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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo jul./dic. 2021

 

RESENHA

 

Psicanálise e vida covidiana: desamparo coletivo, experiência individual

 

 

Bruna Paola Zerbinatti

Membro membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e pós-doutoranda do Instituto de Psicologia da USP. São Paulo / bruna.zerbinatti@usp.br

 

 

Organizadores: Ana de Staal, Howard B. Levine
Coord. da edição brasileira: Daniel Kupermann
Editora: Blucher, 2021
Resenhado por: Bruna Paola Zerbinatti

 

 

Controvérsias, perdas e ganhos

Escrever a resenha de um livro com capítulos de vários autores é um grande desafio. Pensando que uma resenha pode ser o primeiro contato do leitor com uma obra, as primeiras palavras que ele ouvirá e que poderão levá-lo a adquirir e ler o livro, ou, ao contrário, a rejeitá-lo, a responsabilidade daquele que a escreve é considerável. Isso aumenta ainda mais, tratando-se de um livro sobre um assunto tão atual como a covid-19 - que ainda estamos vivendo - e publicado em três línguas com autores dos mais diversos países. Temos então a coexistência do que é muito diferente e do que é muito comum. Em comum temos o tema da covid-19 e a psicanálise, porque se trata de um livro indiscutivelmente sobre psicanálise, e o diferente fica pelas abordagens teóricas, estilísticas, temáticas, argumentativas, de visão de mundo e de nacionalidades e línguas.

Isso posto, posso apenas realizar uma leitura de algum modo pessoal, já que também estou inserida em um contexto particular e lendo o livro em português, sabendo já que outros leitores talvez tivessem sua atenção focalizada em outros aspectos de cada capítulo e do livro como um todo. Se, por um lado, isso poderia ser considerado uma falha, por outro, a possibilidade de diferentes leituras é também uma das maiores qualidades de uma obra. Ler o livro Psicanálise e vida covidiana estando no Brasil em 2021 traz certas particularidades que talvez se diferenciem um tanto do que encontraram os leitores dos outros países em que a obra foi publicada. No mês que escrevo esta resenha, não vemos ainda a pandemia como algo se normalizando ou um evento "do passado"; a leitura dos artigos sustenta práticas de um momento que ainda não passou, infelizmente, para nós, brasileiros. Adaptações "que se fizeram" em alguns países por alguns meses, em nosso contexto, ainda se fazem.

O livro, organizado por Ana de Staal e Howard Levine e cuja edição brasileira é organizada por Daniel Kupermann, é dividido em diferentes partes com a imensa liberdade de diferentes quantidades de artigos em cada uma, bem como cada capítulo tem extensão variada. Sente-se que os editores se preocuparam em promover um "setting editorial elástico", em que cada psicanalista pudesse usar seu espaço de maneira própria tendo como uma espécie de "regra fundamental" a covid-19 e a psicanálise. É então que se constrói um movimento de leitura instigante e ao mesmo tempo, por vezes, inquietante ao lermos o livro na ordem proposta, pois as controvérsias se adensam e se explicitam. Há os artigos que apontam para um devir esperançoso e outros que tentam nomear o trágico do que está sendo vivido. Percorrerei um pouco mais de perto as partes e os artigos que compõem o livro, embora de forma muito resumida, para que o leitor possa compreender melhor o ponto de vista que quero explicitar.

A primeira e a segunda parte do livro chamam-se, respectivamente, "Pano de fundo/contexto" e "Viver e pensar em tempos de pandemia". Nelas são expostas contextualizações da covid e de funcionamentos psíquicos observados nos países dos diferentes autores, tais como eua, Reino Unido, França e Brasil.

