprendemos psicanálise.

A Standard Edition foi concebida pelo casal James e Alix Strachey, o mesmo das cartas de amor de Viena, Berlim e Londres. A concepção se deu durante e logo após suas análises com Freud.

 

Referências

Forrester, J. & Cameron, L. (2017). Freud in Cambridge. Cambridge University Press.         [ Links ]

Freud, S. (1993). Carta de Freud a Jones em 7 de fevereiro de 1921. The complete correspondence, Sigmund Freud and Ernest Jones 1908-1939. The Belknap Press of Harvard University Press.         [ Links ]

Hale, K. (Ed.) (1998). Friends & Apostles. The correspondence of Rupert Brooke and James Strachey 1905-1914. Yale University Press.         [ Links ]

James, W. (1890). Principios de psicología. Fondo de Cultura Económica        [ Links ]

Lubenow, W. C. (1998). The Cambridge Apostles,1820-1914, Liberalism, imagination, and friendship in British intellectual and professional life. The Press Syndicate of the University of Cambridge.         [ Links ]

Meisel, P. & Kendrick, W. (Eds.) (1985). Bloomsbury/Freud, The letters of James and Alix Strachey 1924-1925. Basic Books.         [ Links ]

Sanders, C. R. (1953). The Strachey family 1588-1932 - their writings and literary associations. Duke University Press.         [ Links ]

Strachey, J. (2012). A natureza da ação terapêutica na psicanálise (E. Lazzarini & A. R. R. Lazzarini, Trads.). Alter, 30(1),95-122. (Trabalho original publicado em 1934)        [ Links ]

Strachey, L. (2000). Queen Victoria. Penguin Books. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

 

 

Recebido em em: 16/8/2021
Aceito em: 2/9/2021

 

 

1 Todas as citações deste texto são traduções livres da autora.
2 É provável que Alix tivesse algum tipo de transtorno alimentar.
3 O Talmude é uma coletânea de livros sagrados dos judeus, um registro das discussões rabínicas que contêm lei, ética, costumes e história do judaísmo.
4 Na Grã-Bretanha dessa época ser homossexual era crime passível de 10 anos de prisão.
5 O Trinity College faz parte da Universidade de Cambridge.
6 Conservou-se uma versão integral de uma filmagem, de 1912, desse balé: https://youtu.be/Vxs8MrPZUIg.
7 Especialmente nos Glydenbourne Programmes, cujos folhetos continuam a ser distribuídos até hoje no festival anual Glydenbourne de música clássica.
8 Carta de James a Lytton, 12 de setembro de 1910 (Meisel & Kendrick, 1985).
9 Nota de rodapé n. 52 do texto original: "A. W. Verral (falecido em 1912), o classicista, era o professor predileto de Strachey em Cambridge. Como James escreveu em um obituário na The Spectator em 22 de junho de 1912, 'mesmo suas palestras de rotina preparatórias para os exames finais levava os estudantes de graduação a excitados paroxismos de entusiasmo' (p. 981). Verral também era tio de Joan Riviere, a mais completa tradutora de Freud para o inglês antes dos Stracheys" (Meisel & Kendrick, 1985, p. 30).

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