O primeiro texto, "Os insatisfeitos na civilização", de Christopher Bollas, pretende pensar os processos mentais de grupos grandes, a nação, no caso, o que chama de a psicologia de grupo dos eua em 2020. Trata-se de um artigo brilhante, que explica o que seriam estados grupais neuróticos e psicóticos, considerando que tais processos fazem parte da vida normal dos indivíduos, sendo o processo neurótico aquele que inclui o conflito e obriga a um refreamento, enquanto o processo psicótico elimina o conflito intrapsíquico por meio de recusa e cisão, provocando o medo globalizado do outro. O autor mostra como a história religiosa e econômica dos eua foi dando origem a um processo mental psicótico. Embora seja um artigo com detalhes bastante particulares da história americana, os princípios psicanalíticos descritos por ele para o funcionamento daquela nação podem ser facilmente transpostos para a realidade política de nosso país, bem como podemos pensar com os mesmos critérios várias de nossas instituições.

Michel Rustin escreve "A pandemia da covid e seus sentidos" focando no desenvolvimento de duas ideias para uma leitura da situação trazida pela covid: por um lado a teoria trotskista do desenvolvimento desigual e combinado e de outro o conceito psicanalítico de continência, tal como pensado por Bion. Se Bollas, ao final de seu artigo, aponta o quanto uma responsabilização é importante, mas é mais comedido em previsões do que possa ocorrer, Rustin indica uma visão mais otimista, trazendo possíveis soluções e caminhos de desenvolvimento globais.

Já na segunda parte, Bernard Chervet, após um primeiro momento de contextualização da covid na França, procura descrever e organizar o funcionamento das sessões de análise por meio dos conceitos de recusa, da passividade, da regressão e do funcionamento e investimento da linguagem nas sessões. Após uma longa teorização sobre como a percepção e outros elementos estão presentes na sessão de análise e em que processos incorrem, Chervet termina fazendo algumas considerações sobre a diferença desse funcionamento em sessões exclusivamente por telefone, em que muitos traços perceptivos, em sua opinião, essenciais, não estão mais presentes.

"Paisagens da vida mental sob a covid-19", de Alberto Rocha Barros e Elias Rocha Barros, traz reflexões importantes e que fazem pensar sobre o potencial traumático da pandemia com base numa concepção ampla de trauma, além de uma investigação sobre como a vivência da pandemia está aparecendo no consultório por meio de fantasias e angústias. O capítulo é recheado de interessantes vinhetas clínicas construindo um percurso que dá substratos para o pensamento dos autores com base na possibilidade de utilizar um conceito alargado de trauma bem como uma maneira de tratar a simbolização de forma não engessada.

O capítulo de Daniel Kupermann, "A catástrofe e seus destinos: os negacionismos e o efeito vivificante do 'bom ar'" traz "bons ares" para a situação catastrófica da covid-19. Em um artigo baseado fundamentalmente nas ideias de Ferenczi, por um lado, Kupermann define três tipos de negacionismos, que chama de ilusório, hipócrita e pragmático, mostrando suas consequências e como atinge os brasileiros e, por outro, formula a ideia de uma catástrofe que tem potencial criador e não é exclusivamente trágica, terminando seu artigo com questionamentos esperançosos sobre o devir.

A Parte III é nomeada muito precisamente de "O setting sob pressão", e passamos de fato, como leitores, a sentir com mais intensidade as pressões dos diferentes pontos de vista em relação às análises remotas. Se nas primeiras partes vamos observando pontos de vista mais globais, a partir dessa parte as controvérsias psicanalíticas sobre análise remota e presencial começam a ganhar corpo, e vamos tentando construir um pensamento com base nas divergências. Existe quase uma alternância entre artigos de analistas que enxergam positividades na análise remota e aqueles que ressaltam seus impactos e dificuldades, assinalando seus efeitos negativos nos mais diversos sentidos do termo.

De uma maneira muito ponderada e ao mesmo tempo autêntica, Antonino Ferro, em "Estar na linha: qual elasticidade e qual invariância para o setting psicanalítico?", mostra suas vivências com seus pacientes no atendimento on-line e chama a atenção para as muitas mudanças e controvérsias que já houve na psicanálise, considerando a da questão dos atendimentos remotos outra delas. Põe assim sua experiência não como algo incontestável, mas como uma vivência. Sempre tendo bases bionianas, Ferro propõe-se a pensar como considera que sua capacidade negativa aumentou com as sessões remotas e assim também sua liberdade de brincar, já que se sente menos institucionalmente sobrecarregado (o setting clássico seria para ele mais "institucional"). Também rebate uma ideia que tem sido bastante difundida, de que o atendimento pela tela, sem a presença do corpo, bloquearia ou filtraria as emoções que presencialmente poderiam se manifestar. Faz uma importante pergunta que nos leva a uma expansão do pensamento: "afinal, será que o teatro é necessariamente mais envolvente e emocionalmente mais impressionante do que o cinema?" (p. 165). Interessante termos essa metáfora em mente quando fazemos esse tipo de comparação entre atendimentos presenciais e on-line, porque mostra que talvez o problema esteja na própria comparação, e não na experiência de suas especificidades. Defende o autor que, se, por um lado, ele vê uma ampliação da ludicidade nos atendimentos remotos, por outro, sabe que há certos momentos em que o analista também deve estar em uma posição de maior reserva, pensando que então uma oscilação entre os atendimentos remotos e presenciais seria interessante e garantidora de uma "dimensão dinâmica e construtiva" (p. 166).

Ana de Staal, uma das organizadoras do livro, inicia seu artigo levando-nos ao prédio de seu consultório, narrando um momento em que houve um incêndio no prédio durante uma sessão. A partir daí, estabelece a correspondência com a irrupção da covid-19 como um outro momento de "incêndio" no setting e passa então a focalizar a noção de enquadre na psicanálise contemporânea. Se Ferro, no artigo anterior, considerava a análise remota tão válida quanto a presencial, com suas diferenças, propondo o gradiente que comentamos, Ana de Staal, embora tenha Ferro como um autor que lhe é muito caro, considera-a como um "quase" e reafirma a importância do enquadre para as vivências traumáticas e para o desenvolvimento do mundo interno do paciente.

Em "Desamparos individuais, desamparo das instituições psicanalíticas", Serge Frisch relata, por um lado, experiências diversas com pacientes no atendimento via telefone ou via Skype e considera que, mesmo no caso daqueles que falavam mais por telefone do que pessoalmente, essas eram falas com menos carne, e ele então as julga piores que os atendimentos presenciais, sendo muito firme em dizer que o trabalho analítico não acontece a distância. Fisch estende seu pensamento para as instituições de formação analítica da ipa e para as próprias reuniões científicas, entendendo como desamparados os candidatos em formação que estão vivendo esse contexto e reafirmando que o que considera "adaptações remotas de enquadre" traz o risco de a psicanálise se perder tanto em vias de atendimento quanto institucionalmente.

Na Parte IV, "reconfigurações e mudanças na prática", as diferenças de ponto de vista continuam a se explicitar, levando o leitor a fazer um exercício constante de lidar com o conflito que tais diferenças fazem surgir e que o fazem rever sua própria concepção da psicanálise. Em "Corpo e alma na análise a distância: contratransferência angustiada, pânico pandêmico e limites do espaço-tempo", Riccardo Lombardi de alguma maneira retoma alguns pontos de vista de Ferro e Bion, e acredita que a mudança de enquadre favorece a densidade emocional e o acesso a ansiedades mais íntimas. Para ele, a continuação da análise remota levou-a a um nível mais profundo, além de não interromper o que já havia sido ganho. Trazendo diversas vinhetas clínicas e de grupos de estudo, explicita as controvérsias entre os analistas sobre fazer ou não análise on-line, considerando-as desafiadoras, mas não de "segunda classe", em suas palavras, e, como Kupermann, aposta que a pandemia pode trazer algo de criativo por suas limitações.

François Lévy escreve "Cortes de energia no processo analítico" procurando entender as razões que levaram alguns pacientes a recusar as sessões por telefone e julgando-os pacientes com maiores dificuldades de simbolização. Não considera, no entanto, uma resposta única e exatamente negativa, analisa casos de duas pacientes em que acredita terem sido as motivações muito diferentes, o que o leva a repensar as relações de objeto e a metapsicologia do encontro. Embora não considere a análise remota "igual" à presencial, afirma que ter feito sessões remotas foi importante e fundamental, e que a interrupção seria mais traumática que a continuidade por telefone.

"Para além do todo-traumático: a imaginação narrativa e as novas temporalidades da sessão", de Jean-Jacques Tyszler, parte de uma perspectiva lacaniana, mas não exclusiva, para propor um entendimento, tanto no consultório como em instituições, de temas como a função do enquadre e a temporalidade e o traumático e o fantasmático para, por fim, propor o que chama de "descompartimentalização das perspectivas psicanalíticas" (p. 269). Em um percurso interessante, o autor parte de sua vivência atendendo crianças muito traumatizadas na instituição e pensa se essa experiência não o teria de alguma forma preparado para lidar com a vivência traumática da pandemia. Investe então na vertente do fantasma (conforme tradução em português) e não propriamente do trauma, propondo uma repoetização da vida fantasmática dos indivíduos marcados pelo trauma por meio do que chama de "imaginários". Por fim, sugere que a pandemia pode acelerar a abertura das teorias psicanalíticas umas às outras, ele próprio tecendo paralelos entre Lacan e Bion.

A Parte V intitula-se "Diários clínicos" e é onde encontramos a ênfase na narrativa de experiências clínicas. Em "Catábase, anábase: o trabalho em pós-uti da covid-19 em um hospital público", Steven Jaron narra sua experiência no início da pandemia em um hospital parisiense com pacientes que haviam tido covid-19, fazendo paralelos com o Inferno de Dante. Interessantemente, é o artigo que vem após o de Tyszler, e, de alguma maneira, põe em cena o imaginário narrativo do autor anterior com Dante para dar sentido à sua experiência.

Patrícia Cardoso de Mello escreve "Onde mora o analista? Sobre o manejo do enquadre na análise on-line de uma menina de 3 anos com autismo" partindo do princípio de que o analista contemporâneo está sempre convocado a pesquisar novas maneiras de se fazer psicanálise, além da clássica. Tendo em mente a noção de enquadre interno de Green, descreve a experiência do atendimento de uma menina autista por celular. Trata-se de um relato muito vivo em que Patrícia vai contando as sessões e nos contando sobre autismo, sobre técnica analítica, sobre enquadre e mostrando o quanto algo que parecia muito difícil de se concretizar antes da pandemia - atendimento via celular de crianças pequenas autistas - pode trazer novas possibilidades até mesmo simbólicas e como, nesse caso, o celular teve mesmo um efeito de jogo do carretel no contexto daquele atendimento.

Joshua Durban, em "Onde mora a covid? Ansiedades osmóticas/difusas, isolamento e continência em tempos de peste", relata três experiências de atendimento durante a pandemia em que ele mostra processos de defesas e ansiedades autísticas mesmo em pacientes não autistas. Com base nas oposições entre o rígido e o macio, Durban tece considerações sobre questões da pandemia e do trabalho remoto, relatando dificuldades, perdas e ganhos em tais atendimentos.

Por fim, a conclusão é escrita por Howard Levine, também organizador do livro, e chama-se simplesmente "Vida covidiana". Levine escreve um artigo conclusivo cauteloso, chamando a atenção, em quaisquer que sejam seus pontos de enfoque, para a necessidade de maior estudo e reflexão antes do pronunciamento de "regras" ou sentenças fechadas e definitivas sobre a experiência que se deu a partir da covid-19. Após tantos artigos controversos entre si, Levine afirma uma postura ponderada formulando que, "se a profundidade e a extensão deste trabalho serão equivalentes à análise presencial, se as modalidades virtuais são adequadas para fins de formação e para quais pares de analista-paciente, ainda resta determinar" (p. 386).

Seja como for, por qualquer aspecto considerado, trata-se de um livro plural no melhor sentido do termo, pluralidade esta almejada e dificilmente conquistada pela psicanálise contemporânea, que se deseja transescolar e aberta às diferenças.

 

 

Recebido em em: 20/5/2021
Aceito em: 5/7/2021

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